Tinha um conhecido que foi dono de uma agência de publicidade em uma cidade média do interior paulista lá pelos idos da década de 90. Contava ele que, certo dia, foi à prefeitura da cidade para algum procedimento burocrático, onde conheceu um rapaz do departamento de obras da cidade. Papo vai, papo vem, descobriu que o rapaz tinha acesso ao banco de dados de todos os munícipes que entravam com pedido de autorização para fazer alguma obra. Logo percebeu a oportunidade e propôs o negócio: o rapaz lhe franqueava o acesso a esta lista em troca de uma “ajuda de custo”. Com a lista em mãos, este meu conhecido mandava mala-direta para as pessoas da lista com propaganda de materiais de construção. Não sei que fim teve este negócio, mas lembrei-me dessa história ao tomar conhecimento do “escândalo do Facebook”.
O paralelo parece perfeito: ingênuos usuários do serviço deixam seus dados sob a guarda da empresa, mas esta se aproveita de seu acesso privilegiado a estes dados para “monetiza-los” (como se diz no jargão das fintechs).
Mas a semelhança é apenas superficial. Os cidadãos, ao entregar seus dados a órgãos públicos, o fazem de maneira compulsória. Caso não o façam, podem sofrer os rigores da lei. E os órgãos públicos têm a óbvia obrigação de manter esses dados sob sigilo.
Coisa semelhante ocorre quando somos clientes de um banco, loja ou prestadora de serviço: apesar de não ser compulsória, esta relação é comercial: pagamos pelo serviço, e esperamos que nossos dados pessoais não sejam parte desse pagamento. Ou seja, esperamos que o preço do produto ou serviço adquirido seja o suficiente para quitar esse produto ou serviço. Portanto, ao vender os dados a terceiros, este banco, loja ou prestador de serviço estaria auferindo receita indevida, não prevista em contrato.
Aí está, em minha opinião, o cerne do imbróglio envolvendo o Facebook e, por extensão, todos os serviços “gratuitos” disponíveis na Internet.
Tenho vários amigos que usam, por exemplo, o GuiaBolso, um programa de controle de orçamento, por ser “gratuito”. Eu digo a eles: não existe nada “de graça”. NADA. De alguma maneira, o aplicativo precisa gerar lucro. Como certa vez li em algum lugar, “se você não está pagando pelo produto, então o produto é VOCÊ!”.
Todos esses serviços “gratuitos” na Internet (e o Facebook é o maior deles) vivem de vender (ou “monetizar”) os dados dos seus usuários.
O Facebook faturou US$40 bilhões em 2017. Isso significa US$20 para cada um de seus 2 bilhões de usuários. Pergunta: você estaria disposto a pagar uma anuidade de US$20 para usar o Facebook? Alguns talvez, a maioria, provavelmente, não. Imagine que o Facebook de fato disponibilizasse ferramentas para preservar TODOS os seus dados e que todos os usuários fizessem uso dessas ferramentas. No limite, o Facebook perderia o grande diferencial que tem sobre a mídia tradicional: a segmentação. Na verdade, ficaria ainda pior que a mídia tradicional. Nesta, pelo menos, sabemos mais ou menos o público-alvo. Imagine uma grande base de dados sem segmentação por renda, por gostos, até por países! Imagine você recebendo publicidade de empresas de Botswana, porque o banco de dados não sabe em que país você está!
Facebook, Google e todas as outras fintechs “gratuitas” só fazem sentido se puderem segmentar seus bancos de dados. E isso só é possível se os dados, tanto os pessoais quanto os de navegação – principalmente estes) não estiverem sob sigilo.
Zuckerberg está na linha de frente da confusão por ter a maior base de dados do mundo, mas não está sozinho nesta. O que está em jogo é o modelo de negócios das fintechs “gratuitas”. Os usuários precisam decidir: ou pagam pelo serviço ou desistem de sua privacidade. A terceira opção, gratuidade + privacidade, levará ao fechamento dessas fintechs. No caso do Facebook talvez não seja uma má ideia: minha produtividade aumentaria muito neste caso.