O papel do vice-presidente

No sistema presidencialista brasileiro, o vice tem papel decorativo. Serve para substituir protocolarmente o presidente em suas ausências e ocupar o Palácio do Jaburu, de modo a dar algum fim útil a um imóvel da União. Alguns cumpriram esse papel à perfeição, como Marco Maciel, que foi o vice dos sonhos de FHC: discreto, leal, hábil politicamente. Outros foram menos discretos, criando embaraços para o titular do cargo com suas declarações, mas não deixaram de ser peças decorativas, como José Alencar (que não perdia oportunidade de criticar a política monetária ortodoxa de Henrique Meirelles) e Hamilton Mourão (que distribui declarações aleatórias, muitas vezes contra o próprio governo, parecendo ter uma agenda própria).

Mas, na política brasileira, o vice, apesar de seu papel decorativo, é visto como uma peça de costura de alianças. Sinaliza a união de forças distintas, ampliando o leque de apoios à candidatura. A chapa FHC-Maciel simbolizou a união entre a centro-esquerda e a centro-direita, PSDB-PFL, uma aliança para a qual muitos mais à esquerda dentro do PSDB torceram o nariz, mas que deu estabilidade para os 8 anos da gestão FHC. Em contraste, Lula teve como companheiros de chapa Aloizio Mercadante e Leonel Brizola em 1994 e 1998, acrescentando literalmente zero apoios à sua chapa fora de seu público cativo.

Lula aprendeu a lição, e compôs com José Alencar a chapa de união entre “trabalhadores e empresários”, o que serviu para quebrar resistências. Mas vale notar que a aliança de Lula estava mais no campo simbólico do que político. Alencar, à época, era filiado ao PL (ironicamente o atual partido de Bolsonaro), um partido médio, que elegeu 26 deputados em 2002. Como comparação, o PFL, parceiro de FHC, elegeu 105 deputados em 1998, mais do que o próprio PSDB. Portanto, essa aliança de Lula foi feita para ganhar a eleição, não para governar. O mesmo se repete agora com a escolha de Alckmin. O ex-governador paulista representa a ele mesmo e algumas viúvas do velho PSDB, não um agrupamento político com influência no Congresso. Sua escolha é simbólica, está longe de caracterizar uma aliança política que tenha influência no governo eleito. Lula e o PT, como sempre, pretendem governar sozinhos.

A escolha de um vice que não acrescenta política ou simbolicamente normalmente pode ser sinal de duas coisas: ou o candidato quer manter a “pureza ideológica” de sua chapa, ou não tem pretenções eleitorais, e quer somente marcar uma posição. O PT nas eleições de 1994 e 1998 é um exemplo do primeiro caso, enquanto o PT de 2018 exemplifica o segundo caso. Quando Manuela D’Ávila foi escolhida como vice de Haddad, pensei com meus botões: “nem o Lula acredita na vitória”.

A escolha do general Braga Netto não acrescenta nada política ou simbolicamente à candidatura Bolsonaro. E, tampouco, se encaixa nas duas hipóteses acima para escolhas desse tipo, dado que Bolsonaro acredita na vitória e que havia opções ideologicamente alinhadas e que acrescentariam algo à chapa, como a ministra Tereza Cristina. A escolha do vice de Bolsonaro encaixa-se em uma terceira categoria: paranoia. Bolsonaro é um político paranoico, que vê como potenciais inimigos todos os que não pertencem à sua família. A longa lista de desafetos que antes eram considerados aliados não para de crescer. Braga Netto foi escolhido por representar um risco baixo de traição. O mesmo poderíamos dizer de Mourão, mas a sua mania de falar demais não agradou.

A escolha de alguém de estrita confiança é característica de políticos fracos, que não se garantem no campo da política. E, além de tudo, é fruto de uma leitura equivocada da realidade. Os vices tornam-se alternativas de poder não por sua própria vontade, mas por uma conjunção de fatores políticos. Itamar Franco e Michel Temer não traíram Collor e Dilma. Estavam lá na hora certa, e se beneficiaram da conjunção de fatores que levaram ao impeachment. Braga Netto não escapará dessa sina, se a conjuntura política assim determinar.

