Reductio ad hitlerum

Weintraub comparou a operação da PF de anteontem com a Noite dos Cristais, evento chave na escalada genocida do nazismo.

O uso dos termos “nazismo”, “Hitler” e “holocausto” banalizou-se ao longo dos anos. Para caracterizar algo ou alguém como autoritário, ou mesmo simplesmente ignóbil, sujo, mau, injusto, basta comparar com o nazismo ou com Hitler. A discussão se encerra, porque não há diálogo que resista a essa comparação. Temos até um termo em latim que define essa simplificação: reductio ad hitlerum, ou seja, toda a discussão se reduz à comparação sem mais a Hitler ou ao nazismo. Esse é um expediente muito usado pela esquerda, mas vimos que Weintraub não teve pejo de também lançar mão.

Por que a menção de Weintraub é inadequada e, até, ofensiva à memória dos judeus? A resposta é simples: Hitler e os nazistas atentaram contra a vida de milhões de pessoas não envolvidas na luta política. Perpetraram um genocídio tendo como único critério o fato de o indivíduo ter nascido judeu. Muitos judeus na Alemanha, até o fim, não acreditavam que pudesse acontecer algo com eles. Afinal, eram cidadãos exemplares, pagavam seus impostos e até tinham servido à Alemanha na 1a Guerra. Nada disso perdoava o fato de serem judeus.

O que tivemos anteontem na operação da PF? Militantes bolsonaristas tiveram suas casas revistadas e foram conduzidos para depoimentos. Militantes bolsonaristas escolhem ser militantes bolsonaristas. Judeus não escolhem ser judeus. Está clara a diferença? Militantes escolheram fazer a luta política e estão arcando com as consequências de suas escolhas. Judeus não escolheram ser judeus, mas mesmo assim arcaram com as consequências de seu destino hereditário. Homens, mulheres e crianças de todas as idades, em um sofrimento inimaginável.

Note que não entrei aqui no mérito da justeza ou não da ação da PF ou do STF. Pode ter até sido injusto e contra a lei. Mas isso está longe de bastar para fazer a comparação que Weintraub fez. O que ele fez foi um exemplo acabado do reductio ad hitlerum.

Para uma análise mais profunda sobre o uso do termo Holocausto para fins políticos, recomendo o livro de autoria do meu irmão, o historiador Marcos Guterman “Holocausto e Memória”.

Entendedores entenderão

Estou terminando de ler A Fome Vermelha, de Anne Applebaum, que descreve em detalhes o Holodomor, a Grande Fome na Ucrânia no início da década de 30 do século passado, em que estima-se que tenham morrido 4 milhões de pessoas.

O Holodomor foi o resultado da política de coletivização das fazendas nas repúblicas soviéticas, antecedida pela desapropriação das fazendas dos “kulaks”, a burguesia do campo. Com o tempo, kulak virou sinônimo de qualquer um que se opusesse às políticas de Stálin. Ou melhor, Stálin colocava a culpa de tudo o que dava de errado nos kulaks, que encarnavam o “inimigo do povo”.

Aliás, na minha opinião, essa é a parte mais chocante de toda essa história: por mais que a realidade insistisse em contradizê-lo, Stálin interpretava tudo como uma grande luta política, onde sabotadores contrarrevolucionários tinham por objetivo minar o “governo do povo”. Essa ótica levava-o a negar a realidade ou atribuí-la aos “inimigos do povo”. Nesse sentido, relatos de camponeses morrendo de fome só poderiam ter sido “forjados” com objetivos políticos obscuros. Essa interpretação da realidade fazia com que Stálin apertasse ainda mais o torniquete contra os “kulaks”, que, a certa altura, eram todos os que insistiam em mostrar a realidade.

A mente autoritária enxerga o mundo de uma maneira peculiar, onde todos os que não rendem submissão absoluta representam um perigo para a autoridade. Todos se tornam inimigos, em um visão paranoica da realidade. A realidade, inclusive, se torna refém de uma eterna luta política, em que, o que importa, é a defesa da autoridade.

Entendedores entenderão.

Um estudo bem feito

Remdesivir mostrou-se eficaz na redução em 30% do tempo de recuperação de pacientes hospitalizados com Covid-19. Teste duplo-cego com pacientes randomizados.

Para os que têm curiosidade em saber como um teste de medicamento deve ser feito, esse artigo é bem útil.

O tempo é o senhor da razão

Hoje faz exatamente um mês desse anúncio de página inteira, publicado nos principais jornais do Brasil. É da lavra do CEO da Multiplan, defendendo, com palavras menos toscas, que a Covid-19 não passava de uma “gripezinha”, e que tínhamos de voltar a trabalhar.

