Whataboutism

O “whataboutism” é uma forma de argumentação que lança mão do oposto para relativizar a gravidade de uma condenação, apontando uma suposta hipocrisia do interlocutor. Por exemplo, “e o PT?” virou o meme de uma clássica resposta whataboutista para críticas ao governo Bolsonaro. Como se cada crítica a cada ator político precisasse ser sempre acompanhada de uma crítica igualmente virulenta ao seu campo oposto, sob pena de o crítico ser tachado de petista ou bolsonarista, a depender do lado da crítica.

Ontem, as redes foram invadidas de “whataboutism” com respeito ao affair Monark/nazismo. A crítica mais comum era a falta de igual condenação ao comunismo, que também foi responsável pela morte de milhões de pessoas inocentes. A pergunta que as pessoas se fazem, e que foi verbalizada por Monark e pelo deputado Kim Kataguiri, é porque um partido comunista é legal em vários países, inclusive no Brasil, e um partido nazista não o é. A porca torceu o rabo quando os dois avançaram o sinal, e sugeriram que um partido nazista deveria também ser legalizado.

Não vou aqui entrar no mérito dessa sandice, já objeto de meu post de ontem. Meu objetivo é procurar entender porque existe essa diferenciação de tratamento entre o comunismo e o nazismo. Que fique claro, desde o início, que o que vai a seguir é uma análise da realidade como ela é, não como eu particularmente gostaria que ela fosse, ok?

Para essa análise, será útil artigo de Eugênio Bucci publicado hoje.

Bucci é o arquétipo do intelectual de esquerda, e o que ele escreve é bastante útil para entender o que vai na cabeça desse pessoal. Hoje, o professor da ECA comenta o affair Monark/nazismo desde o ponto de vista do esquecimento da História. O jovem Monark seria o representante de uma geração que, esquecendo as lições da História, tende a repetir suas barbaridades. E é o canal por onde o fascismo, o grande inimigo da história, ressurge. Para ilustrar a sua tese, Bucci usa como exemplo o último filme de Almodóvar, Mães Paralelas. O trecho em destaque abaixo mostra duas mães, uma querendo se livrar de sua família “burguesa”, a outra, procurando o túmulo do bisavô morto pelo franquismo. Para Bucci, a História tem somente um lado: o fascismo, representado aqui pela burguesia e pelo franquismo, é o inimigo. No entanto, mais útil do que enfurecer-se com essa clara preferência por um dos lados da disputa, é procurar entender o por quê dessa preferência.

Pode ser uma imagem de texto que diz "mesmas: Ana (Milena Smit) quer se libertar da família bur- guesa, enquanto Janis (Penélo- pe Cruz), mais velha que a com- panheira de quarto, está empe- nhada em encontrar o lugar em que foi sepultado o seu bisavô, executado na Guerra Civil por tropas do franquismo. A partir daí, as verdades íntimas de cada uma delas se descortinam em paralelo com os fatos históricos que vão sen- do exumados. A subjetividade irredutível de Ana e Janis vai ganhando consistência no mesmo ritmo em que os cri- mes contra a humanidade são dados à luz."
Pode ser uma imagem de texto que diz "E o que é que não se cala? Ο fascismo. Dia desses, um rapaz -que dizem ser famoso nas re- des sociais defendeu publica- mentealegalização de um parti- do nazista no nosso País. É recalcado que retorna, nos bra- ços da ignorância e do esqueci- mento da história."

A crítica à existência do partido comunista, que mereceria a lata de lixo da história onde está o partido nazista, se resume a números. O comunismo foi também responsável por milhões de mortes de inocentes. Nesse campeonato macabro, deixa o nazismo no chinelo. Desculpem-me, mas quem usa esse argumento está errando o alvo de longe. Como teria dito Stálin, uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística. Para a narrativa, o que importa não é o número de mortes, mas as circunstâncias que levaram a essas mortes.

Por essa narrativa, o comunismo matou traidores da revolução: os chamados “inimigos do povo” e os kulaks, a burguesia da época. Passou um pouco da medida, é verdade, mas a sua intenção era boa, implementar uma sociedade nova, em que todos fossem iguais. Já tive a oportunidade de resenhar o livro “Sussuros – A vida privada na Rússia de Stálin”, onde isso fica bastante claro. Nada a ver, portanto, com o nazismo, que montou uma máquina de extermínio contra minorias étnicas.