Bolsonaro e PT alinhados

“Grande parte dos minoritários são empresas de fundo de pensão dos Estados Unidos que ganham em média R$ 6 bilhões por mês. […] Eles não pensam no Brasil.”

Jair Bolsonaro, em discurso em culto evangélico, hoje, em Manaus.

“A Petrobras será colocada de novo a serviço do povo brasileiro e não dos grandes acionistas estrangeiros”.

Trecho do programa de governo do PT.

Acho que Bolsonaro, se pensar bem, votará no PT.

Estratégia Carosella

Bolsonaro voltou a reclamar de seus sócios na Petrobras.

Gostaria de sugerir ao presidente a estratégia Carosella, que admitiu ter desvalorizado propositalmente um de seus restaurantes para comprá-lo a preço de banana dos seus sócios.

Da mesma forma, se o governo forçar os preços dos combustíveis para baixo, chegará um momento em que a Petrobras estará tão desvalorizada, que o governo poderá recompra-la de seus sócios com um belo desconto. Assim, poderá se ver livre deles e fazer da empresa o que bem entender.

O PT teve essa oportunidade mas não aproveitou. Vamos ver se Bolsonaro deixará escapar essa chance novamente.

Deitado eternamente em berço esplêndido

Diariamente, o Estadão destaca o assunto que teve maior número de interações em seu portal, reproduzindo alguns comentários mais representativos, sempre colocando posturas mais elogiosas e mais críticas. Ontem, o tema foi a visita de Elon Musk ao Brasil.

Os comentários críticos coincidem no uso da palavra “exploração”. A palavra, no contexto, tem uma conotação negativa: significa algo como “extrair riqueza sem dar nada em troca”, quase um sinônimo de “roubar”.

Essa é a visão do brasileiro médio em relação aos empresários. O empresário não gera empregos, ele explora o trabalhador. Não gera oportunidades, ele é oportunista. Não gera riqueza, ele se apropria da riqueza.

O “homem mais rico do mundo” só pode estar interessado em aumentar ainda mais a sua riqueza, desta vez “explorando” as riquezas da “nossa Amazônia”. Ou seja, tirando da Amazônia para colocar em sua gorda conta bancária.

Claro, há aqueles que são menos toscos e entendem o papel do empresário na geração de riquezas. Só não acham “justa” a divisão dessa riqueza criada. Nesse sentido, pensam que deveria haver uma forma de dividir melhor o bolo, mitigando a “exploração” dos empregados e da sociedade pelos empresários. No fundo, a ideia de exploração continua lá, apesar do discurso bonito. Os empresários deveriam ser expropriados de uma riqueza que não lhes pertence.

Elon Musk conseguiu colocar em pé três indústrias que antes não existiam: meios de pagamento pela internet (PayPal), carros elétricos (Tesla) e foguetes espaciais reaproveitáveis (Space X). Ele deveria ter um busto em cada cidade do planeta, assim como outros empresários que revolucionaram os seus campos de atuação. No entanto, uma certa mentalidade só consegue ver nisso “exploração”.

Temos mais de 50 anos de Zona Franca de Manaus, uma tentativa de desenvolver e integrar a região amazônica ao restante do Brasil. Estamos testemunhando a gritaria em torno da redução do IPI para vários produtos, o que eliminaria grande parte desse incentivo, que deve durar até a década de 70! Quer dizer, serão necessários 100 anos para que a Amazônia possa andar com as próprias pernas. Quer dizer, 100 anos na hipótese otimista.

Não tenho dúvida de que se “entregássemos” a Amazônia para projetos de Elon Musk, em 10 anos teríamos uma revolução, com criação de riqueza para a região muito maior do que em 100 anos de incentivos fiscais. Mas sabe como é, a Amazônia é nossa, e não queremos que um gringo venha aqui “explorar” as suas riquezas. Deitados eternamente em berço esplêndido não é uma figura de linguagem.

Pesquisa boa para quem?

