O valor da imprensa em uma democracia

Ontem, fiz uma defesa apaixonada da liberdade que a imprensa deve ter em qualquer democracia. Recebi muitas contestações, a maioria muito educada, outras nem tanto. Rebati várias, mas uma em especial me pegou.

Refiro-me à abordagem que a Globo adotou na reportagem sobre o presidente. Na minha cabeça, a matéria cumpria todos os requisitos do bom jornalismo: noticiou um fato (o depoimento do porteiro), checou possíveis contradições e deu voz “ao outro lado”, no caso o advogado do presidente e o próprio presidente. Escapou-me, na avaliação, que o simples fato de associar o nome do presidente a um assassinato rumoroso é deletério para qualquer reputação, independentemente da “forma” correta. Faltou, na minha avaliação, colocar o aspecto de “percepção”.

Esse tipo de avaliação deveria ter sido feita pela Globo. Trata-se de uma associação muito grave e, por mais que a “forma” de apresentar possa ter sido correta, no mínimo a ênfase foi equivocada: o problema estava no falso testemunho do porteiro, não na alegação que fez. A “contradição” foi mostrada como um complemento da notícia, quando na verdade deveria ser a própria notícia principal. Afinal, por que o porteiro quis envolver o nome do presidente nesse assunto?

A bem dizer, dada a fragilidade da coisa toda, talvez a melhor coisa que a Globo poderia ter feito era investigar mais um pouco antes de colocar a coisa no ar.

Claro que todo o raciocínio acima tem como pressuposto o papel da imprensa em uma democracia. É sobre isso o texto a seguir, que roubei da timeline do amigo Thiago Nogueira. Gostei, por que é um texto que descreve muito bem o que é uma democracia e o papel da imprensa neste regime. Por mais que a Globo tenha errado, ou mesmo se agiu de má-fé, continua sendo melhor ter a Globo (ou qualquer outro veículo jornalístico) do que não tê-la.

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O Poder e a Liberdade de Imprensa
Fernando Schüler

Segundo o Ministério Público, o porteiro mentiu. É isso. Mesmo antes do MP se manifestar, muita gente já “sabia” que era mentira. Uma outra turma, mesmo depois, continua “sabendo” que é tudo verdade. A verdade líquida, na era digital, tem dessas coisas.

De qualquer forma, tenho uma intuição. Se tudo se mostrar de fato um balão furado, Bolsonaro sairá disso com um bônus retórico semelhante ao que ganhou após o atentado que sofreu, antes das eleições.

Mas há um tema complicado aí, que diz respeito às relações do poder com a liberdade de imprensa. É aí que Bolsonaro insiste em um erro. Não um erro em sua estratégia política, mas para nossa democracia. De um tipo que tem uma longa história.

Todos se lembram de Leonel Brizola e sua infatigável disputa com a Rede Globo. Segundo Brizola, concessões de TV eram como linhas de ônibus, “não pode transportar uns e não transportar outros”. O problema, por óbvio, era explicar o que isso significava exatamente.

Mesmo que o princípio abstrato do “transportar a todos” seja correto, sua aplicação será dada pela própria imprensa. Cada veículo definirá quando e de que jeito cada um entra em cena. É injusto? Talvez.

Justo seria um mundo onde uma equidistante inteligência distribuísse a verdade, para todos, ou desse espaços iguais a cada inverdade? Lamento. Esta superinteligência não existe, e todas as vezes que alguém tentou fantasiar algo nessa linha foi um desastre.

No início de seu mandato, Lula protagonizou um episódio dantesco, tentando expulsar do país o então correspondente do The New York Times no Brasil, Larry Rohter. Foi um episódio isolado, mas revelador.

Todos se lembram, ainda há exatos três anos, do repórter Caco Barcellos sendo agredido no centro do Rio de Janeiro, aos gritos de “abaixo a Rede Globo”. Os donos da verdade, à época, eram outros.

Outros presidentes, incluindo-se aí Sarney, Fernando Henrique, Dilma e Temer, tiveram posturas de um modo geral republicanas com a imprensa. Diante da quase obsessão de setores da esquerda em “regular a mídia”, Dilma cravou a frase que deveria ser exposta permanentemente no Palácio do Planalto: “Sobre a mídia, só o controle remoto”.

São exemplos importantes por uma simples razão: é disso que é feita a democracia. O argumento em favor da liberdade de expressão é há muito conhecido. Um de seus heróis foi John Stuart Mill, dizendo o óbvio: que a única razão para permitir que apenas ideias verdadeiras fossem veiculadas seria uma extrema confiança na infalibilidade humana.

Tudo isso é sabido, ainda que frequentemente esquecido por quem detém o poder. Recentemente tivemos um exemplo disso, vindo de nossa Suprema Corte. No episódio de interdição da revista Crusoé, o presidente da corte nos brindou como uma frase lapidar: “Se você publica uma matéria chamando alguém de criminoso (…) e isso é uma inverdade, tem que ser tirado do ar. Ponto. Simples assim”.

Na verdade, é bem complicado. Ninguém tem, na democracia, o dom de revelar a verdade. Ela surge, a mais das vezes, do contraditório, da fratura, do cotejo dos fatos. A condição para o acerto, no mundo da informação, é precisamente a possibilidade do erro.

É claro que se deseja que as pessoas ajam com responsabilidade (por muito tempo se discutirá se a Globo agiu com responsabilidade, neste episódio, e imagino que a própria emissora fará esta avaliação). É evidente que a imprensa pode ser criticada, inclusive por quem ocupa posições de poder. A imprensa está longe de ser uma “instituição” que observa a sociedade de fora.

As democracias vêm assistindo, em nossa época, a um processo agudo de polarização, e boa parte da imprensa terminou igualmente polarizada. Isto é um erro, sinal de mau jornalismo, na minha visão, mas é a expressão de um direito. O parcialismo da imprensa profissional fará apenas com que ela perca mais e mais espaço e credibilidade em meio ao caos informacional de nossa época. Mas quem deve julgar isso são os leitores, os ouvintes, os cidadãos. Não o poder.

É exatamente nisso que consiste o erro do presidente Bolsonaro. Ele tem o direito de criticar este ou aquele veículo de mídia, e eventualmente extravasar a sua indignação.

Mas não pode, sob nenhuma hipótese, lançar mão de instrumentos de poder que a República lhe confere para arbitrar ou interferir nesta ou aquela opinião, neste ou naquele jornalista ou veículo de mídia. E não pode por uma singela razão: ele lida com poderes dos quais é um guardião, mas que não lhe pertencem.

Porque somos uma república, afinal de contas.

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