O Estadão traz hoje as fotos de algumas dezenas de pessoas que participaram da invasão de domingo. O ânimo era de “tomada de poder”.
Ontem, conversei com um amigo que tem uma amiga acampada. Ele me contou que sua amiga acha que realmente está participando de um evento histórico, e tem fé absoluta, religiosa, de que vão tomar de volta o poder usurpado pelos comunistas. De alguma forma, fazem-me lembrar os terroristas que buscavam derrubar o regime militar, nas décadas de 60 e 70. Estes, apesar de ateus, tinham uma fé religiosa na marcha da História, que reservava ao comunismo o seu mais alto lugar.
No entanto, as relações de poder em uma sociedade complexa, onde convivem milhões de pessoas em que cada cabeça é uma sentença, é tremendamente mais complexa do que os esquemas simplistas do Bem x Mal que levam a atos como os de domingo.
Uma sociedade complexa se organiza em torno de pactos de poder. O atual, no Brasil, se organiza a partir dos pressupostos de uma democracia representativa, em que o poder é dividido entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Este conjunto de forças exerce o poder não em nome de si mesmo, mas em nome dessa massa amorfa chamada “povo”. O povo se faz presente não somente durante as eleições, mas ao longo do tempo, através de um outro conceito amorfo, ainda que mais restrito, a “opinião pública”. A opinião pública é esse conjunto de forças que não conseguimos dizer de onde vêm e para onde vão, mas que influenciam grandemente o poder formal ao longo do tempo.
Muitos, olhando o quadro atual, poderiam pensar que não há outro jeito de tomar o poder a não ser tomando de assalto o núcleo formal do poder, como sonham os bolsonaristas fanáticos. No entanto, sem o apoio dessa coisa chamada “opinião pública”, nada feito. Vou dar três exemplos.
O primeiro foi a tomada de poder pelos militares em 1964. Não se tratou de uma quartelada pura e simples, mas algo foi muito maior. A deposição de Jango foi feita no Congresso, referendada pelo Supremo e precedida por passeatas gigantes e editoriais furibundos dos principais veículos de imprensa da época. Havia uma espécie de clamor da opinião pública por aquela solução, que os militares somente operacionalizaram.
Passaram-se os anos, os militares tomaram gosto pelo poder e, para lamento dos terroristas que procuravam “tomar o poder”, contavam com grande popularidade em virtude do chamado “milagre econômico”. No entanto, essa popularidade se esvaiu com a inflação, e os ventos da opinião pública, aos poucos, se voltaram contra o regime. Políticos como Ulisses Guimarães e Tancredo Neves conduziram esse processo por dentro das estruturas de poder, o que se mostrou muito mais eficaz do que atentados terroristas. Eles conduziram uma transição de poder com amplo apoio da opinião pública.
Por fim, o impeachment de Dilma Rousseff demonstrou, mais uma vez, que a resolução de problemas de poder se dá quando há alternativas reais de poder e o apoio massivo da opinião pública. Não foi preciso invadir o palácio do Planalto para tirá-la de lá.
O que temos hoje? De que lado está a opinião pública? Basta ler os jornais e ouvir as entrevistas das principais personalidades do país a respeito do que ocorreu no domingo. Definitivamente, a opinião pública não está ao lado dos bolsonaristas radicais, ainda que possam concordar, genericamente, com a sua pauta. Não há, portanto, a mínima chance de movimentos desse tipo prosperarem.
Então, não há solução? Deve-se aceitar bovinamente tudo o que os poderes formais impõem? De maneira alguma. Temos, como cidadãos, o direito de nos opormos ao que achamos errado. Quando a maioria se juntar ao que pensamos, será questão de tempo para que o poder formal mude de mãos. A História não acaba, está sempre em movimento.
Claro que esse tipo de raciocínio pressupõe o tempo. Não se pode ser como a criança que planta um feijão no algodão e chora no dia seguinte porque o feijão ainda é um feijão. Essas mudanças de vento levam tempo, muitos anos, às vezes décadas. Getúlio Vargas ficou 15 anos no poder, os militares 20 e o PT, 13 anos. Para os que não suportam a ideia de tanto tempo com o poder nas mãos “erradas”, trago a má notícia de que a maioria da opinião pública talvez não concorde que o poder esteja nas mãos erradas. No dia em que concordar, será questão de pouco tempo para que o poder mude de mãos.