Cheguei a comentar na época que a comparação com outras doenças era descabida, pois feita em bases de tempo diferentes: comparava-se os mortos pela Covid-19 em pouco mais de um mês com as mortes em um ano inteiro por outras doenças. Na época, fiz uma conta simplória: se o número de óbitos pela Covid-19 crescesse no mesmo ritmo da semana anterior, teríamos 54 mil óbitos em um ano. Bem, um mês depois, temos mais de 20 mil, and counting.

Reproduzi o mesmo gráfico do anúncio, mas na mesma base de tempo: o período de 23/04 a 22/05, um mês depois dos dados apresentados no anúncio. Se as outras causas de morte permaneceram mais ou menos nos mesmos patamares de 2018 (ano desses dados), a Covid-19 deve ter sido a terceira causa de morte no Brasil nos últimos 30 dias, colada no câncer. Outra forma de ver: a Covid-19 deve ter sido responsável por cerca de 16% das mortes do Brasil no período.

Não custa lembrar que na semana anterior a esse período de 30 dias, a média de crescimento diário de óbitos era de 164/dia (média de 7 dias), enquanto hoje é de 890/dia, na mesma média. A Covid-19 caminha rapidamente para se tornar a principal causa-mortis do país.

Lição: nunca subestime o crescimento exponencial de uma doença altamente contagiosa que não tem vacina nem remédio.

Covid-19 vs Pneumonia

Já chamei a atenção aqui algumas vezes sobre a impropriedade de se comparar a Covid-19 com outras doenças. A preferida de quem gosta de comparar laranjas com bananas é a pneumonia. Como ambas as doenças atacam os pulmões, a Covid-19 virou o mesmo que pneumonia, só que matando muito menos. Afinal, a pneumonia mata 75 mil pessoas em média no Brasil por ano, enquanto a Covid-19 matou “só” 20 mil até o momento.

O problema, além da impropriedade de se comparar doenças com grau de transmissão imensamente diferentes, é a base de comparação. Compara-se dados anuais (da pneumonia) com dados de poucos meses (da Covid-19). Agora que temos praticamente dois meses de óbitos acumulados, já é possível comparar a Covid-19 com a pneumonia em bases semelhantes.

Foi o que eu fiz. Com base nos dados do Datasus, calculei a média de óbitos/milhão de habitantes por pneumonia em cada Estado e no país como um todo, mês a mês, entre os anos de 2009 e 2018 (último ano disponível na base de dados). Comparei então com os números da Covid-19 dos meses de abril e de maio (até o dia 22/05, esse número vai ainda piorar até o final do mês). Os resultados estão nos gráficos abaixo.

Podemos observar que, no país, o número de óbitos por Covid-19 em maio já é 2,6 vezes maior (71 contra 27 por milhão) do que o número médio de mortes por pneumonia nos anos 2009-18. Em abril já havia fechado no mesmo nível. Os resultados são muito diferentes de Estado para Estado, alguns com níveis horrorosos e outros onde o Covid-19 não deu as caras.

Alguns poderão dizer que não estou considerando a sazonalidade. Afinal, a pneumonia ataca mais no inverno. Verdade, mas a diferença não é significativa. O mês em que a incidência é maior é agosto, com 31 óbitos/milhão, não muito diferente dos 27 de maio.

Enfim, o problema da Covid-19 é a sua alta capacidade de transmissão e a explosão de casos em um curto período de tempo. A comparação com a pneumonia é claramente inadequada, por esta ser uma doença que incide de forma mais ou menos uniforme ao longo do ano, como podemos ver pelos números.

Democracia faz mal à saúde

Óbitos por Covid-19/milhão de habitantes:

  • EUA: 287
  • Reino Unido: 526
  • Itália: 535
  • Espanha: 596
  • França: 431
  • Suécia: 380
  • Alemanha: 99
  • Rússia: 21
  • China: 3
  • Venezuela: 0,4
  • Cuba: 7
  • Coreia do Norte: 0

Conclusão: a democracia faz mal à saúde.

Estatísticas da Covid-19

Hoje foi dia recorde de casos e óbitos no Brasil. Mas se analisarmos a média móvel de 7 dias (que tem sido a minha estatística favorita, dado o caráter claramente sazonal da divulgação dos dados em todos os países), o que observamos é a simples continuidade de uma tendência. No meu último post eu já avisava: o nosso padrão de crescimento (e o do restante da AL) está diferente do que aconteceu na Europa e EUA. Lá, houve um crescimento muito rápido inicial, para depois começar uma queda lenta. Aqui, o crescimento foi mais lento no início, o que nos impede de traçar um paralelo com Europa e EUA sobre onde seria o nosso pico. Não temos nenhum indicativo sobre quando isso vai acontecer.

