A angústia de Eugênio Bucci

Eugênio Bucci está angustiado com o valor das Big Techs americanas. Afinal, são necessários 3 anos de tudo o que o país produz para comprar essas empresas (pelo menos ele não cometeu o erro básico de comparar “riquezas”).

Destaquei os últimos 3 parágrafos do seu artigo de hoje. Em grande parte, o artigo descreve as explicações usuais para o valor absurdo dessas empresas. Seria basicamente porque dominam a tecnologia do futuro e manipulam bases de dados gigantescas sobre as pessoas a seu favor (esta última explicação é da The Economist). Bucci concorda com essas explicações, mas acha que estão longe de explicar tudo. Ele guarda os últimos parágrafos para descrever a sua explicação do fenômeno. E é essa que nos interessa, pois traduz uma visão comum a muitos.

Segundo Bucci, essas empresas se aproveitam de uma mutação do capitalismo que vem ocorrendo desde meados do século passado: os bens (“coisas úteis”, segundo Bucci) deram lugar aos “signos”. Por signos ele quer dizer marcas, mensagens. Para Bucci, “o capital virou um narrador, um contador de histórias”. E, segundo ele, isso passou a valer mais do que “as coisas úteis”. As Big Techs teriam se apropriado dessa “industrialização da linguagem” que manipula as pessoas, fazendo-as comprar seus “desejos” e não mais suas “necessidades”.

Bem, é difícil até escolher por onde começar. Mas vamos lá.

Bucci se refere a um fenômeno comezinho: o triunfo da publicidade. As pessoas não compram bens, compram marcas. Marcas estas construídas às custas de muito, muito esforço de propaganda ao longo de anos. Sem contar, claro, a qualidade do produto. Mas enfim, a questão é que não se trata de um fenômeno novo. Bucci mesmo diz que vem de meados do século passado. E porque isso aconteceu? Para tanto, precisamos voltar um pouco mais no tempo.

Na década de 20 do século passado, o PIB/capita americano era de cerca de 500 dólares. Hoje, um século depois, é de quase 60 mil dólares. E estamos falando de PIB real, já descontada a inflação do período. O americano médio enriqueceu mais de 100 vezes em um século. Guarde essa informação.

O psicólogo americano Abraham Maslow elaborou uma teoria sobre as necessidades humanas, que ficou conhecida como “pirâmide de Maslow”. A ideia é simples: as pessoas procuram satisfazer primeiramente as suas necessidades básicas, para depois caminharem para o consumo mais sofisticado. Na base da pirâmide de Maslow temos as necessidades fisiológicas (comer, vestir-se, dormir, fazer sexo) e em seguida caminhamos para outras necessidades: segurança, amor e relacionamentos, autoestima e realização pessoal, nessa ordem. Obviamente, o consumo dos mais pobres se limita à base da pirâmide e, à medida que vai enriquecendo, a pessoa vai galgando a pirâmide.

Voltemos ao enriquecimento do cidadão médio americano (e o mesmo vale para todos os países do mundo, em maior ou menor grau). Somos hoje muito, mas muito mais ricos do que éramos há um século. Pessoas pobres em países emergentes hoje têm uma renda e uma qualidade de vida (em termos materiais) superior aos ricos de um século atrás. A renda per capita brasileira hoje é de cerca de 10 mil dólares, cerca de 20 superior à renda nos EUA há um século.

Nesse processo de enriquecimento, galgamos a pirâmide de Maslow. As necessidades das pessoas mudaram com o tempo. Bucci lamenta que o “capitalismo” excite nas pessoas os seus desejos, deixando de lado suas necessidades. Não lhe ocorre que as pessoas já tenham satisfeitas as suas necessidades, e agora querem mais. Todas essas coisas “não úteis” são, na verdade, bem úteis. Aliás, este não é um processo novo.

Quando surgiu a indústria automobilística, carros não eram uma necessidade, eram um luxo. A humanidade poderia viver sem carros, como viveu durante milênios. Mas, uma vez incorporado ao rol de bens que podem ser comprados, o automóvel passou a ser uma “necessidade”. Isso pode ser aplicado a todas as inovações tecnológicas, desde a invenção da roda. Necessário mesmo não é. Afinal, a humanidade viveu sem isso (qualquer inovação) durante milênios.

Mas Bucci, na verdade, contrapõe a mercadoria em si à “ideia de mercadoria”. Ele dá o exemplo do fabricante de tênis que cuida mais da marca do que do próprio tênis. Claro: tênis é uma commodity, qualquer um pode fabricar. Está ali, na base da pirâmide de Maslow (a necessidade de vestir-se). O que as pessoas querem é subir na pirâmide. Não basta um tênis. É preciso comprar o tênis de tal marca, que tem tal qualidade, que é usado por tal atleta. Pode-se criticar essa atitude, mas não se pode negar que exista, e que faz parte da constituição mesma das pessoas. Queremos sempre mais, somos insaciáveis. Essa é a lógica.

