Não se salva nada

Está se formando um consenso de que a parte geopolítica da viagem de Lula à China foi um desastre, ao confrontar, sem nenhuma necessidade, os Estados Unidos na questão do dólar, e o mundo ocidental democrático, na questão da Ucrânia. Até Eliane Cantanhêde, passadora de pano contumaz, chegou a essa conclusão.

Mas, pelo menos, a viagem serviu para aprofundar os laços comerciais, abrindo novas portas aos nossos empresários. Será?

O jornalista Lourival Sant’Anna levanta outro aspecto interessante das relações Brasil-China: a nossa dependência do gigante asiático. Em 2016, último ano do período PT no governo, o Brasil exportou US$ 35 bilhões para a China, ou 19,5% das nossas exportações. Seis anos depois, passados os governos Temer e Bolsonaro, o Brasil exportou, em 2022, US$ 89,4 bilhões, ou 26,8% das nossas exportações. A pergunta é: quanto mais nos interessa aumentar essa dependência? Do ponto de vista estratégico, não seria melhor Lula estar se dedicando a diversificar o destino de nossas exportações, ao invés de aprofundar ainda mais a nossa dependência da China?

Sob esse aspecto, a viagem de Lula também parece um equívoco. Ou seja, não se salva nada.

A janjificação do governo Lula 3

Lula visitou a China em 2004 e 2009. Dilma fez o mesmo em 2011. Essas foram as três visitas oficiais ao gigante asiático em 13 anos de governos petistas. Se passearmos um pouco pelos jornais da época, notaremos que o foco era principalmente comercial. O único aspecto geopolítico referia-se à pretensão do Brasil de ocupar uma vaga permanente em um Conselho de Segurança da ONU reformulado. Essa agenda aparece nas visitas de 2009 e 2011. A China apoiava a pretensão brasileira, ao menos de boca.

Nesta visita de 2023, a agenda comercial também aparece, mas é ofuscada por um alinhamento à China em sua guerra fria contra a ordem imperialista americana. Ops, estadunidense. Os estadunidenses querem o dólar e não querem a paz. O Brasil e a China, assim como a Rússia, não querem o dólar e querem a paz. Então, nada mais natural do que alinhar-se à China e à Rússia, nessa busca pelo substituto do dólar e pela paz.

Há quem diga tratar-se de pragmatismo. Afinal, a China é nosso maior parceiro comercial, e nada mais pragmático do que amaciar o ego de Xi Jinping (na verdade pensei em outra ação, impublicável). Mas talvez, só talvez, fosse possível fazer isso sem necessariamente confrontar uzamericanu. O discurso de Lula tem mais semelhança com o de um presidente de grêmio estudantil do que o de um chefe de Estado. Afinal, se a China é um parceiraço, os americanos e os europeus não deixam de sê-lo também. Difícil alcançar o que o Brasil ganha perdendo a confiança do Ocidente.

De qualquer forma, Lula 3 continua sendo absolutamente coerente. Seu discurso sofreu uma “janjificação”, processo em que a radicalização juvenil se sobrepõe ao pragmatismo que marcou seus dois primeiros mandatos. Talvez seja melhor assim. Pelo menos, ninguém pode dizer que foi enganado.

Sempre tem espaço pra mais um

A Avibrás é uma empresa privada fundada na década de 60 por engenheiros do ITA. Dedica-se à fabricação de armamentos militares. Já pediu concordata três vezes: em 1990, em 2008 e há um ano, em março de 2022. Já pode pedir música no Fantástico.

Note que os três anos em que a empresa pediu concordata foram anos de grandes choques econômicos: Plano Collor, crise financeira do subprime e, agora, a pandemia. Note também que a concordata (hoje chamada de Recuperação Judicial) foi pedida antes de o BC iniciar a escalada dos juros. Pelo menos este cadáver não tem as digitais de Roberto Campos.

Notinha hoje no jornal traz ao nosso conhecimento de que o governo do PT está muito preocupado com a possibilidade de que o controle da Avibrás passe ao domínio estrangeiro.

Teríamos, então, uma empresa estratégica, importantíssima para a soberania brasileira, em mãos alienígenas. Por isso, o BNDES já está preparando uma grande estratégia de proteção a este setor. Que, claro, envolveria exceções tributárias a serem incluídas naquela reforma que, diz a lenda, viria para acabar com as exceções que infernizam a vida das empresas.

Mas voltemos à importância estratégica da Avibrás. Fui buscar nos balanços da empresa a fonte de seu faturamento. O último balanço publicado foi o de 2021, e a empresa só começou a abrir a origem de seu faturamento a partir de 2016. O gráfico mostrando esse break-down está abaixo.