Uma pesquisa boa para a 3a via…

Na pesquisa anterior da CNT/MDA em fevereiro, o ex-juiz Sérgio Moro tinha 6,4% das intenções de voto. Nesta pesquisa, já sem Moro, a variação das intenções de voto dos candidatos foi a seguinte:

Lula: – 1,6 pp (pontos percentuais)

Bolsonaro: + 4,0 pp

Ciro: + 0,4 pp

Doria: + 1,3 pp

Tebet: + 1,7 pp

Janones: + 1,0 pp

Ou seja, Bolsonaro sozinho ganhou 4 pontos percentuais enquanto os candidatos da “terceira via” ganharam, juntos, 4,4 pp. Estes candidatos todos tiraram 1,6 pp de Lula, 0,4 pp dos indecisos e herdaram 6,4 pp de Moro.

A notícia boa para a “terceira via” seria se UM dos candidatos herdasse TODOS os votos. Não aconteceu. Aliás, quem herdou mais da metade dos votos de Moro foi Bolsonaro.

Não há novidade nenhuma aqui, apenas a confirmação do que já apontaram outras pesquisas. O que me chamou a atenção foi só a manchete, que deve ter sido escrita pelo estagiário da redação, com todo respeito aos estagiários.

O presidente isolado

As posições de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco deixam Bolsonaro isolado em sua batalha em torno do sistema de apuração de votos. Lembrando que os dois chefes das Casas Legislativas foram eleitos com sólido apoio do Palácio do Planalto, o que torna ainda mais significativa a posição de ambos sobre o assunto. Apesar de não representarem todos os parlamentares, os presidentes da Câmara e do Senado de alguma maneira normalmente traduzem o sentimento majoritário das casas, pois o seu comando depende do apoio de uma maioria mais ou menos estável.

Temos então a seguinte situação: de um lado, o chefe do Executivo, de outro, os chefes dos outros dois poderes. Qual a real chance de que, de alguma maneira, Bolsonaro consiga empurrar a sua “solução” para o problema? Problema, convém destacar, que somente ele, dentre os três poderes, vê.

A história pode nos ser útil aqui. A deposição de Jango foi obra de dois poderes (Legislativo e Judiciário) contra o chefe do terceiro poder. Ao lado dos dois poderes havia o que chamo de “opinião pública”, representada por uma fatia representativa da classe média e do empresariado, cujo porta-voz são os grandes jornais. E, para que houvesse o enforcement da coisa, as Forças Armadas foram chamadas a atuar.

Hoje a situação, de alguma maneira, é a mesma: de um lado, o Executivo, do outro, Legislativo, Judiciário e grande parte da opinião pública, que só quer paz para trabalhar e não vê grandes problemas no sistema de apuração. Resta saber onde estão os militares. Será que, ao contrário de 1964, irão se juntar a um chefe de executivo isolado para impor uma solução aos outros dois poderes e a uma opinião pública refratária? Parece pouco provável.

Por isso, parece-me que o máximo que pode acontecer é uma versão tupiniquim da invasão ao Capitólio. Se lá já foi ridículo, imagine aqui.

O preço, esse incompreendido

O preço das mercadorias é o termômetro da doença, não a sua causa. Controlar preços não fará a doença sumir. Pelo contrário. Se a doença continuar lá, o estado do paciente somente piorará, o que demandará tratamento posterior ainda pior.

Dois exemplos apareceram nos jornais nesses dias. O primeiro foi um decreto legislativo para suspender o aumento do preço da energia elétrica no Ceará.

O segundo, uma nova peroração do presidente contra a política de preços da Petrobras, após a divulgação de seu resultado recorde no 1o trimestre.

Já passamos (acho) da fase em que pensávamos que congelar todos os preços da economia resolvia a questão da inflação. Vimos, depois de apanhar muito, que o resultado desse tipo de política é o desabastecimento e a volta da inflação muito mais virulenta posteriormente. Atacávamos a febre, não a doença.

Por algum estranho motivo, no entanto, grande parte da população ainda acha que controlar os preços dos combustíveis e da eletricidade não causará os mesmos problemas. Claro que combustíveis e eletricidade são mercadorias diferentes de arroz e automóveis. Mas a lógica empresarial é a mesma: é preciso investir antecipadamente, assumindo risco, para produzir e distribuir a mercadoria. E é neste ponto que o controle de preços atua negativamente, desestimulando novos investimentos. Vejamos os dois exemplos.