O partido comunista, portanto, continua sendo o porta-voz desse ideal de uma sociedade nova. Teria abandonado os métodos stalinistas, canalizando a sua luta dentro da lei. Os milhões de mortos em suas costas foram como que um acidente de percurso, algo que não deveria ter ocorrido, mas que não é suficiente para nublar o futuro radioso que nos espera.

Na verdade, o partido comunista ser ou não legal é irrelevante, diante do zeitgeist que permite a uma Marilena Chauí gritar, para quem quiser ouvir, que “odeia a classe média”, a burguesia. O fato de ela mesma, e Eugênio Bucci, serem classe média, não os impede de colocar-se ao lado do “bem” contra o “mal”. E o mal é tudo aquilo que se opõe a um “outro mundo possível”.

Desse modo, não é de se estranhar que o partido comunista seja legal. Eles estão do lado do bem, do belo e do justo, mesmo que, para isso, tenham empilhado cadáveres ao longo da história. Se alguém defendesse que o nazismo tinha uma boa intenção, e teve que lidar com “inimigos do povo” (os judeus eram assim considerados), certamente seria tachado de genocida. O comunismo, no entanto, conta com essa licença poética, fomentada e compartilhada por uma intelectualidade que não consegue lidar com as “injustiças” criadas pelo “capitalismo burguês”.

Uma última observação, na forma de conselho: evite o whataboutism. Essa é uma argumentação que relativiza o outro lado, por mais que se coloque disclaimers avisando que também não se concorda com o outro lado. Se for necessário, escreva dois textos, um para condenar um lado, o outro para condenar o outro lado. Colocar as duas condenações juntas separadas por um “mas” inevitavelmente diminuirá a importância ou, até mesmo, inocentará o que vem antes da conjunção adversativa. Foi o que Monark sentiu na pele.

A morte como piada

Já escrevi nesta página muitos posts desancando as ideias de Eugênio Bucci. Não poderia, portanto, deixar de registrar este artigo, em que o professor da ECA-USP lamenta o festival de piadas e mensagens de ódio que invadiram a sua bolha por ocasião da morte de Olavo de Carvalho. Sem esconder suas profundas diferenças em relação ao guru do Bolsonarismo, Bucci simplesmente pede respeito diante da morte.

É óbvio que este comportamento não é exclusivo de nenhuma bolha. Posso imaginar os memes comemorando a morte de Lula, por exemplo. A piada do “CPF cancelado” quando um bandido morre é outro exemplo de comemoração. Como diz Bucci no artigo, por trás de todo crápula há um ser humano tentando respirar. E isso vale para todos os seres humanos. Todos. Por isso, se você ficou chateado com a falta de respeito pela memória de Olavo de Carvalho, tenha em conta que isso vale para qualquer ser humano.

Desta vez eu não poderia concordar mais com Eugênio Bucci.

Um colchão por domicílio

Eugênio Bucci escreve hoje um artigo de comover o mais duro dos corações revolucionários. Eu ia destacar um trecho ou outro, mas resolvi reproduzi-lo por inteiro, pois se trata de uma peça única, sem costura.

O artigo trata da população de rua de São Paulo e aborda três aspectos: a glamourização de quem mora na rua, a eleição de culpados e a omissão dos “bons”.

A glamourização ocupa a maior parte do artigo. É de uma poesia que nos faz pensar se realmente aquelas pessoas necessitam de ajuda. São muito ordeiros, conversam como se estivessem em uma cidadezinha do interior e a moça é uma Cleópatra perdida na cidade grande. Temos muito a aprender com eles. Quase chegamos a pensar que a sua felicidade não merece ser interrompida.

No entanto, esse quadro idílico é abruptamente comparado com o gueto de Varsóvia. Sim, porque as situações são realmente muito comparáveis: lá, como aqui, temos um ditador que ordena arbitrariamente que famílias inteiras se mudem de suas casas para um determinado bairro. Reductio ad hitlerum detectado.

E quem seria esse ditador malévolo, que condena famílias inteiras à felicidade de morar na rua ou ao indizível sofrimento de viver em um gueto? (Eu realmente fiquei confuso com esse paradoxo). O suspeito de sempre: o sistema financeiro, que é o suco concentrado do capitalismo. Ah, esses hitlerizinhos que só pensam em seus lucros, gerando os sem-teto por algum processo não explicitado no texto. Nem precisa, porque está claro que o capitalismo é o mal.