Eugênio Bucci é um dos principais representantes de uma esquerda autoritária que se quer ver muito democrática. Em artigo de hoje, o professor da ECA-USP exige do jornalismo uma espécie de investigação sobre o fenômeno bolsonarista, no dizer dele, um “regurgitar do arbítrio”.
Bucci é daqueles que veem fascistas debaixo da cama. É só o outro lado da moeda dos que veem comunistas debaixo da cama. Haja cama para esconder tanta gente mal intencionada.
Mas esse não é o principal problema do colunista, cada um com seus delírios. O problema principal está destacado no trecho acima: Bucci convive mal com a escolha política de seus compatriotas. Para ele, “há algo por trás” das pessoas que escolheram livremente votar no candidato que se opôs ao seu preferido. Não exerceram a sua liberdade, foram coagidos por uma espécie de grande complô, financiado por não se sabe que ligações internacionais. Tive, inclusive, que pesquisar o que significa a palavra “janotismo”, que o professor usa para qualificar a simpatia da Faria Lima por Bolsonaro. Significa apenas “preocupação exagerada em vestir-se na moda”, e fiquei pensando qual a relação disso com o fascismo.
Dentro da margem de erro dos institutos, houve um empate técnico nas eleições. Lula é o presidente porque alguém precisa ganhar, nem que seja por um voto, mas o fato é que praticamente metade do país preferia o outro candidato. Bucci exige que o jornalismo faça uma investigação sobre essa metade do país, pois não lhe cabe na cabeça que as pessoas possam escolher Bolsonaro e não Lula. Esta é praticamente a definição de uma mente autoritária, que não admite que outros possam ter opiniões diferentes e exerçam seus direitos políticos de acordo com suas próprias premissas e experiências de vida. O mundo da mente autoritária é sempre dividido entre “nós e eles”, sendo que “eles” são ou mal-intencionados ou incapazes de tomar decisões esclarecidas, sendo apenas massa de manobra.
Bolsonaro não é exemplo de democrata, assim como Lula também não o é. Vivemos no Brasil, onde não conseguimos enterrar 1964 e olhar para frente, nessa espécie de “guerra fria” interminável entre fascistas e comunistas imaginários. Enquanto isso, o Centrão, a tradução mais literal do verdadeiro espírito brasileiro, deita e rola.
Na quinta-feira aconteceu a leitura da Carta em Defesa do Estado Democrático de Direito no Largo de São Francisco. A inspiração, como sabemos, foi a leitura da Carta aos Brasileiros, evento ocorrido há 45 anos.
Procurei nos arquivos da época a repercussão do evento. Chamou-me a atenção o fato de ter havido uma passeata pelas ruas do centro de São Paulo “permitida” pela polícia.
Eram tempos em que, de fato, se arriscava algo ao se posicionar contra o governo de plantão. Na mesma edição do jornal, por exemplo, ficamos sabendo que a polícia havia prendido cerca de 20 pessoas na UnB naquele dia. Fico imaginando a tensão daqueles estudantes, sendo observados de longe por carros “chapa branca”, como menciona a reportagem.
Em comparação, o evento de ontem reflete o Brasil de duas gerações adiante. Ninguém ali presente corria o risco de sair dali preso. O ato não requereu a coragem de 45 anos atrás. Talvez por isso, as reportagens que li foram unânimes em destacar a diversidade religiosa, de gênero e de raça como parte relevante dos discursos. A defesa da democracia em 1977 era questão de sobrevivência física. A de 2022 pode se dar ao luxo de defender pautas identitárias, sinal de que já ultrapassamos o básico na pirâmide de Maslow da democracia.
Mas a fundamental diferença entre as duas manifestações é o adversário: em 1977 havia uma ditadura que tinha, de fato, atropelado qualquer coisa semelhante a um Estado Democrático de Direito. Em 2022, temos um presidente com um discurso mambembe sobre não aceitação dos resultados eleitorais, um espantalho perfeito para engolir novamente o sapo barbudo.