No caso dos combustíveis, a Petrobras atua em um ramo bastante instável. Agora o preço do petróleo está acima de US$ 100, mas estava em US$ 50 há um ano e chegou a bater US$ 20 no pior momento da pandemia. Que empresa consegue se planejar com essa volatilidade de preço do seu principal produto? Isso sem contar com o câmbio… Então, como qualquer empresa que produz commodities, a Petrobras precisa faturar e lucrar muito durante o tempo das vacas gordas para compensar os lucros menores dos tempos das vacas magras. Caso contrário, os investidores não estarão dispostos a financiar a atividade da empresa.

É curioso ouvir o presidente dizendo que “os gordos fundos de pensão americanos” é que estão enriquecendo com os preços praticados pela Petrobras. O presidente, como representante máximo do maior acionista da empresa, deveria era estar dando graças a Deus que ainda tem investidor disposto a correr o risco Petrobras. Isso só está acontecendo porque o governo Temer estabeleceu em lei que a empresa é obrigada a praticar preços de mercado, garantindo que os tempos das vacas gordas compensem os tempos das vacas magras. A Petrobras, hoje, poderia estar produzindo muito mais, se o governo Dilma não tivesse controlado os preços, afastando investidores e tornando a Petrobras a empresa mais endividada do planeta. Estamos pagando a conta de uma política populista de preços, que o atual presidente quer ver repetida. Quebrar o termômetro não elimina a doença.

A eletricidade é uma mercadoria completamente diferente do petróleo, mas a lógica empresarial é a mesma. As empresas assumem compromissos de décadas em troca de regras estáveis de reajuste de preços. Repito: o compromisso dessas empresas é de 20 ou 30 anos. Assinar um contrato com esse horizonte de tempo no Brasil exige muita coragem, em um país instável como o nosso, onde as regras não valem a tinta gasta para escrevê-las. A tentativa do Congresso de “congelar” os reajustes tarifários de eletricidade é somente a constatação desse fato. Não à toa, é preciso acenar com taxas de retorno atraentes para que empresas se aventurem nesses empreendimentos.

As empresas de geração, transmissão e distribuição de energia investem em infraestrutura para depois se remunerarem com as tarifas ao longo dos anos. Se essa remuneração não for suficiente, essas ou outras empresas exigirão taxas de retorno ainda maiores para fazer novos investimentos na ampliação e manutenção do parque de energia elétrica. No limite, não haverá empresas dispostas a investir, seja qual for a taxa de retorno do investimento. A mercadoria mais cara é aquela que não existe. Restarão as estatais, que investem a qualquer preço, dado que seus prejuízos são pagos pela população, não por investidores.

Se o preço dos combustíveis está nas alturas porque acompanha o preço do petróleo no mercado global, o preço da eletricidade está nas alturas porque a conta precisa carregar um monte de penduricalhos acumulados ao longo do tempo, inclusive a conta da redução ”na marra” do preço da eletricidade patrocinada pelo governo Dilma em 2013. E já temos contratados novos penduricalhos, que acompanharão a privatização da Eletrobras e pesarão sobre as contas no futuro. Além dos impostos, que representam mais de um terço do preço total. Quebrar o termômetro não elimina a doença.

Controlar preços sempre, SEMPRE, desorganiza o mercado, diminui investimentos e deixa uma conta ainda maior para o futuro. Os tão celebrados jovens deveriam usar o seu poder de voto para elegerem políticos que entendam isso. Pois a conta será paga por eles.

Defesa estética da democracia

Ler Eugênio Bucci tem uma utilidade: entrar na mente da esquerda brasileira munido de GPS, e não às escuras e no meio do tiroteio que caracteriza as palavras de ordem e os discursos políticos. Podemos, assim, ter uma ideia mais clara de quais são os valores que levam alguém a votar até em Lula para tirar Bolsonaro do poder.

A tese do artigo de hoje é que o cidadão leitor de jornal (os “detentores do poder”) dão de ombros para os sistemáticos ataques à democracia perpetrados pelo governo Bolsonaro, de modo a evitar uma suposta “volta da corrupção” em um novo governo do PT. Estaria, assim, a imprensa fazendo papel de boba (daí o título do artigo), revelando coisas que os “detentores do poder” já sabem e com que pouco se importam.