O texto foi construído pelo articulista para arrancar suspiros dos seus pares em saraus regados por um bom vinho ao calor de uma lareira em uma casa alugada através do Airbnb em Campos do Jordão ou em um bar transado na Vila Madalena, onde, como sabemos, se tem a fórmula para acabar com todos os problemas do mundo: substituir o capitalismo selvagem por um outro mundo possível.

Aqui termina minha análise do texto e começa minha análise da situação. Como não sou poeta, a análise irá vazada em bullet points, como todo bom financista da Faria Lima faria:

– A população pobre vive nas periferias e nas favelas. O problema da população de rua extrapola a questão da pobreza, envolve drogas e doenças mentais. Está longe, muito longe, da glamourização que a esquerda faz da pobreza.

– A última informação que eu tenho, em conversa com uma assistente social da prefeitura, é que sobram vagas nos abrigos. Há uma relutância de dormir nesses abrigos por vários motivos. Não há como forçar as pessoas a deixarem as ruas. Qualquer iniciativa nesse sentido seria taxada pelos Buccis da vida como “higienização”. Já vejo um artigo comparando os abrigos a câmaras de gás.

– A esquerda normalmente torce o nariz para iniciativas, geralmente de cunho religioso, visando a mitigação dessa situação. Qualquer ação nesse sentido esconde a chaga do capitalismo e adia a verdadeira transformação da sociedade em um outro mundo possível. É preciso que essas pessoas continuem onde estão, de modo a lembrar a todos, o tempo inteiro, o quão cruel é o sistema em que vivemos.

– Por fim, meu usual suspeito para essa situação: pessoas como Bucci, que vivem do salário pago com o imposto cobrado dos descamisados, e que subsidia uma universidade para os filhos da classe média, para que estes aprendam como o sistema capitalista é perverso e, depois, escrevam artigos que arranquem suspiros do mais empedernido revolucionário.

Termino com uma música da Rita Lee que sempre me vem à mente quando leio artigos desse tipo:

“Me cansei de lero-lero / dá licença mas eu vou sair do sério / quero mais saúde / me cansei de escutar opiniões / de como ter um mundo melhor / mas ninguém sai de cima / desse chove-não-molha / eu sei que agora / eu vou é cuidar mais de mim” 🎶

Queremos imitar Xi Jiping?

Thomas Friedman, colunista do NYT, está preocupado com a China. Xi Jiping estaria indo longe demais em sua intervenção contra os capitalistas de empresas de tecnologia. Por exemplo: Jack Ma, o fundador do Alibaba, o maior site de e-commerce do mundo, estaria desaparecido. Realmente, uma coisa muito extrema.

Mas o que me chama a atenção é a justificativa para as ações do premiê chinês: Xi Jiping não quer para o seu país “a exacerbação de tensões sociais, o aumento da desigualdade e o estabelecimento de monopólios que dominem governos”, tudo isso fruto da ação das empresas de tecnologia. Em seu momento Eugênio Bucci, Friedman concorda que Xi Jiping está fazendo, em geral, a coisa certa. Só exagerou um pouco ao fazer Jack Ma “desaparecer”. Uau!

Xi Jiping está intervindo nas empresas de tecnologia porque é chefe de um estado autoritário e vê nessas empresas uma ameaça ao seu poder. Pelo visto, Friedman concorda com Lula, que afirmou, em uma antológica entrevista a um jornal chinês, que a China só chegou onde chegou porque tem um Estado forte. E põe forte nisso! Jack Ma que o diga.

Friedman e todos os seus colegas estão preocupados com a ameaça que os monopólios de tecnologia representam para a democracia. A intervenção de um governo autoritário para “resolver o problema” deveria ser suficiente para mostrar o quão delicado é este assunto de intervir na livre iniciativa e na liberdade de expressão. Não por outro motivo, os governos ocidentais estão patinando no controle dos tais “monopólios de tecnologia”. Afinal, fazer Zuckerberg “desaparecer” não é tão fácil, mas talvez seja a única solução, como demonstrado por Xi Jiping.