A defesa do Estado Democrático de Direito não se dá no espaço etéreo das ideias, mas em uma realidade política concreta, em que está em jogo o poder político. Em 1977, essa defesa visava canalizar a pressão da cidadania pela entrega do poder por parte dos militares. Em 2022, essa defesa, por mais apartidária que se queira ver, envolve a entrega do poder político a uma das partes. É esta contradição insanável que enfraquece o movimento.
Ontem foi 31 de março, dia da Revolução, nome pelo qual a mudança de regime de 64 era chamada quando eu estava no primário, e a data era comemorada em todas as escolas.
Note que evitei o nome “golpe” para fazer referência ao que aconteceu naqueles dias. Revendo jornais da época, você não vai encontrar essa palavra, por mais que procure. O Estadão, periódico acima de qualquer suspeita quando se trata de defender os valores democráticos, estampa em sua edição de 3 de abril a manchete: “Democratas dominam tôda a Nação”. A palavra “golpe” foi usada somente muitos anos depois, quando o evento sofreu a releitura comandada pelos ventos da história.
Ao chamar de “golpe” a deposição de Jango, a oposição a Bolsonaro perde o “big picture” e se apega a detalhes de fácil refutação histórica. E Bolsonaro, fincando pé nos acontecimentos de 31 de março e ”esquecendo-se” dos mais de 20 anos que se seguiram, perde a chance de se mostrar o democrata que afirma ser.
O verdadeiro golpe não se deu em 31 de março. Aquele movimento foi amplamente apoiado por todas as forças democráticas do país e, como diz Bolsonaro, Castelo Branco foi empossado pelo Congresso Nacional com o apoio de toda a mídia liberal. O golpe veio depois, quando Castelo não cumpriu a sua promessa de chamar novas eleições em 1965. O problema é que, como todo processo político, não há uma data a ser lembrada para esse golpe. Aos poucos, como dizia Magalhães Pinto, as nuvens da política se modificam lentamente e, quando você vai ver, a correlação de forças é outra.
A oposição a Bolsonaro deveria lhe confrontar não a respeito de 31 de março, com a fake news de que Jango foi derrubado fora da lei pelos militares, mas com o que se seguiu após 1965, quando os civis deveriam ter retomado o poder, de acordo com os princípios democráticos que nortearam a deposição de Jango. Ao confundirem as duas coisas, dá espaço a Bolsonaro para rebater facilmente com fatos históricos.
E Bolsonaro, se de fato tivesse a intenção de se mostrar um democrata, deveria condenar o regime que se seguiu ao não cumprimento da promessa de novas eleições em 1965. Ao não fazer isso e se apegar aos acontecimentos de 31 de março como representativos dos 20 anos seguintes, dá amplo espaço aos que duvidam de suas convicções democráticas. O fato de, até hoje, não ter atentado contra as instituições, não lhe serve de álibi, pois sabemos que atos são a combinação de convicção, instrumentos e oportunidade. Não ter dado o golpe não diz nada sobre a sua falta de convicção, mas somente sobre a falta de instrumentos e oportunidade. A sua convicção pode ser medida pela ausência de condenação aos 20 anos da ditadura militar.
Enfim, os dois lados dessa disputa erram ao se fixar na data de ontem. Apesar de marcar a queda de Jango, o início do novo regime somente se dá em algum momento de 1965. É neste ponto que ambos os lados deveriam focar seu embate.
Se nem sobre a data de um fato histórico conseguimos chegar a um acordo, quanto mais a respeito de sua natureza.
Na minha infância não era golpe nem tampouco contragolpe. Era “Revolução”. A Revolução de 31 de março. Para não brigar, usarei neste artigo o termo “evento”, para não ferir suscetibilidades. Ou para ferir todas.