Eugênio Bucci nunca me decepciona, e dessa vez não seria diferente. Sua análise peca em três dimensões: factual, moral e conceitual.

Na dimensão factual, a mais saliente e risível, Bucci afirma que não há que se ter medo de uma “volta da corrupção” porque “aquelas condutas criminosas foram julgadas e condenadas e muitos foram parar na cadeia”. Segundo essa narrativa, Lula seria uma espécie de ilusão de ótica, pois continua preso pela propina que recebeu na forma do triplex e da reforma do sítio do seu amigo.

O erro moral do articulista é considerar que a sua própria escala de valores é universal, e que as pessoas, conhecendo essa escala de valores e não a seguindo, não passam de seres cínicos abjetos. O ponto é que “corrupção” e “democracia”, os valores abordados no artigo, são apenas duas das dimensões que importam para escolher um candidato. “Economia” e “valores morais” são outras dimensões possíveis. Há pessoas, por exemplo, que não votam de jeito nenhum em um candidato que defenda que o aborto seja uma questão de “saúde pública”, assim como há pessoas que votam no primeiro candidato que lhes prometa uma cesta básica. Para essas pessoas, “democracia” e “corrupção” passam longe de suas principais preocupações, sem que se tornem, necessariamente, seres moralmente reprováveis.

Mas Eugênio Bucci escreve sobre e para os “detentores do poder”. E, para estes, “democracia” deveria ser um valor inegociável, no que tendo a concordar. Afinal, sem uma democracia plena, Bucci não poderia escrever o que escreveu, nem eu poderia estar escrevendo o que estou escrevendo. O problema está no conceito que cada um tem de democracia, o que vai influenciar o modo como analisa a realidade à sua volta. Este é o terceiro erro do artigo.

O articulista acusa o governo Bolsonaro da maior das corrupções: o aparelhamento do Estado e a sabotagem das instituições democráticas. Ele não nos fornece exemplos concretos, mas podemos imaginar o que vai em sua mente: pastores pedindo propina no MEC, ministério da saúde sabotando a vacinação, ministério do meio-ambiente queimando a Amazônia (esse exemplo ele deu), emendas secretas e por aí vai. Tudo isso pode ser muito grave, não vou aqui entrar no mérito. Meu ponto é outro.

Bucci realmente considera o governo do PT superior ao governo Bolsonaro em matéria de respeito às instituições democráticas. Pode parecer ilógico, mas não surpreendente. Afinal, o próprio Lula afirmou que a Venezuela de Chavez sofria de “excesso de democracia”. E a esquerda, até hoje, baba ovo para o regime liberticida de Cuba.

A questão central é que a anti-democracia de Bolsonaro só foi possível porque, antes, tivemos a anti-democracia do PT. Bolsonaro é cria do PT, um partido que já deveria ter sido extinto em 2005, quando se descobriu que pagou fornecedores com contas offshore. Aqueles que viram o rosto diante da feiúra do governo Bolsonaro são os mesmos que tinham reparos apenas protocolares aos “mal-feitos” do PT. Bolsonaro é somente o verso da tapeçaria da corrupção dos valores democráticos que o PT teceu com tanto esmero ao longo de seus anos no poder.

Eugênio Bucci seria muito mais crível em suas críticas aos “detentores do poder” se reconhecesse que o PT é tão deletério à democracia quanto Bolsonaro. No entanto, Bucci quer apenas virar o tapete novamente para cima, para que a destruição da democracia tenha, ao menos, uma cara elegante. A sua defesa dos valores democráticos é apenas estética.

O rei das redes

A coluna do Estadão constata o óbvio: Bolsonaro domina as redes.

Só acho que o diagnóstico está errado. O colunista sugere que Bolsonaro tem adotado uma “estratégia” para chamar a atenção, que seria a da “provocação” a artistas e rivais. Na verdade, penso que o engajamento citado é fruto de uma coisa bem mais simples: tamanho da audiência.

No Instagram, Bolsonaro tem pouco menos de 20 milhões de seguidores contra 4,5 milhões de Lula. 800 mil curtidas é um bom engajamento, mas explicável pela base de seguidores. Lula pode esperar cerca de 1/4 disso nos seus posts mais populares.

