Vida digna

“Precisamos garantir vida digna para os brasileiros!”

Com pequenas variantes, este é, de modo geral, o discurso dos políticos brasileiros. E não somente dos políticos. Também é o discurso de todos os que, de uma forma ou de outra, acham que têm a solucionática para toda a problemática brasileira, como dizia o inesquecível Odorico Paraguaçu.

Mas, o que é uma “vida digna”?

Arriscaria dizer que “vida digna” é aquela em que o ser humano tem acesso a todos os bens essenciais à sua sobrevivência. O diabo nessa definição está em definir o que é “essencial”. O que é essencial para mim pode não ser para você, e vice-versa. Além disso, o ser humano tem a incrível capacidade de se acostumar com o seu padrão de vida, de modo que várias coisas se tornam “essenciais” ao longo do tempo. Quem já experimentou uma redução abrupta em sua renda sabe do que estou falando.

Assim, a definição de “vida digna” é algo fluido, que depende da definição do que é “essencial”. No entanto, não por isso vamos deixar de abordar o tema. A propósito, lembro de um caso que ficou famoso na Suprema Corte dos EUA.

Em 1964, o dono de um cinema apelou à Suprema Corte contra uma condenação por exibição de material obsceno. A apelação se baseava na ideia de que é impossível definir a linha que separa o obsceno da nudez artística. O juiz Potter Stewart, embasando seu voto a favor da apelação, saiu-se com a frase que até hoje é considerada o resumo daquilo que não conseguimos definir, mas conhecemos muito bem: “Eu reconheço quando eu vejo” (I know it when I see it), referindo-se a material pornográfico.

Vida digna é difícil de definir. Mas vida indigna é facilmente reconhecível quando se vê.

Em busca de uma definição do que seria essa tal “vida digna”, bati à porta do Dieese, Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Se tem alguém que entende de vida digna são os sindicatos, pensei. Eles não param de defender “vida digna” para os trabalhadores.

O Dieese calcula um “Salário-Mínimo Necessário”, com base, segundo a metodologia, na Constituição de 1988, que define o salário-mínimo como aquele “capaz de atender às suas necessidades vitais básicas (do trabalhador) e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”.

Ok, mas como definir os gastos mínimos em cada um desses itens, de modo a garantir a tal “vida digna” ao trabalhador? Como isso é muito difícil, para não dizer impossível de se fazer, o Dieese usa uma metodologia reversa: calcula o valor de uma cesta básica mínima de alimentos e supõe que esta cesta ocupe um percentual dos gastos totais da família. Vale a pena dar uma olhada nos detalhes.

Para calcular a cesta básica de alimentação, o Dieese usa o Decreto Lei no 399, de 30/04/1938. Sim, você não entendeu errado: o Dieese considera a cesta básica de alimentação definida por uma lei de 1938, a que estabeleceu o salário-mínimo no tempo do Estado Novo. Tem até banha, espertamente substituída por óleo. Mas ok, são detalhes. O que importa vem agora.

Para calcular o “Salário-Mínimo Necessário”, o Dieese considera que o gasto com essa Cesta Básica representa 35,71% do total de gastos do trabalhador. Esse percentual, assim, tão preciso, vem de uma Pesquisa de Orçamento Familiar feita pelo próprio Dieese em 1994. Ou seja, quase 30 anos atrás! Então, ficamos assim: a vida digna do Dieese é calculada com base em uma cesta de alimentos de 1938 e uma pesquisa de orçamento familiar de 1994.

O último valor divulgado desse “Salário-Mínimo Necessário” é de fevereiro/2021: R$ 5.375,05. Este seria o montante necessário para que uma família de 4 pessoas, dois adultos e duas crianças, tivesse uma “vida digna”. Uma renda per capita de R$ 1.343,76. Abaixo disso, a vida no Brasil seria indigna.

De acordo com um trabalho do IBRE-FGV, com base nos microdados da Pnad contínua do IBGE, cerca de 70% dos brasileiros recebiam abaixo deste montante em 2019. Portanto, cerca de 70% dos brasileiros tinham uma vida indigna, segundo o Dieese. Será que é isso mesmo?