Todos sonham com um mundo bom, belo, justo e democrático, onde não haja “tensões sociais, desigualdade e pressão nos governos por parte de monopólios de tecnologia”. Xi Jiping resolveu esse problema. Queremos imitá-lo?

Redes sociais, a nova face do velho capitalismo

O professor Eugênio Bucci lançou um livro. Em entrevista ao Estadão (destaquei os trechos mais interessantes abaixo), nos conta um pouco do que vai por aquelas páginas. Ao lado de expressões como “a instância da imagem ao vivo é o portal por onde a totalidade do agora abraça a totalidade do espaço”, repetida pelo entrevistador com mal disfarçado enlevo, Bucci somente repete o seu fatwa sobre as redes sociais, o que já havia sido objeto de artigos do professor.

Segundo o professor da ECA, “nunca os seres humanos foram tão abusivamente explorados como agora”. Os seres humanos escravizados de todas as épocas, o que inclui os prisioneiros dos campos de concentração nazistas e das prisões do Gulag soviético, devem estar se revirando nos seus respectivos túmulos. Até mesmo os proletários de Marx, esses pobres explorados pelo capital, devem estar aliviados de não serem mais os líderes desse ranking da exploração. Agora, os mais explorados de todos os tempos somos nós, os usuários das redes sociais. U-lá-lá!

Bucci faz uma revelação aterradora: os usuários das redes sociais somos “mercadejados”! A palavra “mercadejar” traz uma carga negativa para esse tipo de intelectual, que vê no comércio algo sujo, impróprio da dignidade humana. Para esse pessoal, um outro mundo, com as pessoas trabalhando quanto puderem e consumindo quanto quiserem, é possível. Não à toa, o professor se refere à “ganância do capital” como a fonte de todos os nossos problemas. De fato, essa ganância que permitiu tirar bilhões de seres humanos da miséria e dobrar a expectativa de vida da humanidade ao longo dos últimos séculos é um problema a ser resolvido.

Mas voltemos à “revelação”: somos mercadorias! Uau! E eu achando que o Zucka nos fornecia essa plataforma de graça por ser um grande filantropo, interessado apenas em nos proporcionar alguma diversão. Estou perplecto.

O professor nos conta que há uma grande assimetria: enquanto os algoritmos nos conhecem profundamente, nós não conhecemos nada sobre os algoritmos. Fico pensando o que ganharíamos em conhecer os detalhes técnicos dos algoritmos. Deixaríamos de clicar onde clicamos? Deixaríamos de visitar as páginas que visitamos? Deixaríamos de usar as redes sociais? Na verdade, parece-me que hoje não há ninguém suficientemente ingênuo que não saiba que toda a sua navegação na Internet esteja sendo monitorada para nos vender coisas. O que mais exatamente precisamos saber?

Aliás, essa “assimetria” informacional não é privilégio das redes sociais. Toda empresa de bens de consumo conhece muito melhor o cliente, via pesquisas e imensos bancos de dados (que já existiam antes das redes sociais) do que o cliente conhece a empresa. As redes sociais e o Google somente alavancaram no poder da Internet para levar esse processo de conhecimento do cliente ao estado da arte. Não houve uma mudança de natureza, houve apenas um aumento da velocidade e da quantidade de dados disponíveis.

Bucci sugere como remédios “regulamentação democrática” e “quebra de monopólio”. Fico imaginando que tipo de regulamentação poderia impedir o uso de dados que os usuários topam compartilhar como preço pelo uso da ferramenta. E, caso haja proibição total de uso desses dados, fico imaginando como as redes sociais e os buscadores da Internet sobreviveriam. Na verdade, a própria Internet como a conhecemos ficaria inviabilizada. Voltaríamos a um mundo sem Internet. Conseguem imaginar?

Por fim, não poderia faltar o toque político: a democracia estaria ameaçada! Por quem? Nada mais, nada menos, que os bolsonaristas, que usam as redes sociais para espalhar o ódio e fake news. Como se outras forças políticas não pudessem usar as redes sociais por algum motivo. E como se as redes sociais fossem um fator determinante para abalar regimes democráticos. Não me consta que Hitler ou Stálin contassem com redes sociais.

Enfim, toda a análise do professor Eugênio Bucci está irremediavelmente contaminada pela sua visão anti-capitalista. As redes sociais são somente a mais conveniente e atual desculpa para apontar os males da sociedade consumista em que nos transformamos. O sonho dos Bucci da vida é o outro mundo possível, em que nos livremos da ganância do capital. Não deixa de ser irônico que os cubanos, que experimentaram esse outro mundo possível, estejam agora mesmo pedindo acesso livre às redes sociais.