No Twitter, Bolsonaro tem 7,5 milhões de seguidores contra 3,3 milhões de Lula. Não à toa, seu post sobre a aliança Lula-Alckmin teve o dobro de curtidas do que o do seu adversário do PT sobre o mesmo assunto.

Bolsonaro entendeu antes de todo mundo a importância das redes. O seu volume muito maior de seguidores é fruto de um trabalho de anos, não de meses. Além disso, Bolsonaro usa as redes com a linguagem das redes, e não como uma página oficial com discurso insosso. E mais: sua interação soa autêntica, pois é o mesmo discurso que seus seguidores ouvem no cercadinho do Planalto. Muito diferente de tentativas toscas de Ciros e Alckmins da vida, que contratam marqueteiros para “acertar o tom”. Seu “kkkkkk” como comentário sobre a aliança Lula-Alckmin é exemplo acabado desse fato.

Assim como a motociata, seguidor no Instagram não significa necessariamente voto na urna. Mas se as redes sociais tiverem em 2022 a mesma importância que tiveram em 2018, Bolsonaro sai com vários corpos de vantagem. Não é à toa que seus adversários estão pedindo que o juíz consulte o VAR para verificar se o presidente não está impedido.

A motociata como proxy para o voto

Mais uma “motociata” liderada pelo presidente Jair Bolsonaro. Mais uma interminável discussão sobre o real tamanho do evento. Desde os 3 mil medidos no pedágio até os 70 mil da maior conta que vi, dando um passeio pelo Twitter, a disputa sobre a adesão à procissão da sexta-feira santa tomou conta das redes. (Vou deixar de fora a estimativa de R$ 20 milhões arrecadados de ICMS só com a gasolina das motos. Considerando um consumo de 30 km/l, 240 km de percurso, R$ 7,50 por litro e 25% de alíquota, teríamos 1,3 milhões de motos. Seria o milagre da multiplicação das motos).

Digamos que tenham sido 70 mil motos. Segundo o Detran, em abril de 2021 havia 1.076.861 motos na cidade de São Paulo. Considerando que a cidade represente 60% da população da região metropolitana, teríamos um total de 1,8 milhão de motos na Grande São Paulo que potencialmente poderiam participar do evento. 70 mil representam cerca de 4% desse total. Quantos eleitores esses 4% representam? Difícil dizer. Se um em cada 10 motociclistas eleitores de Bolsonaro tenham decidido aderir à motociata, esses 70 mil representariam 40% dos votos entre motociclistas. Em termos comparativos, as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff chegaram a juntar 2 milhões de pessoas na Paulista, ou mais de 10% da população TOTAL da região metropolitana, não somente de motociclistas. E é neste ponto que temos a pegadinha.

Note que temos uma amostra enviesada. Motociclistas, em geral, são homens e têm renda superior a 2 salários mínimos por mês. Nesse estrato da população, Bolsonaro colhe seus melhores resultados. Ele apanha entre os pobres e as mulheres. Portanto, 40% de uma parcela que lhe favorece (ainda mais em São Paulo, não no Nordeste) não parece ser algo que chame especialmente a atenção. E isso porque estressamos o número de motos (70 mil) e a proporção de motociclistas que votam em Bolsonaro dispostos a dar as caras no evento (10%).

Na verdade, pouco importa se foram 3 mil ou 70 mil. Como vimos acima, isso é pouco relevante do ponto de vista do número de votos. Bolsonaro conseguiu seu intento de produzir imagens marcantes e tomar conta do debate nas redes. Essas imagens serão usadas como “evidência” do grande apoio popular ao presidente, e como a derrota nas urnas somente pode ser explicada por fraude.

E antes que alguém lance mão do whataboutismo, o fato de Lula não ter se aventurado, por enquanto, em eventos públicos, não significa absolutamente nada. A coisa mais fácil de produzir são imagens de multidões, e elas serão produzidas pelo petista, podem estar certos. Bolsonaro foi muito esperto, e sacou essa da motociata, em que as motos ocupam muito mais espaço do que pessoas e passam a sensação de multidão muito mais facilmente. Serve como peça publicitária, mas não como antecipação do que será o voto na urna.