As condições para o impeachment

Complementando o meu post anterior.

Tivemos até hoje dois presidentes impichados. Nos dois casos, quatro elementos se fizeram presentes:

1) Algo que pudesse ser chamado de crime.

2) Uma recessão profunda.

3) Popularidade muito baixa.

4) Falta de apoio no Congresso.

Trata-se apenas de uma divisão para facilitar a análise, esses 4 fatores se entrelaçam e se causam mutuamente, um pode levar ao outro.

A respeito do primeiro item, lembre-se que não se trata de um julgamento jurídico, mas político. O “crime” pode ser qualquer coisa que seja razoavelmente entendida como crime, não precisa ter a precisão e robustez de um julgamento realizado em um tribunal. Como certa vez ouvi um político descrever, “se você está ao lado de um caixão fechado que fede a defunto, não precisa abrir para provar que o defunto está lá dentro”. Dilma e os petistas gastaram o gogó dizendo que impeachment sem crime é golpe. Quem decide se é crime ou não são os deputados.

No caso de Bolsonaro, se os outros três fatores se fizerem presentes, forjar uma assinatura eletrônica em documento oficial pode ser considerado crime. Esse, eu diria, é o fator menos importante, o mais fácil de arrumar.

Com relação à recessão, ela já está contratada. Bolsonaro tem o álibi do coronavírus, afinal a recessão não foi causada por políticas econômicas desastradas, como no caso de Collor e Dilma. Mas, se a recessão for muito prolongada, e se políticas populistas forem adotadas piorando a situação, essa percepção pode se reverter. Mas isso é mais para frente, não agora.

É para a popularidade que quero chamar a atenção. O gráfico abaixo é um levantamento que mantenho há anos, com base nas pesquisas de opinião do Ibope, Datafolha, CNI (que muda de instituto de pesquisas de vez em quando) e, mais recentemente, XP/Ipespe. Cada ponto é uma média desses institutos.

O gráfico mostra a “popularidade líquida”, ou seja, a diferença entre “ótimo/bom” e “ruim/péssimo” para a pergunta sobre a opinião do eleitor a respeito do governo. Podemos observar que os dois impeachments ocorreram quando a popularidade líquida atingiu a faixa dos -50/-60 pontos. Quatro presidentes atingiram este patamar, mas apenas dois foram impichados. Os dois que não foram contavam com a ausência da quarta condição para o impeachment: falta de apoio no Congresso.

Sarney e Temer se criaram dentro do Congresso, dominando todos os cordões da articulação política, de modo que conseguiram se manter no poder mesmo com a popularidade no subsolo. As condições econômicas sob Temer também ajudaram, pois o país estava se recuperando do desastre da era Dilma.

No caso de Bolsonaro, obviamente lhe falta este domínio do Congresso. A tentativa canhestra de cooptar agora deputados do Centrão é só uma demonstração disso. De modo que, o que lhe resta neste momento, é a popularidade.

Hoje, a popularidade líquida de Bolsonaro está em -14, um pouco desgastada com essa crise do corona. Quanto perderá com a saída do Moro? Precisamos aguardar as próximas pesquisas, mas não acho que irá ultrapassar, em um primeiro momento, algo como -25 ou -30. Trata-se de uma popularidade baixa, mas longe de permitir um movimento de impeachment. Pode ser que a recessão faça o resto do serviço, mas, como disse no post anterior, não vejo condições objetivas, hoje, para o sucesso de um processo de impeachment.

As várias tribos

Bolsonaro foi eleito com cerca de 55% dos votos válidos no 2o turno.

Havia várias tribos nesses 55%.A maior, eu diria a totalidade, era a tribo anti-PT. Para evitar a volta do PT, valia o pacto com o capeta. Essa grande tribo garantiu a vitória de Bolsonaro em 2018.No entanto, dentro desse tribo, como bonecas de matrioskas, se alojavam outras quatro tribos, não necessariamente excludentes entre si.

A primeira é a tribo dos liberais. Bolsonaro, ao apontar Paulo Guedes, empresário do setor financeiro e treinado em Chicago, como seu Posto Ipiranga, atraiu o PIB o nacional.

A segunda tribo é a dos lavajatistas. Cansados do lupanar que se tornou Brasília, votaram naquele que parecia ser diferente de “tudo isso que está aí”. É a Nova Política. Símbolo máximo dessa tribo, Moro foi o troféu mais reluzente que Bolsonaro conseguiu para o seu ministério.

Os evangélicos/religiosos formam a terceira tribo, preocupada com temas ligados aos costumes, como a agenda gay e a luta contra o aborto. Costumam ver Bolsonaro como um “enviado de Deus”. A ministra Damares é a representante dessa agenda no ministério.