Tenho algumas lembranças esparsas desse tempo. Lembro, por exemplo, de uma multidão aglomerada em frente à minha escola, na avenida Tiradentes, em São Paulo, acenando para um comboio de carros pretos passando. Eu estava com minha mãe, que também acenava, entre alegre e excitada. Ela me explicou: era o presidente da República passando. Hoje penso que ele certamente estava indo para o aeroporto, pois a avenida Tiradentes faz parte do eixo que liga a zona Norte à zona Sul, onde fica Congonhas. Aquela multidão alegre saudava Emílio Garrastazu Médici, o terceiro general presidente. O regime era popular.
Outra lembrança também está relacionada com a escola. Fazíamos semanalmente a cerimônia de hasteamento da bandeira no pátio da escola. Todas as turmas enfileiradas cantavam, então, o hino nacional. Era obrigação de todos saber a letra de cor, mas havia sempre alguém que destoava, cantando “no teu seio” ao invés do correto “em teu seio”. A diretoria resolveu fazer uma espécie de auditoria, e foi de sala em sala para verificar como cada turma cantava o hino. Lembro que estava na 4a série, pois a minha professora chamava-se Norma, nome que depois achei bem adequado para o momento. A minha turma cantou tão bem que depois fomos em turnê por várias salas demonstrando como se cantava o hino. O regime era patriota.
Mais uma lembrança, mais uma vez relacionada com a escola, como não podia deixar de ser. Estava fazendo um trabalho sobre os presidentes do Brasil. Na época, não havia computador nem muito menos Google. Os trabalhos eram feitos em folha almaço, com base nos livros e enciclopédias. Eu tinha a Delta Larrousse em casa, e copiei as informações sobre os presidentes. Mas faltavam as ilustrações. Na época, as papelarias vendiam figuras históricas autocolantes, justamente para esses trabalhos escolares. Fui até a papelaria perto de casa, e o atendente foi me entregando as figuras dos presidentes: Médici, Costa e Silva, Castelo Branco, Jânio, Juscelino, … Daí eu notei que estava faltando a figura do João Goulart. Fiz notar essa falta ao atendente, e do gesto dele não me esqueço: com o dedo indicador nos lábios, ele me diz para falar baixo, achando graça da minha ingenuidade. Meu trabalho ficou sem a imagem do Jango. O regime era censor.
Mas essas são apenas sensações infantis. O que dizem os que eram adultos na época? Assim como as crianças, os adultos tendem a se lembrar de coisas que marcaram as suas vidas. E pintam essas coisas com as cores de suas preferências políticas e ideológicas. Para tentar fugir dessa armadilha, pesquisei os jornais da época em busca daquilo que os políticos e os formadores de opinião diziam a respeito do evento. Usei, para tanto, o acervo do Estadão, jornal acima de qualquer suspeita em relação às suas convicções democráticas. Topei com coisas bastante interessantes.
Em primeiro lugar, a deposição de Goulart era quase uma unanimidade na classe política da época. A ilustrar este ponto, é interessante ler o manifesto assinado pelo então ex-presidente Juscelino Kubitscheck, em 30/03/1964, cujas credenciais democráticas estão acima de qualquer suspeita. Kubitscheck não era da então raivosa UDN de Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, mas sim do PSD, o que atualmente poderíamos classificar como centro-esquerda, tipo PSDB.
Destaco as seguintes frases: “… o nosso apelo de paz é um apelo para que se restabeleçam em sua pureza total a disciplina e a hierarquia”. “Neste momento, tenho a responsabilidade histórica de apontar onde está a legalidade, que cumpre defender com coragem e sem ódios. […] A legalidade está onde estão a disciplina e a hierarquia”. “A casa brasileira estaria irremediavelmente dividida se as Forças Armadas se dividissem em lealdades distintas e antagônicas”. “Salvemos a paz do Brasil, salvando a única legalidade possível”.
Juscelino estava se referindo ao apoio que João Goulart havia dado a uma sublevação de marinheiros, ocorrida 3 dias antes, por maiores soldos e melhores condições de trabalho. Reinvindicações sindicalistas, portanto. E o então presidente, fiel à sua base de apoio, decidiu apoiar o movimento.