Observe como o governo brasileiro vem sendo responsável por uma parte muito pequena do faturamento da empresa nos últimos anos. Quando a demanda internacional sumiu a partir de 2021, a empresa quebrou. Ou seja, somente a demanda nacional não foi capaz de sustentar a empresa.

Como o governo poderia ajudar a empresa? De duas formas:

1) Aumentando a demanda doméstica por armamentos militares. Em 2019, o governo Bolsonaro capitalizou a Emgepron (Empresa Gerencial de Projetos Navais) com nada menos que R$ 7,6 bilhões para que a Marinha pudesse construir navios. Tenho certeza que o governo do PT não se deixará vencer na preocupação com nossa soberania nacional nessa área, brindando a Avibrás com contratos bilionários, e não as migalhas que o governo brasileiro vem gastando nos últimos anos.

2) O BNDES entrando como agente financiador de compradores externos. Imagine os negócios que a Avibrás poderia fechar com parceiros preferenciais, como Venezuela, Nicarágua e Angola, a juros módicos dentro do programa “a defesa é nossa”. Segundo o último balanço, o BNDES representa apenas 14% da dívida da empresa. Há, portanto, muito espaço aí para ajudar.

Sim, amigos, o Brasil é um país grande, com grandes necessidades. Quando você acha que todas foram atendidas, aparece mais uma no jornal. Nada que não possa ser acomodado com mais um pouquinho de aumento de carga tributária.

Qual a surpresa?

Qual a surpresa? Surpresa haveria se Lula continuasse com o programa de desestatizações. Surpresa houve quando o estatista de quatro costados, Itamar Franco, privatizou a CSN em 1993, a empresa símbolo do Estado empreendedor.

Na verdade, estamos colhendo os frutos da inoperância do “único governo verdadeiramente liberal da história do Brasil”. Guedes assumiu o ministério da Fazenda falando em R$ 1 trilhão em privatizações e venda de imóveis. Chegamos ao fim de seu governo com apenas uma das 15 estatais incluídas no Plano Nacional de Desestatização, a Eletrobras, que já tinha sido colocada na marca do pênalti pelo governo Temer, e só foi privatizada depois que o Congresso pendurou uma “manada” de jabutis no projeto, como recentemente se referiu ao coletivo do quelônio o ministro Haddad.

As outras 14 empresas na lista (Docas do ES, ABGF, Emgea, CBTU/BH, Trensurb, Ceagesp, Casa da Moeda, Serpro, Dataprev, Ceitec, Nuclep, Docas da BA, Correios e EBC) ficaram para as calendas. Como comparação, o “comunista” FHC vendeu “só” a Vale, todo o sistema Telebrás e mais 19 outras empresas menores em seu primeiro mandato.

Lula só está seguindo o seu programa de governo, não deveria ser surpresa para ninguém. Surpresa foi o desempenho pífio do governo Bolsonaro neste campo. Aliás, se há alguma surpresa, é positiva: Lula poderia ter retirado todas as 14 empresas da lista acima, não somente 7. Poderia, inclusive, ter encerrado o PND e estabelecido o PNE – Plano Nacional de Estatização. Seria congruente com seu programa e seu discurso. Podemos dizer que, em termos de privatizações, Lula está sendo mais liberal na prática do que no discurso. Ao contrário de Bolsonaro.

PS.: não adianta vir aqui e mostrar os bilhões de reais obtidos pela venda de participações minoritárias do BNDES, ou a venda de subsidiárias e refinarias da Petrobras. Isso não é venda de controle por parte da União, que é o objeto do PND.

O Desenrola está enrolado

No início de março, escrevi um post sobre o Desenrola, programa do governo de alívio das dívidas. Naquele post, comentava que o programa havia sido apresentado ao presidente, e que “só faltava” um “sistema” para implementá-lo. O secretário de Política Econômica até havia saído antes de a reunião com o presidente terminar, em busca de uma estimativa de tempo para a confecção do tal “sistema”, tal era a urgência da coisa.

Hoje, um mês depois, o ministro da Fazenda afirma que há um “problema operacional”: falta o tal “sistema” para que ”o credor encontre o devedor”.

Confesso que não entendi direito o problema. Um programa desses normalmente consiste em os bancos venderem os créditos podres com desconto, limpando assim seus balanços para voltarem a dar crédito. O Desenrola poderia ser uma espécie de ”fundo garantidor” para que os novos credores considerassem aquele crédito pago, e “desnegativassem” os devedores. Assim, se esses devedores não pagassem a dívida, o Tesouro cobriria. Esse mecanismo só funcionaria, claro, se houvesse previsão orçamentária, coisa que não há. Então, deve ser outra coisa, que envolve “o credor encontrar o devedor”, o que quer que isso signifique.