Por fim, a quarta tribo é a dos ideológicos. Liderados por Olavo de Carvalho, sua preocupação é a luta contra o marxismo cultural, o globalismo e quetais. O ministro que melhor representa essa ala é Abraham Weintraub, não por coincidência citado elogiosamente no pronunciamento de ontem.

Como eu disse no início, uma pessoa pode pertencer a várias tribos ao mesmo tempo, com maior ou menor ligação. O que vai a seguir é uma simplificação da realidade.

Os primeiros eleitores que foram perdidos foram os anti-petistas que não tinham nenhuma ligação especial com qualquer das tribos menores. Seu compromisso com Bolsonaro era zero, seu objetivo (evitar o PT no poder) já havia sido atingido.

A segunda tribo foi perdida ontem: Moro levou consigo os lavajatistas-raíz, aqueles para quem essa agenda de moralização da política é mais importante do que qualquer outra. A aproximação do governo com o Centrão certamente não ajuda nesse contexto.

A terceira tribo a caminho de ser perdida é a dos liberais. O modo como Paulo Guedes se apresentou no pronunciamento de ontem é uma representação gráfica da atitude dos liberais hoje: f@da-se. O plano Pró-Brasil é um sinal de que Bolsonaro já se cansou da ladainha liberal, está a fim de pegar um atalho.

As outras duas tribos (religiosos e ideológicos) seguem firmes e fortes. Não tenho ideia do seu número, mas acho que não são pequenas. De modo que a popularidade do presidente vai cair, mas não vai despencar. E, para que um impeachment aconteça, é necessário, entre outros fatores, que a popularidade venha a praticamente zero. A recessão pode levar a isso, mas pode demorar. Por ora, não vejo condições objetivas para um processo de impeachment.

Imunidade de rebanho ainda está longe

Em Nova York, fizeram uma testagem controlada por amostragem e encontraram 21% de contaminação na cidade e 14% no Estado. A manchete é de que muito mais gente do que o imaginado estava contaminada.

Bem, as estatísticas do worldometer apontam que, de cada 100 pessoas testadas, 39 casos foram detectados no Estado de Nova York. Ou seja, praticamente o triplo do apontado pela pesquisa por amostragem. E olha que Nova York tem um senhor volume de testes, tendo testado 3,5% da população (lembrando que a Coreia testou 1%). Se, com essa quantidade de testes, Nova York sobre-estimou o número de contaminados na ordem de 3 para 1, imagine em países onde a testagem é mínima.

No Brasil, 17% dos testes deram positivo, ainda segundo o worldometer. Se a experiência de Nova York puder ser extrapolada, aqui temos, no máximo, 6% da população contaminada. Digo no máximo porque, sendo a base de testagem muito menor (o Brasil testou apenas 0,13% da população até o momento), o resultado tende a ser muito menos confiável.

Em resumo: com no máximo 6% da população contaminada, estamos muito longe de ter atingido a imunidade de rebanho.

Torcendo as estatísticas

Hoje, o CEO da Multiplan (empresa de shopping centers) publicou anúncio de página inteira, pedindo pela reabertura do comércio. Para tanto, procura minimizar o número de mortes causadas pela Covid-19, comparando-o com o número de mortes por outras doenças. Trata-se de um número muito pequeno, não justificando, portanto, o fechamento da economia. Estará ele certo?

Desde que o número de óbitos registrados por COVID-19 acelerou para mais de 100/dia, no dia 07/04, foram um total de 2.342 óbitos contabilizados (até ontem, 22/04). Ou, 146 óbitos/dia, na média do período. Por que peguei este período? Porque este tem sido o ritmo de óbitos desde então. Por exemplo, nos últimos 3 dias, foram 148 óbitos/dia. Então, não tem acelerado, pelo menos por enquanto.

Este número é muito? É pouco? Com o que deveríamos comparar? Para verificar, vamos pegar a mesma base usada pelo CEO da Multiplan, o Datasus.

Segundo os números do Datasus, em 2018 morreram 1.316.719 pessoas pelos mais diversos motivos, ou 3.607 pessoas/dia. A campeã das causas são as diversas doenças do aparelho circulatório, com 27,2% do total, seguido de câncer (17,3%), doenças do aparelho respiratório (11,8%) e causas externas, como violência, acidentes de trânsito etc. (11,5%).Dos óbitos decorrentes de doenças do aparelho respiratório, 51% foi devido a pneumonia, o que representou 79.281 óbitos em 2018. Quando observamos este número, nos parece algo muito maior do que o Covid-19, que matou, até o dia 22/04, “apenas” 2.906 pessoas no país. Por que então se faz tanto barulho em torno do Covid-19, enquanto para combater a pneumonia, que é algo parecido, não se cogita fechar o país? Esta é a pergunta feita no anúncio.