O capitalismo não impôs essa lógica, como sugere Bucci. O capitalismo apenas serviu a essa lógica, por isso o seu sucesso. Na verdade, o capitalismo permitiu multiplicar a renda da população global em dezenas de vezes, e esse enriquecimento fez com que as pessoas passassem a exigir coisas mais sofisticadas do que simplesmente “coisas úteis”. Aliás, como dissemos acima, as “coisas inúteis” se tornam úteis e imprescindíveis com o passar do tempo.

Então, a resposta à pergunta angustiada do jornalista (o que afinal produzem essas empresas para valerem tanto) é simples: essas empresas estão no centro da revolução que está levando a humanidade a subir mais um degrau na pirâmide de Maslow. Isso não é novidade. Foi assim com as ferrovias, com o petróleo, com os automóveis. Todas indústrias que estavam no centro de uma revolução. As Big Techs são apenas mais um capítulo dessa história.

E, para finalizar, chamo a atenção para o último parágrafo, em que o autor diz que “o mundo distanciou-se da razão e do espírito”. Bem, há um século o mundo se envolveu em duas guerras mundiais que resultaram em milhões de mortos, inclusive em campos de concentração. E, não muito antes disso, ainda tínhamos escravidão de seres humanos. Não consigo pensar em nada mais longe “da razão e do espírito”. Ao contrário, ao tornar o mundo mais rico, as novas tecnologias permitem que mais pessoas se dediquem “à razão e ao espírito”. Se você acha que vivemos em um mundo brutal, é porque não conhece o que os nossos antepassados viveram.

O Brasil e o controle de epidemias

Hoje topei com este site (GHS Index). Trata-se de uma parceria entre a Economist e a Johns Hopkins Center, que estuda essa questão de epidemias.

Foi uma surpresa para mim. Entre 195 países, o Brasil está em 22o lugar no ranking total de segurança contra epidemias, à frente de países como Itália, Áustria, Nova Zelândia e Israel.

O ranking é formato por 6 quesitos, e o Brasil se sai muito bem ou relativamente bem em 4 deles:

– Prevenção de surgimento ou de liberação de patógenos: 16o lugar.

– Detecção e comunicação rápidas de epidemias com potencial de preocupação global: 12o lugar

– Resposta rápida a e mitigação da propagação de uma epidemia: 9o lugar

– Suficiente e robusto setor de saúde para tratar os doentes e proteger os trabalhadores da saúde: 33o lugar

Nos outros dois quesitos, nossa posição é a de sempre:

– Compromisso de melhorar a capacidade nacional, financiamento e aderência a normas: 135o lugar

– Risco ambiental e vulnerabilidade a ameaças biológicas: 94o lugar

De qualquer forma, trata-se de uma boa notícia de maneira geral: o Brasil tem um sistema de prevenção e resposta a epidemias que se compara com os melhores do mundo, segundo o ranking. O que significa que algo aprendemos com a dengue, chicungunha e zika.

A narrativa do Bolsa Família

A The Economist publica matéria criticando o encolhimento do Bolsa-Família neste primeiro ano do governo Bolsonaro. Segundo a reportagem, que se meteu no sertão do Maranhão para comprovar a eficácia do programa, o cadastro do BF diminuiu em um milhão de beneficiários.

De maneira geral a matéria é correta: coloca como principal vilão da secular desigualdade brasileira os privilégios sugados de um Estado balofo por uma elite corporativista, que grita à primeira tentativa de colocar as coisas em seus devidos lugares. A The Economist até concorda que a reforma da Previdência foi um primeiro passo na resolução deste problema, mas muito tímido diante do desafio de fazer os mais ricos pagarem mais impostos que os mais pobres.

Mas daí, a revista escorrega para a demagogia, colocando o BF como um importante mitigador do problema da desigualdade. Para tanto, se vale de um gráfico com uma suposta correlação entre o número de BFs concedidas e o número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza.

Em primeiro lugar, um gráfico não prova nada. Seria necessário fazer testes estatísticos para provar correlação e, muito mais difícil, causalidade. Construí outro gráfico, com os mesmos dados de pessoas abaixo da linha da pobreza, só que substituindo o número de BFs concedidas pelo PIB brasileiro, em reais.