É de chorar o amadorismo dessa equipe do ministério da Fazenda. O Desenrola é só o exemplo mais pitoresco. A apresentação do arcabouço fiscal, em um powerpoint tosco e cheio de furos, é um outro exemplo, esse bem mais sério. Fico cá imaginando como seria essa equipe comandando o Plano Real, desde a concepção e implantação da URV até a transformação na nova moeda. Aliás, não quero nem imaginar.

A regra era clara

“Pode isso, Arnaldo?”

Esse bordão de Galvão Bueno talvez tenha sido o mais famoso de sua longa carreira, ao perguntar ao ex-juiz de futebol, Arnaldo César Coelho, sua opinião a respeito de algum lance controverso. Invariavelmente, Arnaldo começava a sua resposta com outro bordão: “a regra é clara”.

No caso do marco do saneamento aprovado em 2020, a regra também era clara: caso as empresas estatais de saneamento não apresentassem condições econômico-financeiras para fazer os investimentos necessários tendo como meta a universalização dos serviços até 2033, os Estados e municípios deveriam conceder o serviço a empresas com a dita capacidade.

Até o momento, já forma assinados, dentro do novo marco, mais de R$ 600 bilhões em contratos de concessão. No entanto, Estados e municípios, cujas estatais atendem a mais de 1000 municípios brasileiros, continuavam irregulares e resistiam a conceder os serviços à iniciativa privada. Foi “em socorro” a essas estatais que o governo Lula decretou a extensão do prazo para provar capacidade econômico-financeira. Agora, as empresas terão até o final desse ano para mostrar que têm capacidade de investimento e, caso não consigam, podem mostrar um “plano” para atingir tal capacidade em um horizonte de 5 anos. Ou seja, fica tudo como está e voltamos a conversar em 2029.

Lula, em sua blablação sobre o decreto, afirmou que estava dando um “voto de confiança” na capacidade das estatais. Ou seja, agora vai, apesar de não ter ido nas últimas várias décadas. O curioso é observar a ideologia se sobrepondo a dois objetivos manifestos deste governo: o aumento do volume de investimentos e a melhora nas condições de vida dos mais pobres. Está aqui, desenhado no detalhe, o processo descrito por Daron Acemoglu de captura do Estado pelas elites. O governo do PT, cegado pela ideologia, age em defesa das elites políticas e de funcionários públicos que se aproveitam dessas estatais, destruindo valor e concentrando renda.

Por fim, ao contrário do futebol, em que as regras são perenes, no Brasil a regra nunca é clara. Essa insegurança afasta investimentos, aumentando a taxa de retorno requerida pelos investidores para compensar o risco institucional. A pobreza brasileira não é obra do acaso.

A agência de checagem governamental: bem-vindo à URSS

O governo federal acaba de lançar uma “plataforma de checagem de informações“, no melhor estilo “agência de checagem”, com direito a um filmete de apresentação de 1 minuto (coloquei o link nos comentários).

Antes de entrar na “plataforma” propriamente dita, vale comentar o filmete, pois o contraste com o conteúdo da “plataforma” é chocante.

Em um minuto, o filmete publicitário manda as seguintes mensagens:

1. Os brasileiros precisam se unir contra o ódio

2. Informações falsas podem destruir a democracia

3. Informações falsas podem destruir famílias

4. Informações falsas podem destruir reputações

5. Informações falsas podem destruir vidas

6. É hora de frear o ódio

7. É hora de parar de repassar informações falsas

8. Quem espalha fake news, espalha destruição

Tudo isso embalado em muito choro, sorrisos, abraços, enfim, um clima bem emotivo.

Aí, você vai até a “plataforma”. O que você encontra? Uma série de refutações de “notícias falsas” contra o próprio governo e, claro, contra Lula.

Alguns exemplos:

“É falso que governo Lula mandou desligar bombas do São Francisco”

“É falso que ministério da Fazendo vai taxar setor de games”

“É falso que Lula levou mais de 400 presentes da Presidência”

E por aí vai. Tem espaço, inclusive, para “esclarecimentos” do governo. Por exemplo:

“Governo Federal esclarece sobre live com primeira-dama em canal no youtube”

“Esclarecimentos sobre os dados de desmatamento na Amazônia Legal jan/fev 2023”

Vários desses desmentidos são reproduções de levantamentos já anteriormente feitos por agências de checagem. Fica a questão: o governo irá reproduzir todos os desmentidos, ou somente aqueles que lhe interessam?

