Os desafios da política

Bolsonaro distribuiu hoje a seus grupos no WhatsApp um texto de origem anônima. A sua distribuição pelo Presidente da República só tem duas interpretações: ou ele está preparando um golpe, ou está preparando a sua renúncia.

Vamos começar pelo que o texto tem de correto: de fato, o Brasil (e o governo) é refém de “corporações com acesso privilegiado ao orçamento público”. “Políticos, servidores-sindicalistas, sindicalistas de toga, grupos empresariais bem posicionados nas teias do poder” formam o grupo que impede o Brasil de ser “governado de acordo com o interesse dos eleitores”.

Sim, o Brasil é refém de corporações, que defendem com unhas e dentes o seu quinhão no orçamento. Mas o texto, a partir daí, é de um primarismo político que mostra o quanto Bolsonaro, ao divulgá-lo, não está preparado para a tarefa que o povo lhe delegou.

Segundo o texto, “Bolsonaro provou que o Brasil, fora desses conchavos, é ingovernável”. Sim, o Brasil é ingovernável quando o presidente age como um imperador, desprezando o fato incontornável de que, em um país com mais de 200 milhões de habitantes, há pessoas que pensam de maneira diferente da sua e de seu grupo. O Congresso nada mais é do que o espelho da sociedade: multifacetado, com interesses divergentes, e que precisa de um norte comum para caminhar para uma meta. Xingar constantemente seus adversários e, pior, seus potenciais aliados, não fará o Brasil ser mais governável. O sectarismo nunca será a melhor forma de lidar com a diversidade.

Há bandidos no Congresso? Com certeza. Assim como há bandidos nas Forças Armadas, entre os médicos, entre os advogados, entre os professores, no mercado financeiro, enfim, em todo lugar onde há seres humanos. Há gente boa no Congresso? Com certeza também! Mas Bolsonaro não parece interessado nisso. Sua “nova política” é basicamente enviar o que acha correto ao Congresso, e que este carimbe a vontade do imperador. Se não o faz, é porque está defendendo interesses inconfessáveis.

Por exemplo, o autor do texto diz que “nem uma simples redução do número de ministérios pode ser feita. Corremos o risco de uma MP caducar e o Brasil ser OBRIGADO a ter 29 ministérios e voltar para a estrutura do Temer”. Ora, e quem disse que a estrutura proposta por Bolsonaro é a melhor para o País? Por que o Congresso precisa aceitar aquilo que emana do augusto panteão da justiça? Bolsonaro não negocia, não tenta convencer. Sua tarefa se dá por cumprida ao enviar o texto para o Congresso, este que cumpra o seu dever e aprove a vontade do imperador. E ai se não aprovar. Restará provado que o Congresso, em nome das corporações, “quer, na verdade, é manter nichos de controle sobre o orçamento para indicar os ministros que vão permitir sangrar estes recursos para objetivos não republicanos”.

Pois é. O Congresso quer manter nichos de controle sobre o orçamento. No que está muito certo. Os imperadores Pedro I e Pedro II tinham o controle sobre o orçamento, e só a muito custo o Congresso conseguiu avançar sobre este controle que, de outra forma, seria exercido de maneira ditatorial por uma única pessoa.

E se o Congresso tiver uma ideia melhor? Afinal, foram tão eleitos quanto Bolsonaro. Ou Bolsonaro é sempre “do bem” e o Congresso é sempre “do mal”? Conhecemos um partido que se colocava como a quintessência da virtude e vimos onde fomos parar. Há interesses corporativos? Com certeza! Assim como há interesses legítimos. Cabe a um estadista separar o joio do trigo, negociando, cedendo, procurando soluções de compromisso. Chamar todo mundo fora de seu grupinho de ladrão não ajuda em nada, para dizer o mínimo.

O autor do texto faz uma confusão dos diabos ao tentar provar que o Brasil é “refém” das corporações, independentemente da coloração ideológica do presidente. Cita como exemplo o fato de FHC ter “liberado” o câmbio dois meses depois de reeleito, mesmo tendo prometido segurá-lo. Ora, soltar o câmbio foi uma necessidade matemática, as reservas internacionais tinham simplesmente acabado! Em que a liberação do câmbio em 1999 ajudou as corporações? Mistério. Outro exemplo: “Lula foi eleito criticando a política de FHC, mas fez a reforma da previdência e aumentou os juros”. Ora, o que isso tem a ver com as corporações? Na verdade, a reforma da previdência de Lula desafiou as corporações do funcionalismo público (houve até invasão do Congresso). E o governo Lula, após ter aumentado os juros, voltou a diminuí-los para patamares abaixo dos vigentes no governo anterior, menos de um ano depois da posse. Aumentou os juros para agradar as corporações e diminuiu os juros também para agradar as corporações? Mais um exemplo: “Dilma foi eleita criticando o neoliberalismo, e indicou Joaquim Levy”. Bem, Dilma indicou Levy apenas 4 anos depois de sua primeira eleição. E o fez porque o dinheiro simplesmente acabou. Onde estão as corporações aqui?

A ideia do autor anônimo é de que todos os presidentes estão fadados a cometerem estelionato eleitoral, independentemente de sua coloração ideológica, porque pressionados pelas corporações, os verdadeiros donos do Brasil. Ora, esse é um argumento pueril. Significa que as corporações se contradizem ao longo do tempo (por exemplo, são a favor da reforma da previdência com Lula e contra a reforma da previdência com Bolsonaro) só para mostrarem quem realmente manda no Brasil, mesmo que seus interesses sejam contrariados. Não faz o mínimo sentido.

O autor do texto agradece a Bolsonaro por ter provado “de forma inequívoca que o Brasil só é governável se atender o interesse das corporações”. Bem, e daí? Qual a solução? Como sair dessa armadilha? Bolsonaro era a promessa de sairmos dessa armadilha, não a promessa de constatarmos que a armadilha existe. Se não tem jeito de sair da armadilha, como afirma o autor do texto, então Bolsonaro é o cara errado no lugar errado. Restam apenas duas saídas: virar a mesa ou desistir. Não há uma terceira.

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