Os ataques à imprensa

Eugênio Bucci é o meu Sul. Para onde ele apontar, pode ir na direção contrária sem erro.

No episodio de hoje, o professor faz uma longa digressão sobre a campanha dos nazistas contra a imprensa livre, fazendo um original e nunca antes pensado paralelo com o bolsonarismo hoje. Para tanto, usa como exemplo paradigmático os ataques contra a Rede Globo.

Selecionei algumas fotos abaixo mostrando os “democratas” do PT atacando a mesma Rede Globo. Mas, para Bucci, os ataques à imprensa livre são monopólio dos fascistas, conservadores e ultraconservadores, conforme o trecho do artigo destacado acima.

O colunista até admite que a esquerda também ataca a imprensa, mas apenas para “denunciar hipocrisias nos jornais burgueses”. Claro, havia plena liberdade de imprensa na antiga União Soviética. Há também plena liberdade de imprensa em Cuba e na Venezuela. E não foi um governo de esquerda que aprovou a “ley de medios” na Argentina. A esquerda é realmente uma fofura quando se trata de liberdade de imprensa.

Autoritários de todos as cores lidam mal com a imprensa profissional. Que tem seus erros e vieses, como todos nós temos. Quem procurar na minha timeline encontrará vários posts criticando o trabalho da imprensa. Nada, no entanto, substitui o seu trabalho na democracia. Prometo um post de mais fôlego sobre este assunto.

O ‘poder’ das redes

Quando Eugênio Bucci fala, eu paro para ouvir. Normalmente, sua argumentação me convence do ponto exatamente oposto. Mais uma vez, não saí decepcionado.

Como era de se esperar, Bucci amou o documentário O Dilema das Redes (eu ia usar outra palavra para descrever a reação do colunista, mas há crianças na sala). O curioso em sua crítica é o foco nas consequências políticas e não de consumo. Digo curioso porque, sendo professor da área de comunicação, esperaria uma análise sobre a manipulação do consumo. Nem uma linha a respeito, o que já nos diz muita coisa.

O colunista envereda pelas “ameaças à democracia” representadas pelas redes sociais (destaco os dois principais trechos abaixo). Infelizmente, o raciocínio do colunista sofre de três falhas lógicas graves.

A primeira é assumir que as redes são as responsáveis pela ascensão de líderes populistas que destroem a democracia por dentro. Na medida em que eu ia lendo, vozes na minha cabeça iam soprando: “Hitler, Mussolini, Chavez”. Líderes que foram eleitos sem as redes e destruíram as democracias de seus países por dentro. Isso sem contar outros golpes na democracia que não passaram por eleições mas que, mesmo assim, tiveram apoio popular (todo golpe tem apoio popular, não sai do nada): Getúlio, Fidel, os militares de 64. Enfim, atribuir às redes um fenômeno generalizado no tempo e no espaço é, para dizer o mínimo, uma falha lógica.

A segunda falha decorre da primeira: se as redes serviram para “um lado”, porque não serviriam para o “outro lado”? As redes são território neutro, a não ser que se acuse Zuckerberg de fazer campanha para Bolsonaro, mas a esse ponto (ainda) não chegou o colunista. Sendo território neutro, podem ser usadas pelo “lado do bem” igualmente. Bucci contrapõe a mídia tradicional, que estaria ao lado do “bem racional” às redes, que estariam a serviço do “mal irracional”. Ora, isso parece-me mais desculpa de perdedor. Primeiro, porque o monopólio da mídia tradicional não impediu a ascensão de líderes populistas e ditadores ao longo de décadas e no mundo inteiro. E, segundo, as redes estão à disposição de todos, inclusive dos monopolistas do bem, entre os quais se auto-alinha o articulista. Isso nos leva à terceira falha do raciocínio.

A terceira falha lógica da argumentação é óbvia: e se o vencedor da próxima eleição for o Luciano Huck? Ou o Felipe Neto? (Desculpem-me, estou só estressando o argumento). Neste caso, pessoas que sabem usar as redes a seu favor. Bucci virá a público para denunciar a manipulação das redes sociais? Ou comemorará o fato de as redes sociais terem ajudado a eleger candidatos fofos?