Esta foi a gota d’água de uma série de acontecimentos que levaram grande parte do establishment político e empresarial a temer que o Brasil pudesse estar sendo levado, aos poucos, para a órbita soviética. Estávamos em plena Guerra Fria, e era este o contexto. Mas quero chamar a atenção é para o caráter democrático que este mesmo establishment deu ao evento de 31 de março (ou 1º de abril, já chegaremos lá).
Em todo o país, grupos políticos e empresariais se manifestaram em favor de algum tipo de intervenção, como podemos ver nessas manchetes dos dias 31/03 e 01/04/1964:
A intervenção militar se deu após o discurso de Goulart no Automóvel Clube do RJ para sargentos do exército, no dia 30/03/1964. Nesse discurso, Jango reitera sua posição no affair da Marinha de Guerra, afirmando que a disciplina militar deve ser uma “disciplina consciente, fundada no respeito recíproco entre comandantes e comandados”. Palavras bonitas, mas facilmente interpretadas como um convite à sublevação. Além disso, o discurso é forte não somente contra as elites empresariais, como também contra os “donos de apartamentos em Copacabana, que estão cobrando aluguéis em dólares” e os “comerciantes desonestos”. Enfim, um repto contra a iniciativa privada.
Todas as manchetes saúdam o evento como uma “vitória da democracia” com amplo apoio popular.
A legalidade do movimento está estampada na capa do Estadão de 3 de abril, com a foto da posse de Ranieri Mazzilli, então presidente da Câmara, como presidente da República interino, até a eleição, pelo Congresso, de um nome que pudesse completar o mandato de Goulart, que terminaria no final do ano seguinte. Note que temos a presença do presidente do STF e do presidente do Congresso a dar o ar de legalidade necessário ao ato.
Obviamente, tratou-se do arranjo político possível. A solução do impeachment não pareceu, à época, razoável, dado o precipitar dos acontecimentos. Declarou-se a “vacância” do cargo de presidente, pois João Goulart havia fugido para o Rio Grande do Sul e, daí, para o Uruguai. Com a sede do poder vacante, tudo o que se seguiu foi absolutamente constitucional. O fato de a sede ter se tornado vacante porque o aparelho militar obrigou o presidente a fugir, senão seria preso, é apenas um detalhe que não preocupou, de maneira alguma, os democratas da época.
O editorial do Estadão do dia 02/04/1964 não deixa margem a dúvidas: “a democracia brasileira venceu a ditadura”.
Aliás, a dúvida se esclarece: o movimento teve a sua resolução no dia 01/04/1964. Como ficaria muito feio identificar uma revolução tão bonita com o Dia da Mentira, mentiram sobre a data, colocando-a no dia 31/03/1964. E assim ficou.
Interessante também observar como a imprensa estrangeira repercutiu o evento. Nesse sentido, vale a pena ler o resumo que faz o Estadão em artigo de capa no dia 03/04/1964 (sem assinatura, do que se deduz que se trata de uma espécie de editorial):
Salta aos olhos a dicotomia entre “mundo livre” e “mundo comunista”, que era a regra de então. No “mundo livre”, o evento teria sido recebido como um “movimento destinado a impedir que o comunismo internacional […] conquistasse um ponto-chave da América Latina”. Já nos países comunistas, a cobertura não passa de “uma reedição dos velhos chavões da intervenção norte-americana no País”. Enfim, fica claríssimo o pano de fundo em que se desenrolou o evento.
Mas não foi em todo o “mundo livre” que o evento foi recebido com festa. Gilles Lapouge, correspondente do Estadão em Paris, escreve, em 02/04/1964, um artigo intitulado “Mal informados os europeus sobre a situação no Brasil”.
Vale a pena destacar a seguinte frase: “Ora, os europeus pensam, naturalmente, que o Exército brasileiro é semelhante a todos os exércitos do mundo, ao da França, por exemplo, ávido por golpes de força e de ditadura, enquanto, na verdade, tanto no passado quanto no presente, o Exército brasileiro deu provas de seu senso cívico e de uma escrupulosa adesão à democracia”. Isso é Gilles Lapouge, um verdadeiro porta-voz dos ideais democráticos. Lapouge recomenda, no artigo, que o governo brasileiro realize um trabalho de esclarecimento junto à opinião pública europeia, para convencê-los de que o que se deu não foi mais uma “quartelada latino-americana”. Qualquer semelhança com a imagem do Brasil após o impeachment de Dilma Rousseff não é mera coincidência.