Por que este padrão diferente? Difícil dizer. As mesmas medidas de distanciamento social foram aplicadas aqui e lá fora, com mais ou menos atraso. Calor? BCG? Vai saber. O que importa é que não temos um benchmark para comparar a nossa curva.

Vamos aos gráficos.

Debrucei-me mais detidamente sobre a situação brasileira. São 8 gráficos, 4 de casos e 4 de óbitos, sempre média móvel de 7 dias.

Os dois primeiros são mais gerais, comparando Brasil com Europa e EUA. Em número de casos novos diários per capita, já ultrapassamos o pico atingido pela Europa e estamos a 2/3 do caminho para atingir o pico dos EUA. Em número de óbitos, estamos ainda 45% abaixo do pico dessas duas regiões.

O segundo conjunto de gráfico analisa os principais Estados pelo critério de PIB/população. Na prática, são os Estados que estão puxando os números do Brasil para cima, pois outros, apesar de em piores condições, têm populações menores. Vemos que, em relação ao número de casos, o Estado do RJ, o DF e, em um 2o plano, SP, vem puxando a estatística. O crescimento em SP vem sendo mais lento, mas a tendência é crescente. Chama a atenção SC, que vem reabrindo a suas atividades: o número de casos vêm subindo na última semana, depois de duas semanas de estabilidade.

Em relação ao número de óbitos, assusta o comportamento do RJ, com quase 10 óbitos/milhão. Apenas para lembrar, a Itália teve 14 óbitos/milhão no seu pico. O Estado de SP, que havia estabilizado, pela primeira vez em 20 dias fez um novo pico de óbitos. Talvez seja apenas um ponto, vamos acompanhar. Também o DF vem uma tendência crescente de óbitos.

O terceiro conjunto refere-se às principais capitais em termos populacionais. Recife e Manaus lideram em número de casos, mas a cidade do Rio de Janeiro já empatou com essas duas em número de óbitos diários per capita. Mas ainda estão longe (40%) de Nova York, por exemplo, com seus 45 óbitos/milhão/dia no pico. A cidade de São Paulo, mantém uma subida suave no número de casos e estabilidade no número de óbitos: o atual nível é ainda inferior ao pico de 20 dias atrás.

Por fim, para aqueles que moram aqui em SP, um apanhado das regiões do Estado. A Grande São Paulo lidera, mas o número de casos/óbitos vem crescendo rapidamente na Baixada Santista. O número de casos vem acelerando também na região de Sorocaba e Campinas, mas ainda não se refletiu no número de óbitos.

É isso aí. Fiquem bem e protejam-se.

Natal antecipado

Eu sabia que já tinha visto isso em algum lugar…

Covas tem se esforçado, com tenacidade e denodo, para não ser reeleito.

Maduro decreta Natal antecipado na Venezuela

Estatísticas da Covid-19

Olá amigos! Estive um pouco ausente nos últimos dias, pois outras prioridades avançaram sobre o meu tempo. Não sei se vou conseguir postar com a mesma frequência daqui pra frente, mas sempre que sobrar um tempo, vamos abordar assuntos interessantes.

Aproveito para renovar os gráficos de casos/óbitos, comparando o Brasil com EUA e Europa. Estes gráficos sempre traziam a média móvel de 3 dias, mas acrescentei também a média móvel de 7 dias. Com o tempo, foi ficando cada vez mais claro que existe uma sazonalidade semanal na publicação dos dados, provavelmente porque o pessoal trabalha a meia-bomba no fim de semana. Esse é um fenômeno global, não é só no Brasil. Então, quando se calcula a média móvel de 7 dias, se obtém quase uma reta quando existe uma tendência clara.

Podemos observar no gráfico dos casos diários que o Brasil já ultrapassou a Europa no mesmo ponto do ciclo em número de novos casos diários/capita, e deve alcançar os EUA em alguns dias. Ainda estamos a 80% do pico da Europa e a 50% do pico dos EUA. No caso dos óbitos diários, ainda não atingimos o mesmo número de óbitos/capita da Europa/EUA no mesmo ponto do ciclo. Estamos a cerca de 50% do pico dessas duas regiões.

Mas o que eu quero chamar a atenção é para a peculiaridade da curva brasileira em relação às curvas no hemisfério norte. Aqui, o crescimento está sendo bem mais lento, mas o pico será atingido bem mais tarde. Enquanto o pico dos óbitos diários na Europa/EUA foi atingido por volta do 50o dia após o 150o caso, no Brasil já estamos no 64o dia, e nada do pico ser atingido. Aliás, essa é uma característica da América Latina como um todo, que merecerá estudos posteriores. Por enquanto, vamos apenas analisar o fato em si.