No fundo, todo esse barulho em torno das redes sociais se dá por conta das eleições de Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil. Se Clinton e Haddad fossem os presidentes hoje, esse assunto teria atenção mínima, se tivesse alguma. Esse artigo de Eugênio Bucci é prova cabal desse ponto. Afinal, ninguém está nem aí para a manipulação do consumo. Mas a coisa foi para o lado político, que desperta paixões. Esse é o problema.

A angústia de Eugênio Bucci

Eugênio Bucci está angustiado com o valor das Big Techs americanas. Afinal, são necessários 3 anos de tudo o que o país produz para comprar essas empresas (pelo menos ele não cometeu o erro básico de comparar “riquezas”).

Destaquei os últimos 3 parágrafos do seu artigo de hoje. Em grande parte, o artigo descreve as explicações usuais para o valor absurdo dessas empresas. Seria basicamente porque dominam a tecnologia do futuro e manipulam bases de dados gigantescas sobre as pessoas a seu favor (esta última explicação é da The Economist). Bucci concorda com essas explicações, mas acha que estão longe de explicar tudo. Ele guarda os últimos parágrafos para descrever a sua explicação do fenômeno. E é essa que nos interessa, pois traduz uma visão comum a muitos.

Segundo Bucci, essas empresas se aproveitam de uma mutação do capitalismo que vem ocorrendo desde meados do século passado: os bens (“coisas úteis”, segundo Bucci) deram lugar aos “signos”. Por signos ele quer dizer marcas, mensagens. Para Bucci, “o capital virou um narrador, um contador de histórias”. E, segundo ele, isso passou a valer mais do que “as coisas úteis”. As Big Techs teriam se apropriado dessa “industrialização da linguagem” que manipula as pessoas, fazendo-as comprar seus “desejos” e não mais suas “necessidades”.

Bem, é difícil até escolher por onde começar. Mas vamos lá.

Bucci se refere a um fenômeno comezinho: o triunfo da publicidade. As pessoas não compram bens, compram marcas. Marcas estas construídas às custas de muito, muito esforço de propaganda ao longo de anos. Sem contar, claro, a qualidade do produto. Mas enfim, a questão é que não se trata de um fenômeno novo. Bucci mesmo diz que vem de meados do século passado. E porque isso aconteceu? Para tanto, precisamos voltar um pouco mais no tempo.

Na década de 20 do século passado, o PIB/capita americano era de cerca de 500 dólares. Hoje, um século depois, é de quase 60 mil dólares. E estamos falando de PIB real, já descontada a inflação do período. O americano médio enriqueceu mais de 100 vezes em um século. Guarde essa informação.

O psicólogo americano Abraham Maslow elaborou uma teoria sobre as necessidades humanas, que ficou conhecida como “pirâmide de Maslow”. A ideia é simples: as pessoas procuram satisfazer primeiramente as suas necessidades básicas, para depois caminharem para o consumo mais sofisticado. Na base da pirâmide de Maslow temos as necessidades fisiológicas (comer, vestir-se, dormir, fazer sexo) e em seguida caminhamos para outras necessidades: segurança, amor e relacionamentos, autoestima e realização pessoal, nessa ordem. Obviamente, o consumo dos mais pobres se limita à base da pirâmide e, à medida que vai enriquecendo, a pessoa vai galgando a pirâmide.

Voltemos ao enriquecimento do cidadão médio americano (e o mesmo vale para todos os países do mundo, em maior ou menor grau). Somos hoje muito, mas muito mais ricos do que éramos há um século. Pessoas pobres em países emergentes hoje têm uma renda e uma qualidade de vida (em termos materiais) superior aos ricos de um século atrás. A renda per capita brasileira hoje é de cerca de 10 mil dólares, cerca de 20 superior à renda nos EUA há um século.

Nesse processo de enriquecimento, galgamos a pirâmide de Maslow. As necessidades das pessoas mudaram com o tempo. Bucci lamenta que o “capitalismo” excite nas pessoas os seus desejos, deixando de lado suas necessidades. Não lhe ocorre que as pessoas já tenham satisfeitas as suas necessidades, e agora querem mais. Todas essas coisas “não úteis” são, na verdade, bem úteis. Aliás, este não é um processo novo.