Termino essa viagem no tempo com um editorial do Estadão do dia 04/04/1964, para dirimir de vez a questão da nomenclatura do evento de 01/04/1964:
“Espírito revolucionário”. Portanto, é de revolução que se trata, não golpe ou contragolpe. Não foi uma palavra inventada pelos militares, mas pelo establishment e seus porta-vozes na imprensa. O golpe veio depois, quando os militares resolveram, em consonância com o “espírito revolucionário”, não largarem o osso em 1965.
De quebra, o Estadão defende que o presidente ideal para o mandato tampão seja o marechal Castelo Branco. Outra evidência de que a eleição de um militar (Castelo foi eleito pelo Congresso) estava em consonância com os tempos, não foi uma imposição dos militares.
É sempre recomendável procurar analisar os fatos históricos com os olhos de quem os viveu. É o que procurei fazer nesse artigo. Com base nas evidências aqui apresentadas, parece ser claro que o establishment político e econômico da época, com todo o apoio da classe média, removeu do poder um presidente constitucionalmente legítimo, vendo nisso o suprassumo da democracia. Os militares foram parte ativa do evento, mas estavam longe de ser a única força envolvida. O golpe foi a resposta a uma situação política insustentável: um presidente confuso, que não dava mais as cartas do jogo, que ameaçava jogar o país em um caos institucional ao insuflar o baixo oficialato, com o objetivo de agregá-lo à sua agenda, flertando com uma virada de mesa.
Hmmmm… Um presidente confuso, que não dá mais as cartas do jogo, que ameaça o país com um caos institucional ao insuflar o baixo oficialato, com o objetivo de agregá-lo à sua agenda, flertando com uma virada de mesa. O establishment político e econômico, inquieto. Jango, é você?
– Flávio Bolsonaro elogia a política, os políticos e a negociação em pronunciamento no Senado.
– Maia e o Centrão decidem, ao que tudo indica, aprovar a MP da reforma ministerial.
– O porta-voz da presidência afirma que as manifestações de domingo devem ser a favor das reformas e não contra as instituições.
São os lances de hoje nessa peça onde cada ator estica a corda mas toma o cuidado de não arrebenta-la.
Faz-me lembrar, por contraste, os momentos finais de João Goulart. Imprudentemente, Goulart esticou a corda demais, acreditando que o povo estava com ele. Resultado: acabou arrebentando para o seu lado.
Bolsonaro e o Congresso, aparentemente, não estão dispostos a cometer o mesmo erro de avaliação. Por isso, esse “morde e assopra”. Hoje foi o dia do “assopra”. Tudo é cálculo político.
Os trechos que vocês estão lendo abaixo não foram retirados de um dos livros aprovados pelo MEC. Estes trechos vieram direto da página da Câmara dos Deputados dedicada a explicar História do Brasil para crianças.
Com o Plenarinho, a petizada poderá aprender que Getúlio Vargas liderou uma Revolução em 1930, enquanto os militares deram um Golpe em 1964. E os militares, como você sabe, são muito maus, e torturaram e mataram gente. Já Getúlio Vargas liderou uma “ditadura”, assim, entre aspas, e não torturou nem matou ninguém.
A gurizada também vai aprender que Luís Carlos Prestes queria somente melhorar a vida dos brasileiros, enquanto os fascistas queriam…, bem queriam mandar sozinhos.
A Câmara dos Deputados está de parabéns por proporcionar às crianças do nosso Brasil uma leitura isenta da história do País.
A seguir, vou transcrever o manifesto que Juscelino Kubitschek fez à Nação no dia 31/03/1964. Guardadas as devidas proporções, JK era o FHC da época: um democrata de esquerda, ex-presidente da República.