Na verdade, não dá para dizer que o Brasil não atingiu o pico. Pode ser que estejamos exatamente no pico. Só saberemos isto daqui a uma ou duas semanas. De qualquer forma, isso nos coloca diante de um problema complicado: como não podemos tomar EUA e Europa como benchmarks, não temos como fazer projeção alguma. Tudo pode acontecer. Pode ser que estejamos já no pico, ou pode ser que o pico esteja daqui a um mês, dois meses ou quatro meses. Ninguém realmente sabe, ninguém tem um modelo que possa fazer essa predição. O único que tínhamos, que era o comportamento da Europa ou dos EUA, já ficou duas semanas para trás.

Aqui entra o quadro apresentado pelo ministro da Casa Civil, Braga Neto, ontem (também em anexo). Este quadro procura mostrar que o Brasil não é a Europa: aqui tivemos muito menos óbitos do que lá. Bem, ainda bem que tiveram o cuidado de colocar a palavra “fotografia” no título do quadro. Isso é, realmente, só uma fotografia. O “filme” está nos gráficos anteriores: estamos com óbitos diários em ascensão, enquanto Europa e EUA estão em declínio.

Fiz um exercício simples, comparando Brasil e Espanha, um dos piores casos da Europa. Considerei que o número de óbitos no Brasil continue crescendo a 4,7% ao dia, enquanto o número de óbitos na Espanha continue decrescendo a 3,4% ao dia. Estas são as taxas médias dos últimos 7 dias em ambos os países. Se isto for verdade, ultrapassaremos o número de óbitos da Espanha daqui a 45 dias (segundo barra vertical. A primeira indica o dia apresentado na tabela do governo). Um mês e meio. Final de junho. Seriam 600 mortes/milhão, o que daria um total de 127 mil óbitos. Isso, em 3 meses e meio da pandemia no Brasil.

Claro, isso é só uma simulação, assumindo algumas premissas que podem não se realizar. Pode muito bem ser que estejamos no pico, ou próximo a ele. Não sei exatamente porque estaríamos, mas tudo bem, podemos estar. Mas também podemos não estar. Enquanto não tivermos certeza de onde estamos, talvez fosse melhor segurar as tabelas comemorativas.

As virtudes do câmbio flutuante

O câmbio flutuante é uma benção.

O câmbio é a melhor medida da saúde econômica de um país em relação ao mundo. Ele traduz, em um único preço, as diversas e intrincadas relações econômicas e financeiras que um país têm em relação aos seus pares globais.

Nem sempre foi assim.

Até a década de 70, o câmbio era administrado no mundo inteiro. Com o fim do padrão-ouro nos EUA, os diversos países foram forçados a deixar suas moedas livres para flutuar. Aqui no Brasil, a nossa experiência de câmbio flutuante começa somente em janeiro de 1999.Com um câmbio administrado, as pressões sobre a economia se acumulam, afetando balanço de pagamentos e dívida pública, até que, não tendo mais como segurar a “cotação administrada”, tudo explode. Vimos essa novela várias vezes na história econômica brasileira.

Além de evitar o acúmulo de pressões, o câmbio flutuante tem a grande virtude de sinalizar que algo não vai bem no país em relação aos seus pares. Trata-se de um termômetro: se valoriza, significa que estamos ficando mais ricos em relação aos outros países. Se desvaloriza, significa que estamos ficando mais pobres.

Alguns podem dizer que o mercado de câmbio não passa de um parque de diversões para especuladores. Sim, também. Mas também existem empresas que precisam fazer o hedge de suas importações, e famílias que viajam para o exterior. E, mais que tudo, existe o Banco Central com mais de US$300 bi de reservas, pronto a vender dólar para quem quiser. Trata-se de um inibidor formidável para quem quer especular contra o Real. E, mesmo assim, a moeda ruma para R$6 por dólar.

Como eu estava dizendo, o câmbio flutuante é uma benção. Já ficou para a história a frase de Paulo Guedes, afirmando que “se o dólar for a R$5, é sinal de que estou fazendo muita bobagem”. E a R$6? Há que se conceder que Guedes e sua equipe vem remando contra a marcha da insensatez. As bobagens estão sendo feitas em várias partes dos 3 poderes.

Pelo menos, ao contrário de outras crises no passado, temos o câmbio flutuante que serve como o canário na mina. Ninguém vai poder dizer que não sabia que algo muito errado estava sendo feito.