Em primeiro lugar, não vamos nos deixar enganar pelos números. Sabe aquela propaganda “você pode comprar este carro pelo equivalente a um cafezinho por dia?”, tanto ao gosto de comerciantes como o dono do shopping? Aqui é a mesma coisa, estamos comparando períodos diferentes. 79.281 óbitos/ano significa, na média, 217 óbitos/dia por pneumonia. Comparando o número de mortes por Covid-19, estas já alcançaram 68% do número de mortes por pneumonia em 2018, ajustado pelo período. Isto porque estamos em regime de distanciamento social há um mês, não sabemos o número se não houvesse esse regime.

Em segundo lugar, a pneumonia é CAUSADA pela Covid-19, mas não se confunde com ela. A pneumonia é uma doença do sistema respiratório que pode ter várias causas (na maioria das vezes, bacteriana), a enorme maioria não contagiosa. Quando um parente morre de pneumonia, pode ter velório e enterro com a família. Portanto, não se resolve pneumonia com distanciamento social. Além disso, o número de óbitos pela doença é mais ou menos constante, tendo girado entre 70 e 80 mil nos últimos anos, segundo o mesmo Datasus. Ou seja, o sistema de saúde, mal ou bem, está dimensionado para tratar esses casos.

Doenças altamente contagiosas têm outra dinâmica. Há surtos, que podem pressionar o sistema hospitalar. O mais comum é a gripe. O mesmo Datasus nos diz quantas pessoas morreram de influenza ao longo dos últimos anos. O pior ano foi 2009, com o surto de H1N1: 1.818 pessoas morreram naquele ano. Ou seja, já morreram mais pessoas por Covid-19 em um mês do que de influenza em um ano, no pior ano da doença no Brasil.

Visto de outra maneira: seguindo nesse ritmo (não precisa acelerar o número de óbitos), o Covid-19 vai matar 54 mil brasileiros em um ano. Isso é o dobro dos que morrem de câncer de pulmão, um pouco menos dos que morrem de diabetes, ou o equivalente ao número dos que morrem assassinados no país todo ano.

– Ah, mas não vai continuar, o surto uma hora vai acabar, esses 54.000 estão exagerados.

Por obra e graça do que vai terminar? O Covid-19 não tem vacina, não tem remédio, a taxa de mortalidade é algo entre 0,5% e 1,0% dos contaminados, por que morreriam menos de 54 mil em um ano? Por imunidade de rebanho é que não vai ser. A conta é simples: se morrerem 54 mil em um ano, isso significa, para uma taxa de mortalidade de 0,5%, 10,8 milhões de infectados, ou 5% da população brasileira. Longe, portanto, da imunidade de rebanho. Sem isolamento social (ou uma vacina), esse número é daí para cima, não daí para baixo.

Outro número mostrado pelo CEO tem o seu valor. Sem dúvida, nosso número per capita de óbitos tem sido várias vezes menor que nos países da Europa e nos EUA. Pode haver várias explicações: subnotificação, clima, vacinação BCG, raios UV, número maior de leitos de UTI, medidas de isolamento social precoces etc, etc, etc. Este número é importante, e isso sim pode servir de base para um relaxamento da política de distanciamento social, uma vez garantido o atendimento na rede hospitalar. Mas, obviamente, trata-se de um retrato da situação atual, não necessariamente o que vai acontecer no futuro se a política mudar. Por isso, tudo precisa ser feito com cautela, de modo planejado, e sempre com o preparo necessário para lidar com um eventual aumento excessivo do número de casos.

Não há dúvida de que o custo econômico do distanciamento social tem sido altíssimo, e é perfeitamente legítimo questionar se está valendo a pena. Mas precisamos de dados honestos para julgar. Fazer comparações descabidas não ajuda para a avaliação do problema.

A história se repete

Uma História do Brasil de bolso.

Na década de 50, o Estado brasileiro era capaz de construir uma cidade do nada. E assim o fez. Brasília nasceu às custas de endividamento e emissão de moeda. Resultado: inflação descontrolada e crise da dívida na década de 60, e a queda do governo alguns anos depois.

Na década de 70, o Estado brasileiro não era mais capaz de construir cidades, mas ainda podia fazer grandes obras. E assim o fez. Itaipu, Transamazônica e outras obras gigantescas nasceram às custas de endividamento externo. Resultado: inflação e crise da dívida na década de 80, precipitando o fim do regime militar.

Na década 2000, o Estado brasileiro já não podia mais construir cidades ou grandes obras. Mas ainda era capaz de capitalizar seu banco de desenvolvimento (uma forma de driblar as agruras de um orçamento limitado), e alavancar o retorno de acionistas privados em grandes obras. Assim nasceram Belo Monte, Sete Brasil e os campeões nacionais. Resultado: inflação e descontrole das contas públicas na década de 10, precipitando o fim do governo.

Aprendemos?

Não.