A “sensação” visual é praticamente a mesma. Aliás, o meu gráfico explica melhor os últimos 4 anos, quando vivemos uma recessão cavalar: o número de BFs concedidas não diminuiu de maneira relevante, mas o número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza aumentou de maneira relevante. O PIB explica melhor este fenômeno.

O título do gráfico diz tudo: “Bolsonaro encolhe o Bolsa”. Está se referindo ao último movimento para baixo da linha azul clara. O que o título esconde mas o gráfico mostra é que o número de BFs está praticamente no mesmo nível desde 2011. Além disso, não é a primeira vez que há diminuição do número de BFs. Mas, enfim, a matéria é para criticar este governo. Então…

Há duas questões envolvidas neste tema. A primeira é que, de fato, um programa como o BF é barato perto do benefício que concede às famílias mais miseráveis, principalmente se há contrapartidas, como manter os filhos na escola. Por isso, é nada menos que burrice o governo Bolsonaro deixar este flanco aberto a críticas. Anunciar o 13o do BF, para se descobrir, no final do ano, que menos pessoas estão recebendo o benefício, foi um tiro no pé.

A segunda questão é que o Brasil está refém do BF. Qualquer diminuição do benefício será criticada enquanto tivermos miseráveis entre nós. É bom nos acostumarmos com isso. Não há porta de saída, este é um programa que existirá para sempre.

A democracia brasileira vai mal

Eugênio Bucci repercute o Índice de Democracia, publicado anualmente pela The Economist. E ele está preocupado. Muito preocupado.

Segundo o jornalista, a nossa democracia vai de mal a pior, e esse índice seria mais uma evidência disso. Por que? Bucci elenca três motivos, a saber: 1) o índice caiu de 6,97 em 2018 para 6,86 em 2019; 2) a nossa democracia é classificada como “falha” pela revista e 3) o item “funcionamento do governo” foi o ponto crítico desta nota ruim, pois recebeu nota 5,36. Principalmente esse terceiro ponto deu margem a que o preocupado jornalista apontasse todos os nazistas debaixo das camas desse governo, conclamando os democratas do país a nos salvar dessa peste.

Os três fatos elencados são verdadeiros, mas a sua relação específica com o governo Bolsonaro é, para dizer o mínimo, forçada. Vejamos.

Em primeiro lugar, é verdade que o índice caiu de 6,97 em 2018 para 6,86 em 2019. Mas o mesmo índice era 6,86 em 2017. Durante o governo Temer, portanto. Então, fica difícil relacionar essa queda especificamente ao governo Bolsonaro.

Em segundo lugar, a classificação da democracia como “falha” vem desde o início da publicação do índice, em 2006. Todos os países que recebem nota entre 6,00 e 7,99 recebem essa classificação. O Brasil nunca teve classificação maior que 7,99. Portanto, “falha” não é uma característica da democracia bolsonarista, mas da democracia brasileira.

Mas é o terceiro ponto que merece maior atenção: este item, “funcionamento do governo” recebeu nota realmente baixa, 5,36. Mas o Brasil recebe esta mesma nota para este quesito desde 2017. Nem mais, nem menos. Portanto, o problema não é o governo Bolsonaro. Aliás, este quesito não está sozinho puxando a nota do país para baixo: “cultura política” recebeu nota 5,0 e “participação política” recebeu nota 6,11, sendo também responsáveis pela nota ruim do Brasil.

Então, o que Bucci está fazendo é instrumentalizar uma ferramenta de análise em favor de sua tese. Danem-se os números, o que importa é demonizar quem eu não gosto.

O pior de tudo é que realmente a democracia brasileira perdeu qualidade nos últimos anos, de acordo com o índice da The Economist. Até 2008, nossa nota era 7,38, passando a ser 7,12 entre 2010 e 2013 e voltando a 7,38 em 2014. A partir daí, foi só ladeira abaixo. E o item que deteriorou este índice a partir de 2015 foi realmente a “qualidade do governo”. No entanto, ao concentrar as críticas nas idiossincrasias de Bolsonaro, o articulista perde a chance de fazer um diagnóstico mais abrangente.