Alguns “esclarecimentos” são mero pretexto para exercer a hagiografia do presidente. Por exemplo:

“Presidente não disse que pobre deve esperar ajuda do governo.

A frase tirada de contexto, em vídeos editados postados em redes sociais, transmite uma ideia que não condiz nem com o legado e nem com a missão do presidente Luíz Inácio Lula da Silva”.

E, finalmente, como não poderia deixar de ser, não falta espaço também para fake news. Por exemplo, quando a “plataforma” refuta a notícia de que Ludmila teria recebido R$ 5 milhões da Lei Rouanet. Na verdade, foi a Lei do Audiovisual, mas a frase que finaliza o esclarecimento é fake: “Vale lembrar que nem a Lei do Audiovisual e nem a Lei Rouanet têm recursos transferidos diretamente do Tesouro previstos no Orçamento. Ou seja: o governo não tira dinheiro de outras áreas para financiar a cultura do país”. A verdade é que tira sim: isso se chama “gasto tributário”, em que o governo abre mão de impostos para fomentar alguma política pública. E “gastos tributários” estão previstos no orçamento. Se não fosse gasto, estaria criada a fonte da eterna juventude, em que se pode ter todos os bens do mundo sem gasto nenhum.

Em resumo: para quem acreditou no filmete, e esperava, finalmente, um Brasil livre das fake news, onde o leite e o mel correriam livremente, recebeu uma página em que o governo se defende. É o governo determinando como as notícias sobre si próprio devem ser corretamente interpretadas. Se isso não é autoritário, então perdi o sentido das palavras.

Popularidade de Lula em queda

O Globo repercute pesquisa IPEC de popularidade de Lula. A manchete compara com o início do mandato de Bolsonaro e com o início dos mandatos anteriores do próprio Lula. A única coisa que não faz é comparar com o número anterior do próprio Lula, de janeiro. E essa é a única comparação que importa.

Em janeiro, o próprio IPEC divulgou pesquisa em que dava 55% de ótimo/bom e 21% de ruim/péssimo para Lula. Aprovação líquida: +34 pontos percentuais. Hoje, o mesmo instituto dá 41% de ótimo/bom e 24% de ruim/péssimo. Aprovação líquida: +17 pontos percentuais, queda de 17 pontos percentuais em dois meses.

É normal que haja queda de aprovação no início do governo. Uma coisa são as expectativas, outra bem diferente é o dia a dia do governo. No início do governo Bolsonaro, pesquisa da XP/Ipespe indicou queda de +20 para +13 pontos percentuais entre janeiro e março de 2019. No entanto, queda de 17 pontos percentuais, como é o caso agora, parece ser acima do normal.

Vamos aguardar as próximas pesquisas de popularidade. Se indicarem quedas adicionais, vamos conhecer o que é populismo de verdade.

A Lei de Newton aplicada à economia

Esse caso do novo limite de juros para o crédito consignado é um dos raros exemplos, raríssimos mesmo, em que uma ação governamental tem efeito imediato sobre as decisões dos agentes econômicos. No caso, a relação de causa e efeito foi óbvia e à vista de todos: a oferta cessou imediatamente após o estabelecimento do preço em patamar artificial.

Nem sempre é assim. Aliás, quase nunca é assim. Decisões governamentais no âmbito econômico costumam levar meses, ou mesmo anos, para mostrar todas as suas consequências. Isso acontece porque a economia segue a lei de Newton (a toda ação segue uma reação de igual força na direção contrária), mas com defasagens temporais. Os agentes econômicos não são bolinhas rígidas em uma mesa de bilhar. Antes, são seres humanos que tomam decisões em ambientes de incerteza e com informação incompleta. Alguns são mais rápidos, outros são mais lentos, outros ainda simplesmente tomam a decisão errada. Mas isso não impede que, ao fim e ao cabo, as decisões governamentais tenham o seu efeito (benéfico ou deletério) sobre o ambiente macroeconômico.

Essa defasagem entre ação e reação dá margem às narrativas. Como não é óbvia a ligação entre uma decisão e seus efeitos, cada um conta a história que quer. Por exemplo, a grande recessão de 2015-2016 teria sido fruto da Lava-Jato e da queda dos preços das commodities. Nada a ver com as seguidas intervenções do governo Dilma no funcionamento dos mercados e com a verdadeira usina de cremação de dinheiro representada pelos empréstimos do BNDES e pelos projetos da Petrobras.