Para contextualizar, JK se refere à insubordinação dos marinheiros, apoiados por Jango. Com seu manifesto, JK iguala legalidade com hierarquia, colocando-se firmemente no campo daqueles que não viam outra saída a não ser depor Jango. A palavra “legalidade” é importante no contexto, pois Brizola usava esta palavra para defender a continuidade do governo, com tudo o que isto significava.
JK era um golpista? Julguem vocês mesmos.
“Na hora grave que vive a Federação brasileira, é meu dever e de todos os patriotas, dirigir apelo de paz ao governo e à Nação.
O divórcio que hoje separa brasileiros não poderá persistir sem risco de sangue generoso.
Apelo de paz que é imperativo que ela ressurja em todos os corações, inquietos e ameaçados, por ser sensíveis aos perigos colocando a frente dos inimigos de qualquer ordem e de qualquer paz.
Portanto o nosso apelo de paz é um apelo para que se restabeleçam em sua pureza total a disciplina e a hierarquia.
Tenho autoridade pelo meu passado de legalista, fiel a todas as regras da prática de Democracia representativa, e desvinculado por isso de qualquer suspeição de simpatias e tendências golpistas e reacionárias, político progressista tolerante, aberto às exigências da ascensão das massas populares, para dizer em voz alta e tranquila onde está a legalidade una e indivisível.
Neste momento, tenho a responsabilidade histórica de apontar onde está a legalidade, que cumpre defender com coragem e sem ódios.
É o que fazemos agora, na condição de ex-chefe de Estado e senador da República.
A legalidade está onde estão a disciplina e a hierarquia.
Não há legalidade sem Forças Armadas, íntegras e respeitadas em seus fundamentos.
A legalidade exige, pois que primeiro, se restabeleçam a confiança e paz nos quartéis, nos navios e nos aviões.
A casa brasileira estaria irremediavelmente dividida se as Forças Armadas se dividissem em lealdades distintas e antagônicas, geradoras de legalidades múltiplas e também antagônicas.
Salvemos a paz do Brasil, salvando a única legalidade possível.
Conclamamos todos os homens de boa vontade. Ainda é tempo de salvar a paz e a legalidade, restabelecendo a disciplina e a hierarquia por amor à Pátria, aos brasileiros e a Deus.”
Eugênio Bucci nunca me decepciona. Dessa vez não foi diferente.
No final de um artigo em que desanca Bolsonaro por suas falas no momento do impeachment e contra a deputada Maria do Rosário, o professor da ECA-USP falseia a história para que caiba em sua narrativa.
Ao defender a ditadura militar, Bolsonaro estaria atingindo o alicerce mesmo da frágil democracia brasileira, a saber, o consenso de que houve tortura e ditadura praticadas pelo Estado brasileiro.
É uma bela narrativa. Pena que seja falsa.
O consenso que permitiu a volta do regime democrático foi uma anistia ampla, geral e irrestrita para ambos os lados da contenda. A anistia foi o que permitiu serenidade de ânimos para que pudéssemos seguir em frente. Foi diferente, por exemplo, na Alemanha, onde a condenação ao nazismo permitiu o ressurgimento do país aos olhos do mundo e de si mesmo.
Seria como se outro dissesse que a democracia brasileira repousa sobre o consenso de que a esquerda brasileira queria implantar uma ditadura comunista no Brasil, e que qualquer dissenso sobre isso seria uma grave ameaça às nossas instituições.
Quero deixar claro que, assim como Bucci, acho as falas de Bolsonaro inaceitáveis. Isso é uma coisa. Outra coisa é dizer que houve consenso sobre aquele período tenebroso da história. Tanto não houve, que Bolsonaro tem 30% de intenções de voto, mesmo falando tudo o que ele fala. Ou, talvez, por tudo o que ele fala.
Houve uma anistia ampla, geral e irrestrita, que é a forma brasileira de resolver conflitos. Mas esse assunto insiste em não morrer, e por culpa única e exclusivamente das esquerdas, que insistem em Comissões da Verdade e punições, em clara afronta ao consenso primordial, qual seja, a anistia.
Bolsonaro é apenas a reação encarnada à tentativa de empurrar goela abaixo da sociedade um consenso que não houve.