Para entender porque a “qualidade do governo” piorou, é necessário saber no que consiste esse quesito. São 14 perguntas feitas pela The Economist. Vou listá-las aqui para que fique clara a natureza desse quesito (respostas positivas aumentam a nota):

  • 1) As políticas do governo são determinadas pelos representantes eleitos.
  • 2) O parlamento é o corpo político supremo, com uma clara supremacia sobre outros ramos do governo.
  • 3) Há um sistema de checks e balances efetivo.
  • 4) O governo está livre de influência indevida de militares
  • 5) Instituições estrangeiras não determinam as políticas nacionais.
  • 6) Grupos econômicos e religiosos não tem poder paralelo ao governo.
  • 7) Há formas de cobrar o governo entre as eleições.
  • 8 )A autoridade do governo se estende sobre todo o território nacional.
  • 9) O público tem acesso a informações do governo
  • 10) A corrupção não é um grande problema
  • 11) Os servidores públicos implementam as políticas de governo
  • 12) Existe percepção por parte do povo de que se tem livre escolha e controle sobre suas vidas
  • 13) A confiança popular no governo é alta
  • 14) A confiança popular nos partidos políticos é alta

Olhando o conjunto desses itens, parece óbvio que houve uma deterioração da percepção da funcionalidade do governo a partir do evento do Petrolão. Não por coincidência, a nota desse quesito despenca a partir de 2015. Quer dizer, o governo do PT não era um primor de democracia para depois dar lugar a governos autoritários. Ocorreu o justo contrário: os governos do PT plantaram a deterioração posterior, a exemplo do que aconteceu na economia.

Bolsonaro é consequência, não causa da deterioração da democracia brasileira. E não é combatendo os sintomas que se cura uma doença.

Teoria dos jogos e o radicalismo na política

A Economist torce o nariz para os candidatos conservador e trabalhista, anunciando seu apoio aos liberais-democratas. É um pouco como se a imprensa liberal local (o Estadão, por exemplo) anunciasse seu voto em Geraldo Alckmin contra Bolsonaro e Haddad. Tem pouco efeito prático, como se viu nas eleições de 2018.

É até certo ponto um enigma a falta de votos do chamado “centro razoável”. É lugar-comum o raciocínio de que a maior parte do eleitorado não é radical e estaria, portanto, pronta a votar em um candidato “de centro”. Há uma “avenida a ser explorada”, dizem.

Uma pista do porquê do fracasso das alternativas de centro pode ser intuída da própria matéria da Economist. A revista acha “razoável” um aumento “razoável” de gastos públicos com um aumento “razoável” de impostos. O candidato liberal-democrata seria esta alternativa “razoável”.

Ocorre que uma parcela crescente da população não aguenta mais “pagar imposto pra sustentar vagabundo”, enquanto outra parcela quer “que os ricos distribuam sua renda para os pobres”. E esta clivagem, por incrível que pareça, tem pouco a ver com a renda: tem muito pobre muito cioso do seu mérito em ter conseguido o pouco que conseguiu, e tem muito rico com peso em sua consciência social. Se fosse somente uma questão de renda, não precisaria de eleição, bastaria um censo econômico.

Assim, estes dois grupos, ainda que minoritários, põem-se firmemente ao lado de candidatos com ideias radicais. O que acontece com o centro, que de fato é majoritário se comparado aos extremos? Aqui entra um pouco de Teoria dos Jogos: o eleitor de centro, apesar de ser de centro, tem um certo viés para um dos dois lados mais radicais. A sua primeira opção seria o centro, mas uma segunda forte opção é evitar que o “outro lado” vença. Como votar no candidato de centro é assumir o risco de que o outro lado vença, o voto vai para o segundo ótimo, que é o candidato radical do lado “menos ruim”. O eleitor centrista serve então como o fiel da balança entre dois candidatos radicais, mas sem poder para eleger um candidato centrista. Está aí John Nash explicando a polarização atual.

Eleição é emoção. Difícil imaginar um candidato de centro defendendo apaixonadamente um programa de “um pouco mais de impostos para um pouco mais de benefícios sociais”. Somente candidatos radicais conseguem despertar paixões. Alckmin foi o símbolo máximo dessa falta de emoção. O povo, a essa altura do campeonato, quer ver o circo pegar fogo. E os bombeiros do centro vão continuar votando no incendiário menos deletério.

Nós vamos alugar o Brasil

Taí uma ideia da Economist que merece reflexão.

E se vendêssemos a Amazônia para a União Europeia? Só consigo ver vantagens:

– A Europa poderia ela mesma se responsabilizar pela preservação da floresta. Não precisaria mais ficar nas mãos do capitão moto-serra.

– Os moradores da Amazônia se tornariam cidadãos europeus.

– Faríamos fronteira com a Europa, não precisaríamos mais enfrentar um voo transcontinental para visitar o velho continente.

– Não precisaríamos mais subsidiar a Zona Franca de Manaus.

– Pagaríamos a nossa dívida interna, que é de cerca de 1 trilhão de Euros. Acho esse preço bem razoável para garantir o futuro da Amazonia e evitar a catástrofe do aquecimento global, que custaria muito mais caro.

O único senão é deixar um trilhão de Euros nas mãos dos políticos brasileiros. É, talvez seja melhor repensar o plano.