Como distinguir entre narrativa e a verdadeira lei de Newton? Pelos resultados de longo prazo. É famosa a foto tirada do espaço, mostrando o contraste entre Coreia do Norte e Coreia do Sul à noite. É a demonstração visual da superioridade do capitalismo sobre o comunismo como gerador de riqueza. Claro, hoje ninguém (a não ser alguns lunáticos) defende o comunismo da forma como a Coreia do Norte o adota. E, complemento, ninguém (a não ser alguns lunáticos) defende uma total ausência do governo no sistema econômico. O debate se dá a respeito do nível de intervenção que o governo deveria adotar no sistema capitalista, e de que modo essa intervenção deveria ocorrer.

A resposta é observar como os países capitalistas mais bem sucedidos alcançaram seu sucesso no longo prazo. Uma organização como a OCDE, por exemplo, reúne esse tipo de experiência, colocada à disposição para aqueles países dispostos politicamente a seguir por esse caminho. Lula e o PT desdenham esse tipo de experiência, justamente porque a OCDE propõe uma governança que limitaria a ação do governo. Preferem seguir o roteiro que já não vem funcionando há décadas, aproveitando-se das defasagens temporais entre causa e efeito para achar bodes expiatórios quando a coisa, novamente, não funciona.

A redução dos juros do consignado não foi só uma “trapalhada”. Foi um modus operandi. A natureza do governo do PT foi fielmente representada por essa decisão. A “trapalhada” foi somente escolher uma ação que teve uma reação imediata, não dando tempo para se criar uma narrativa (ainda que alguns balbuciaram algo como “ganância dos bancos”). Lula exigirá, das próximas vezes, mais cuidado em não deixar tão evidente as consequências nefastas das decisões de seu governo.

Talk is cheap

A jornalista Miriam Leitão repercute pesquisa da Quaest junto a executivos do mercado financeiro. Nada menos do que 98% acham que a política econômica do governo Lula está no caminho errado.

Miriam não se conforma, e cita alguns dados para demonstrar que o mercado está errado. Por exemplo, o fato de o governo ter reonerado os combustíveis, como se a reoneração não tivesse sido parcial e misturada com um esdrúxulo imposto sobre exportações, e que será retirado depois que o novo presidente da Petrobras começar a manipular os preços dos combustíveis novamente. Mas, tudo bem, serve de narrativa para jornalista sabujo.

O que chama a atenção é que Miriam Leitão sempre foi, na média, crítica aos governos petistas. É só dar uma passeada em suas colunas, principalmente durante o governo Dilma, e se lerá críticas em bem maior número do que elogios. Não à toa, está rolando um vídeo pelas redes (ah, essa memória da Internet..), mostrando um Lula furibundo, dizendo que Miriam Leitão não acerta uma. O que mudou na capacidade crítica da jornalista? Meu palpite: Bolsonaro.

Miriam Leitão foi torturada durante a ditadura militar. Assim, é natural que ache qualquer coisa melhor do que o governo Bolsonaro, e o sucesso do governo Lula é visto como a garantia de que Bolsonaro não voltará. A jornalista pede objetividade aos executivos do mercado financeiro, mas claramente é a ela que falta esta qualidade. Miriam deixa clara essa leitura, quando chama o mercado de “bolsonarista”. Como se alguém estivesse disposto a perder dinheiro por alguma preferência ideológica. As palavras de Miriam não custam nada. As decisões de investimento, ao contrário, podem custar muito.

Aliás, se Miriam tivesse feito a sua lição de casa, poderia chamar a atenção para uma contradição, essa sim, digna de nota. Ao mesmo tempo que os executivos do mercado demonstram estar muito pessimistas em uma pesquisa, os preços do mercado, que são o indicador mais fidedigno do humor dos investidores, não parecem apontar para uma piora do ambiente: o dólar começou o ano em R$ 5,35 e fechou ontem a R$ 5,25. A bolsa caiu meros 3% neste ano, até ontem. E os juros futuros mostram até certo ganho: a taxa do prefixado com vencimento em jan/24 saiu de 13,55% no início do ano para 13,10% ontem, ao passo que o prefixado com vencimento em jan/27 saiu de 12,95% no início do ano para 12,60% ontem. São taxas de juros altas, mas não houve uma piora. Miriam prestaria um melhor serviço se explorasse essa dicotomia.

A beleza do mercado financeiro é que qualquer palpite pode ser transformado em uma aposta. Miriam Leitão acha que o mercado está muito pessimista. Então, ela pode ganhar dinheiro com esse palpite vendendo seus dólares, comprando bolsa ou títulos prefixados no Tesouro Direto. Escrever coluna descascando o mercado é fácil. Difícil é tomar decisão de investimento em nome dos clientes todos os dias.