Quando surgiu a indústria automobilística, carros não eram uma necessidade, eram um luxo. A humanidade poderia viver sem carros, como viveu durante milênios. Mas, uma vez incorporado ao rol de bens que podem ser comprados, o automóvel passou a ser uma “necessidade”. Isso pode ser aplicado a todas as inovações tecnológicas, desde a invenção da roda. Necessário mesmo não é. Afinal, a humanidade viveu sem isso (qualquer inovação) durante milênios.

Mas Bucci, na verdade, contrapõe a mercadoria em si à “ideia de mercadoria”. Ele dá o exemplo do fabricante de tênis que cuida mais da marca do que do próprio tênis. Claro: tênis é uma commodity, qualquer um pode fabricar. Está ali, na base da pirâmide de Maslow (a necessidade de vestir-se). O que as pessoas querem é subir na pirâmide. Não basta um tênis. É preciso comprar o tênis de tal marca, que tem tal qualidade, que é usado por tal atleta. Pode-se criticar essa atitude, mas não se pode negar que exista, e que faz parte da constituição mesma das pessoas. Queremos sempre mais, somos insaciáveis. Essa é a lógica.

O capitalismo não impôs essa lógica, como sugere Bucci. O capitalismo apenas serviu a essa lógica, por isso o seu sucesso. Na verdade, o capitalismo permitiu multiplicar a renda da população global em dezenas de vezes, e esse enriquecimento fez com que as pessoas passassem a exigir coisas mais sofisticadas do que simplesmente “coisas úteis”. Aliás, como dissemos acima, as “coisas inúteis” se tornam úteis e imprescindíveis com o passar do tempo.

Então, a resposta à pergunta angustiada do jornalista (o que afinal produzem essas empresas para valerem tanto) é simples: essas empresas estão no centro da revolução que está levando a humanidade a subir mais um degrau na pirâmide de Maslow. Isso não é novidade. Foi assim com as ferrovias, com o petróleo, com os automóveis. Todas indústrias que estavam no centro de uma revolução. As Big Techs são apenas mais um capítulo dessa história.

E, para finalizar, chamo a atenção para o último parágrafo, em que o autor diz que “o mundo distanciou-se da razão e do espírito”. Bem, há um século o mundo se envolveu em duas guerras mundiais que resultaram em milhões de mortos, inclusive em campos de concentração. E, não muito antes disso, ainda tínhamos escravidão de seres humanos. Não consigo pensar em nada mais longe “da razão e do espírito”. Ao contrário, ao tornar o mundo mais rico, as novas tecnologias permitem que mais pessoas se dediquem “à razão e ao espírito”. Se você acha que vivemos em um mundo brutal, é porque não conhece o que os nossos antepassados viveram.

Preso ao passado

Eugênio Bucci está desesperado. Já vê despontar no horizonte um regime fascista, que cancelará, entre outras coisas, seu direito a escrever bobagens periodicamente.

Ele chama as “lideranças democráticas” para nos salvar. E quem seriam essas tais “lideranças democráticas”?

FHC, Lula e Ciro.

Ok, pode parar de rir e continuar a ler a minha análise.

Fico me perguntando que tipo de cegueira ou desespero faz uma pessoa inteligente e experiente como Bucci a achar que FHC, Lula e Ciro vão levantar multidões contra o “fascismo”. FHC já não deve liderar nem reunião do condomínio onde mora e Ciro, só se for para liderar um batalhão de retroescavadeiras. Sobra Lula, o único que tem ainda algum apelo popular. Pena que esteja enrolado em outras esferas que não a política.

A propósito, Bucci chama de controversa e açodada as condenações de Lula. Ou seja, ao mesmo tempo que vê o fantasma do fascismo ameaçando as instituições democráticas tupiniquins, coloca em suspeição sentenças emanadas da justiça do país em nada menos que três instâncias diferentes. A justiça é um dos pilares de qualquer Estado democrático, mas Bucci não se incomoda em passar por cima para defender a “democracia”.

Eugênio Bucci, assim como grande parte dos intelectuais de esquerda, está preso ao passado. Desse jeito, Bolsonaro vai continuar no poder por muitos anos.

A democracia brasileira vai mal

Eugênio Bucci repercute o Índice de Democracia, publicado anualmente pela The Economist. E ele está preocupado. Muito preocupado.

