Está rolando uma campanha chamada “Eu digo não à cultura do estupro”.
Ninguém em sã consciência é a favor do estupro. Portanto, uma campanha “Eu digo não ao estupro” parece desnecessária. Mas não é esta a campanha. A campanha é contra uma tal de “cultura do estupro”. E o que vem a ser a “cultura do estupro”?
Não vi nenhuma definição, por mais que procurasse. Mas acho que a pista está na frase “Todo homem tem um estuprador dentro de si”, que vi em um perfil feminista. Assim, penso (e me corrijam se estiver errado) que a tal “cultura do estupro” seria o seguinte: a culpada pelo estupro, em última análise, seria a mulher, que provoca o estuprador que todo homem tem dentro de si. Todo homem seria assim uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hide, e um shortinho mais curto seria suficiente para libertar Mr. Hide. Com isso, as mulheres restariam podadas em seu direito de usarem a roupa que quisessem ou frequentarem os lugares que lhe aprouvessem, sem serem molestadas pelos Mr. Hide soltos por aí. E mais: os monstros embutidos nos homens – em todos os homens – seriam fruto de uma cultura machista ancestral, em que os novos meninos bebem a “cultura do estupro” com o leite materno.
Um par de considerações a respeito.
Em primeiro lugar, a natureza humana desenhada por este raciocínio não está incorreta. De fato, todos os seres humanos, homens e mulheres, temos dentro de si um Mr. Hide pronto a atacar. Fazemos coisas “irracionais”, mesmo sabendo que são erradas. Que o digam os que lutam para parar de fumar, ou para iniciar e manter uma dieta, ou começar um programa de ginástica. Que atire a primeira pedra quem nunca fez nada de errado na vida, tendo consciência de que era errado. Esta é a natureza humana: consciência de anjo e instinto animal, em uma mistura muitas vezes desconcertante. Isto não tem nada a ver com a “cultura machista”, que também existe. Por outro lado, isto significaria que aquele que erra não é culpado pelo erro? Isto nos leva à segunda consideração.
Dr. Jekyll é o verdadeiro culpado pelas diabruras de Mr. Hide. Quem leu a novela de Robert Louis Stevenson lembrará que Dr. Jekyll libertou Mr. Hide conscientemente. Era uma forma de fazer o que ele sempre quis fazer, sem querer assumir os seus atos. Dr. Jekyll e Mr. Hide são, afinal, uma e a mesma pessoa. Portanto, por mais que o instinto animal esteja no comando, é o homem (e a mulher) que devem responder por seus atos. Afinal, não deixam de ser seres humanos, com toda a responsabilidade que deriva de sua condição humana. Assim, os estupradores são culpados, os únicos culpados, por seus atos, e devem pagar por isso.
Aqui, um adendo: a culpa independe do que acha ou deixa de achar o culpado. Todos nós, quando fazemos coisas erradas, procuramos justificativas. É muito, muito difícil dizer “eu errei”. Certas pessoas, ao se justificarem, distorcem tanto a realidade, que chegam a construir um universo paralelo. Assim, quem rouba, na verdade, estaria realizando uma “redistribuição de renda”, e, portanto, fazendo justiça. Quem estupra pode pensar que está apenas realizando um ato devido naturalmente à sua condição de homem em relação à mulher. Afinal, se aquela mulher está vestida daquela maneira naquele lugar, na verdade ela quer ser estuprada. Este é o raciocínio da “cultura machista”, que faz o sujeito cometer um crime com a consciência tranquila. Obviamente, como já dissemos, este raciocínio absolutamente não o exime de culpa. E aqui vem a última consideração
Ao mesmo tempo que a mulher estuprada não compartilha da culpa que somente ao estuprador cabe, é necessário reconhecer a natureza humana como ela é, não como desejaríamos que ela fosse. Dou um exemplo: o roubo. Roubar é errado, todos sabemos. E sabemos, também, que, por mais errado que seja, haverá homens dispostos a roubar. Posso tentar lançar uma campanha “Abaixo a cultura do roubo”, tendo como pressuposto que o roubo é ensinado desde a infância, e os homens trazem um ladrão dentro de si. Tudo isso pode ser até verdade, não vou entrar no mérito. Ocorre que os ladrões continuam por aí. E não será segurando um cartaz “Eu não mereço ser roubado” que vou evitar ser assaltado. Devo tomar minhas precauções: não andar em certos lugares a certas horas. Infelizmente, minha liberdade é injustamente limitada pela existência de ladrões. Posso rebelar-me contra isso e não adotar regras de prudência, ou aceitar a realidade como ela é, e tomar os meus cuidados. No final, a culpa é totalmente do ladrão, mas as consequências são por mim sofridas.
Assim, as meninas e mulheres, infelizmente, precisam tomar precauções: não andar vestidas de maneira provocativa, nem frequentar lugares inconvenientes, nem se embebedar até cair. Espero que o que escrevi acima tenha sido suficiente para afastar a ideia de que esta orientação seja fruto de meu “machismo”. Apodar-me de machista por dar este conselho não vai ajudar em um milímetro a evitar um estupro. Tomar certos cuidados é apenas uma regra de prudência, em uma sociedade formada por homens, não por anjos. Isto não significa, por óbvio, não denunciar esta realidade. Campanhas contra coisas erradas são sempre bem-vindas. O que não dá é achar que minha vontade de mudar o mundo vai proteger-me deste mesmo mundo. E se você, menina, mulher, acha que sua luta contra o machismo inclui desafiar regras básicas de prudência, tenha em mente que as consequências atingem não só você, mas todos os que te amamos.