Sempre que pensamos em vida indigna, associamos com a vida nas comunidades (antigas favelas). No entanto, segundo levantamento do IBGE, apenas 8% dos domicílios brasileiros encontravam-se no que o IBGE classifica como Aglomerados Sub-Normais (favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, loteamentos irregulares, mocambos e palafitas – segundo definição do IBGE). Mesmo que esses domicílios tenham em média o dobro dos moradores dos domicílios normais, estaríamos falando de 16% da população brasileira. Restariam, portanto, 54% da população que não mora em domicílios “sub-normais”, mas, mesmo assim, levaria uma “vida indigna”, segundo o Dieese.

Os moradores de domicílios “sub-normais” têm claramente uma vida não digna, segundo os padrões comumente aceitos. E o restante? O que caracterizaria a “não dignidade”?

Podemos elencar alguns pontos:

  • Pegar ônibus/trem lotado, duas horas para ir, duas horas para voltar do trabalho;
  • Esperar anos por uma vaga para fazer cirurgia no SUS;
  • Colocar os filhos em uma escola onde é certeza que sairão sem saber o mínimo necessário de português e matemática para enfrentar um mercado de trabalho extremamente competitivo;
  • Jogar o esgoto na rua ou diretamente no rio (segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, 47% da população brasileira não tinha tratamento de esgoto em 2018; ou seja, muito mais do que os 16% que supostamente moram em domicílios “sub-normais”).

Note que todos esses pontos ou são “de graça”, ou são oferecidos pelo Estado ou seu preposto em troca de uma tarifa. Saúde e educação são “deveres do Estado e direitos do Cidadão”, dizem. E esgoto e ônibus/trem só tem quando o Estado constrói (ou deixa construir) a rede de coleta ou a rede de transporte.

Portanto, a tal “vida digna” não depende só da renda da pessoa. Depende de que o Estado forneça aquilo que prometeu fornecer. Afinal, o Estado brasileiro arrecada 33% do PIB em impostos, a grandessíssima parte, direta ou indiretamente, daqueles que não tem uma “vida digna”.

Os R$ 1.343,76 do Dieese devem ser gastos com saúde (convênio) e educação (escola particular) para garantir a “vida digna” do cidadão. Obviamente não é possível. Sem contar que nem que a pessoa fosse milionária conseguiria construir uma rede de coleta de esgoto em casa ou colocar um trilho de trem. Este papel do Estado é insubstituível.

Por outro lado…

Existem hoje, no Brasil, cerca de 228 milhões de linhas de telefone celular. Ou seja, mais do que uma para cada habitante. Ok, há pessoas com mais de uma linha. Mas, vamos combinar que grande parte dos brasileiros, mesmo aqueles que vivem em domicílios “sub-normais”, dispõe de um celular. Difícil defender que celular faça parte da cesta da dignidade humana.

Você entra em qualquer domicílio “sub-normal” e vai encontrar uma TV. Segundo dados de 2018, somente 2,8% dos domicílios brasileiros não contavam com pelo menos uma TV. Uma penetração muito maior do que a coleta de esgoto, por exemplo.

O que isto significa?

Significa que uma parte relevante da “vida digna” depende não do salário, mas de serviços prestados pelo Estado. Aqueles elementos da “vida digna” que dependem da iniciativa privada, bem ou mal, chegam para a maioria dos brasileiros, mesmo considerando a renda atual média do brasileiro.

Vejamos novamente a definição de salário-mínimo de acordo com a Constituição:

Art 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

….

IV –  salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educaçãosaúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

Note que destaquei os itens “educação” e “saúde” como necessidades que devem ser bancadas pelo salário-mínimo. Há aqui uma contradição em termos: nos artigos 196 e 208 da mesma Constituição lê-se o seguinte:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 208.  O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

      I –  educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;

Portanto, se o Estado deve ser o garantidor último da educação e da saúde, não haveria por que os incluir como gastos a serem cobertos pelo salário-mínimo. Até parece que o legislador anteviu o fiasco do Estado como provedor de serviços sociais…

Poderíamos testar dois modelos alternativos, de modo a tentar aumentar a dignidade do brasileiro:

  1. Aumentar a carga tributária para custear melhores serviços sociais ou
  2. Diminuir a carga tributária, aumentando a renda disponível para a população, e deixar que a iniciativa privada forneça serviços sociais

A primeira alternativa conta com casos de sucesso e fracasso. Entre os casos de sucesso sempre mencionados estão os países escandinavos: com uma carga tributária próxima de 45% do PIB, esses países são modelos de bem-estar social. Difícil dizer que seus habitantes não levam uma “vida digna”.