Segundo o jornalista, a nossa democracia vai de mal a pior, e esse índice seria mais uma evidência disso. Por que? Bucci elenca três motivos, a saber: 1) o índice caiu de 6,97 em 2018 para 6,86 em 2019; 2) a nossa democracia é classificada como “falha” pela revista e 3) o item “funcionamento do governo” foi o ponto crítico desta nota ruim, pois recebeu nota 5,36. Principalmente esse terceiro ponto deu margem a que o preocupado jornalista apontasse todos os nazistas debaixo das camas desse governo, conclamando os democratas do país a nos salvar dessa peste.

Os três fatos elencados são verdadeiros, mas a sua relação específica com o governo Bolsonaro é, para dizer o mínimo, forçada. Vejamos.

Em primeiro lugar, é verdade que o índice caiu de 6,97 em 2018 para 6,86 em 2019. Mas o mesmo índice era 6,86 em 2017. Durante o governo Temer, portanto. Então, fica difícil relacionar essa queda especificamente ao governo Bolsonaro.

Em segundo lugar, a classificação da democracia como “falha” vem desde o início da publicação do índice, em 2006. Todos os países que recebem nota entre 6,00 e 7,99 recebem essa classificação. O Brasil nunca teve classificação maior que 7,99. Portanto, “falha” não é uma característica da democracia bolsonarista, mas da democracia brasileira.

Mas é o terceiro ponto que merece maior atenção: este item, “funcionamento do governo” recebeu nota realmente baixa, 5,36. Mas o Brasil recebe esta mesma nota para este quesito desde 2017. Nem mais, nem menos. Portanto, o problema não é o governo Bolsonaro. Aliás, este quesito não está sozinho puxando a nota do país para baixo: “cultura política” recebeu nota 5,0 e “participação política” recebeu nota 6,11, sendo também responsáveis pela nota ruim do Brasil.

Então, o que Bucci está fazendo é instrumentalizar uma ferramenta de análise em favor de sua tese. Danem-se os números, o que importa é demonizar quem eu não gosto.

O pior de tudo é que realmente a democracia brasileira perdeu qualidade nos últimos anos, de acordo com o índice da The Economist. Até 2008, nossa nota era 7,38, passando a ser 7,12 entre 2010 e 2013 e voltando a 7,38 em 2014. A partir daí, foi só ladeira abaixo. E o item que deteriorou este índice a partir de 2015 foi realmente a “qualidade do governo”. No entanto, ao concentrar as críticas nas idiossincrasias de Bolsonaro, o articulista perde a chance de fazer um diagnóstico mais abrangente.

Para entender porque a “qualidade do governo” piorou, é necessário saber no que consiste esse quesito. São 14 perguntas feitas pela The Economist. Vou listá-las aqui para que fique clara a natureza desse quesito (respostas positivas aumentam a nota):

  • 1) As políticas do governo são determinadas pelos representantes eleitos.
  • 2) O parlamento é o corpo político supremo, com uma clara supremacia sobre outros ramos do governo.
  • 3) Há um sistema de checks e balances efetivo.
  • 4) O governo está livre de influência indevida de militares
  • 5) Instituições estrangeiras não determinam as políticas nacionais.
  • 6) Grupos econômicos e religiosos não tem poder paralelo ao governo.
  • 7) Há formas de cobrar o governo entre as eleições.
  • 8 )A autoridade do governo se estende sobre todo o território nacional.
  • 9) O público tem acesso a informações do governo
  • 10) A corrupção não é um grande problema
  • 11) Os servidores públicos implementam as políticas de governo
  • 12) Existe percepção por parte do povo de que se tem livre escolha e controle sobre suas vidas
  • 13) A confiança popular no governo é alta
  • 14) A confiança popular nos partidos políticos é alta

Olhando o conjunto desses itens, parece óbvio que houve uma deterioração da percepção da funcionalidade do governo a partir do evento do Petrolão. Não por coincidência, a nota desse quesito despenca a partir de 2015. Quer dizer, o governo do PT não era um primor de democracia para depois dar lugar a governos autoritários. Ocorreu o justo contrário: os governos do PT plantaram a deterioração posterior, a exemplo do que aconteceu na economia.

Bolsonaro é consequência, não causa da deterioração da democracia brasileira. E não é combatendo os sintomas que se cura uma doença.