Ontem participei da “virada da vacina” aqui em São Paulo. Meus filhos de 21 e 18 anos insistiram muito, pois queriam a vacina o quanto antes. Achei aquilo meio sem sentido, porque poderíamos ir no dia seguinte. Mas, como diz aquele velho comercial, não basta ser pai, tem que participar. Então, fomos. Foi uma experiência antropológica e comportamental inesquecível.
Chegamos à fila do Drive Thru às 9 da noite. Na verdade, era uma das filas. O posto que escolhemos era nos Jardins, em que várias vielas chegavam ao destino. E era este o problema: cada viela representava um cruzamento. E, como sabemos, cruzamentos sem semáforos e sem agentes de trânsito mostram o melhor e o pior de nós.
Um amigo meu que morou nos EUA conta que lá, quando um farol pifa, automaticamente os motoristas adotam a regra “um lá, um cá”. Ou seja, passa um carro (ou uma fila de carros, se há mais de uma faixa) de uma rua, e então o carro de trás aguarda o carro da outra rua passar. Desse modo, não ocorre o travamento do cruzamento e todos andam. Não sei se é verdade, mas a história é bem contada.
No Brasil, um farol pifado significa cruzamento travado. Não porque as pessoas todas queiram levar vantagem. A grande maioria somos cumpridores da lei e das regras e gostaríamos de viver em um mundo onde todos fossem assim. O problema é a desconfiança mútua: achando que o outro vai querer levar vantagem, eu é que não vou ficar pra trás. Em uma sociedade assim, todos batem no peito e se dizem cumpridores das regras mas, mesmo assim, o cruzamento trava.
Foi o que aconteceu. Alguns mínimos avanços eram seguidos de longas esperas parados. Em um dos cruzamentos, aconteceu a segunda experiência antropológica da noite, já madrugada. Na medida em que nos aproximávamos de um cruzamento, vimos uma senhora e uma moça organizando o trânsito. Achei, em princípio, que eram funcionárias da prefeitura. Chegando lá, descobrimos que eram cidadãs, que haviam descido do carro em que o pai era motorista e estava bem atrás de nós na fila, para, voluntariamente, fazer alguma coisa. Elas contaram que aquele cruzamento estava um caos, com filas duplas e triplas, e elas conseguiram organizar. Aprendi: alguns ficam reclamando ou aceitam passivamente uma situação, enquanto outros arregaçam as mangas para tentar resolver, arriscando a própria integridade física. E digo arriscando a própria integridade para falar da terceira experiência antropológica da noite.
Um dos motoristas sai do carro e vai tirar satisfações com a senhora. Aos berros, diz que ela não tem autoridade para estar ali, que ele estava há horas naquela fila (como se os outros não estivessem igualmente) e que ele iria atropela-la se ela ficasse na frente do carro dele. Há pessoas que entendem o mundo como uma grande conspiração contra os seus direitos e tem pouco senso do que seja viver em sociedade. Ainda bem que é uma minoria. Outros motoristas saíram de seus carros para defendê-la.
Por fim, minha quarta experiência da noite não foi antropológica, mas se refere somente ao bom e velho Brasil: a “grande ideia” de promover a virada da vacina não foi acompanhada do mínimo necessário em estrutura. Havia agentes de trânsito somente no último cruzamento antes de chegar ao posto, deixando ao Deus dará todos os cruzamentos anteriores. A partir dali, tudo muito bem organizado, até com soldados para fazer a triagem inicial. O suficiente para que o prefeito possa bater no peito e dizer que estava tudo “muito bem organizado”. Assim é se assim lhe parece.
Depois de 6 horas na fila e uma temporada inteira de Lupin (recomendo!) assistida no celular, chegamos na mesa para a vacinação. No final, foi uma noite de convivência com os filhos, muitas risadas e aprendizado sobre a natureza humana. E, o que é melhor, estão vacinados. Valeu a pena!