Por outro lado, os países socialistas são, em geral, exemplo do fracasso da centralização estatal no fornecimento de serviços sociais. Os fãs de Cuba não concordarão, e dirão que sua população vive uma “vida digna”. Recomendo que assistam o documentário da Netflix, Cuba e o cameraman, do cinegrafista Jon Alpert, que se tornou amigo pessoal de Fidel Castro. Tudo está lá, de modo que cada um poderá tirar suas próprias conclusões.

O segundo modelo tem menos fãs no Brasil, porque, em geral, somos viciados em Estado. Um simples estudo de viabilidade de terceirização de algumas atividades de postos de saúde se transformou no escândalo da “privatização do SUS”, com direito a comentários furibundos de vários formadores de opinião. De qualquer modo, temos exemplos de países com menor carga tributária onde a população tem, em geral, vida mais “digna” que a do brasileiro. Estados Unidos é um exemplo, onde a carga tributária de 24% do PIB não impede a “vida digna” de seus cidadãos.

Note que há um ponto em comum entre os países escandinavos e os EUA, apesar da grande diferença de carga tributária: trata-se de países ricos. E ricos aqui, ao contrário da tal “vida digna”, é um conceito muito concreto: alta renda per/capita. Será, então, que o que determina a “vida digna” da população é a riqueza do país e não o quanto o Estado recolhe dos cidadãos para lhes dar uma “vida digna”? Vejamos.

Rodei duas regressões utilizando o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano como proxy da “vida digna” dos cidadãos. Este índice é formado por três componentes: 1) renda/capita (riqueza), 2) número de anos em que as crianças ficam na escola (educação) e 3) expectativa de vida ao nascer (saúde). Como a renda/capita é um dos componentes do IDH, é natural que encontremos uma correlação positiva e bem significativa entre IDH e renda/capita, como podemos ver no gráfico abaixo:

Este gráfico nos mostra que, para cada US$1.000 de aumento da renda/capita, o IDH aumenta em 0,048. Guarde esta informação.

Como há esses dois outros componentes do IDH (educação e saúde), haverá diferenças devidas a políticas públicas nessas áreas. A questão é saber se a carga tributária tem algo a ver com esses ganhos em educação e saúde. Em outras palavras: se conseguirmos achar uma correlação entre a carga tributária e o IDH ex-renda/capita (o IDH considerando apenas os dois outros componentes), podemos dizer que vale a pena aumentar a carga tributária para aumentar o IDH. É o exercício que faço no gráfico abaixo:

Neste gráfico, correlaciono a diferença entre o IDH real e o IDH hipotético se fosse apenas função da renda/capita de cada país, que calculo usando a equação da regressão do gráfico anterior. Apesar de a correlação ser baixa, o coeficiente tem significância estatística a menos de 1% (p-value = 0,00014%), o que significa que, de fato, aumentando a carga tributária, temos uma tendência de melhora do IDH além daquele dado simplesmente pela renda/capita. Esta melhora é de 0,0015 a mais no IDH dado pela renda/capita para cada ponto percentual adicional na carga tributária.

Mas, não vamos perder a perspectiva. O gráfico anterior havia mostrado que, para cada US$1.000 de aumento na renda/capita, há um aumento do IDH de 0,048. E, no segundo gráfico, observamos um aumento adicional de 0,0015 ao IDH para cada ponto percentual de aumento na carga tributária.

Podemos observar, entretanto, que o aumento da renda/capita é muito mais importante para o aumento do IDH do que o aumento da carga tributária. Cerca de 30 vezes (0,048/0,0015) mais importante. Pode-se melhorar um pouquinho a dignidade do cidadão aumentando a carga tributária e oferecendo serviços, mas aumenta-se muito mais se conseguirmos elevar a renda/capita. O IDH sobe de escada com a carga tributária e de elevador com a renda/capita.

E nem vou aqui entrar no mérito se o aumento da carga tributária atrapalha ou não o crescimento da renda/capita. Vou dar de barato que não atrapalha. Mesmo assim, muito mais esforço se deveria dispender no aumento da renda/capita do país do que no estabelecimento de um Estado de bem-estar social com base em uma alta carga tributária. Os ganhos para o IDH seriam muito maiores. Em outras palavras: a vida do brasileiro seria muito mais “digna” se nos dedicássemos mais a enriquecer do que em montar uma rede de proteção social sem dinheiro suficiente. Mesmo porque, este modelo não parece ter dado lá muito certo.

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