A saída mais segura da quarentena seria a chamada “herd immunity” ou imunidade de rebanho. Quando um certo percentual da população já pegou a doença e, pelo menos teoricamente, adquiriu imunidade, o surto termina, porque falta gente para ser contaminada. Este percentual da população é objeto de debates, mas já ouvi coisas entre 50% e 70%.Como saber se um país ou região atingiu a imunidade de rebanho? Não há outro modo a não ser testar a população. Por isso, é incontroverso que é preciso fazer testagem extensiva para que se tenha segurança na saída da quarentena.
O gráfico abaixo mostra a relação entre o grau de imunidade da população (eixo y) e a extensão da testagem, em número de testes/milhão de habitantes (eixo x). O grau de imunidade é calculado dividindo-se o número de casos registrados pelo número de testes aplicados. Obviamente, quanto mais testes, mais confiável será esse número.
Vamos avaliar dois extremos: no país A, somente se testa aqueles que chegam com sintomas claros de Covid-19 no hospital. A tendência é de que 100% dos testes resultem positivo. Isso significa que 100% da população tem o vírus? Provavelmente não, a testagem é muito limitada e enviesada. Já no país B, os testes são aplicados aleatoriamente a um número grande de pessoas. O resultado, neste caso, é uma aproximação mais fidedigna do grau de contaminação da população como um todo.
A má notícia aqui é que o índice de 50% não foi atingido em nenhum país, mesmo naqueles que testam pouco. No Brasil, por exemplo, o índice é de 15%, mesmo testando somente 0,13% da população. Ou seja, provavelmente, o grau de contaminação da população, hoje, é muito baixo.
Na Islândia, campeã mundial de testagem, o índice de contaminação é de meros 4%. Países que combinam alta testagem (acima de 1% da população) com contaminação relativamente alta (acima de 20%) são raros, e normalmente são aqueles onde o surto causou muitas hospitalizações/mortes, como é o caso da Espanha, Bélgica, EUA e Holanda).De qualquer forma, parece claro que a imunidade de rebanho não foi atingida em lugar nenhum do mundo. O que fazer? Manter tudo fechado até encontrar uma vacina? Impraticável. O que será feito é uma abertura cuidadosa, sabendo-se que novos surtos irão surgir, a que se seguirão novos fechamentos. Conviveremos ainda muitos meses com essa epidemia, é bom se acostumar.
O Ministro da Saúde anunciou ontem que vai ampliar o número de testes para a Covid-19 de 24 para 46 milhões. Excelente notícia! Afinal, sem testes em massa, será impossível sair com segurança da quarentena, como reconhece o ministro.
Mas, vamos ver a coisa um pouco mais de perto.
Até o momento, quase dois meses depois do início da epidemia no país, o Brasil processou 1.373 testes/milhão de habitantes, o que resulta em aproximadamente 290 mil testes no total (esse número é do worldometer, por incrível que pareça não encontrei um dado oficial a respeito). Se conseguirmos processar 46 milhões de testes, isso vai nos levar a incríveis 220 mil testes/milhão de habitantes!
Só para vocês terem uma ideia, a Islândia, campeã mundial de testagem, atingiu a marca de 128 mil testes/milhão de habitantes. Os EUA, com todos os recursos de que dispõem, processaram, até o momento, 12,5 mil testes/milhão de habitantes, 10 vezes menos que a Islândia. Então, 220 mil testes/milhão é um número respeitável, para não dizer muito bom para ser verdade.
Comprar os testes é a parte fácil. Difícil, como temos visto pelas filas de testes acumulados nos laboratórios, é processar os testes. No vídeo, o ministro diz que já fez um convênio com o Laboratório Dasa para processamento de 30 mil testes/dia. Para processar 46 milhões de testes nesse ritmo, serão necessários 4 anos e 2 meses, trabalhando sábados, domingos e feriados.
Obviamente, a capacidade de processamento não é suficiente para essa quantidade de testes. A Dasa é, de longe, o maior laboratório do Brasil, e vai conseguir processar 30 mil testes/dia. Para processar todos esses testes em, digamos, um ano, precisaríamos de outras 3 Dasas. Existem?
Desde o início da epidemia, o que não faltam são anúncios grandiloquentes de testagem. A coisa é sempre da ordem de milhões. A realidade, no entanto, é que não conseguimos, até agora, testar mais do que 300 mil pessoas. Não seria o caso de manter os 24 milhões de testes já adquiridos (a maior parte vinda de doações), o que já nos colocaria no patamar da Islândia, e gastar esse dinheiro em coisas mais úteis?
Como eu disse no início, anunciar compra de testes é a parte fácil, e passa a impressão de que o governo está trabalhando. Vamos ver como evolui o número de testes realmente aplicados e processados.
O Banco UBS fez um excelente levantamento do estado atual de quarentena de vários países do mundo. Para tanto, adotou uma escala de 1 a 10, em ordem de intensidade das restrições. Grosso modo, o UBS dá nota mínima 3 para escolas fechadas, nota mínima 5 para fronteiras fechadas e nota mínima 7 para quarentena generalizada. A tabela vai sendo atualizada semanalmente, então dá para ver o progresso das medidas de restrição em cada país, e fazer um comparativo das medidas entre os países.
Observe que a Índia, apesar do número mínimo de casos/óbitos (tem metade dos casos e um quinto dos óbitos do Brasil, apesar de ter população seis vezes maior), adota as maiores restrições. Eles sabem que aquilo é um barril de pólvora, e os números, por conta de uma testagem falha, não servem de nada.
Suécia aparece como o país como menor nota de restrições, confirmando o que já sabemos. Vamos ver se essa nota aumenta ou não nas próximas semanas.
Alguns países, como Rep. Tcheca, Malásia, Espanha e Alemanha já começam a fazer o caminho de volta.
Já o Brasil coloca-se no meio do caminho em termos de restrições. Se o pessoal já está reclamando, imagine se vivêssemos na Índia!
Imagine, por um momento, que todas as potências industriais do planeta internalizassem suas cadeias de produção. O que aconteceria?
Em primeiro lugar, os produtos industriais ficariam mais caros. A China só atingiu a posição que atingiu porque ofereceu ao mundo mão-de-obra qualificada e barata. O operário americano, europeu e japonês custam muito mais caro.
E qual seria o efeito para o Brasil? Além de produtos industriais mais caros, diminuiria o mercado para os nossos principais itens de exportação, soja e minério de ferro. Provavelmente enfrentaríamos um problema no balanço de pagamentos, que se resolveria com um real ainda mais desvalorizado. Em resumo, ficaríamos todos mais pobres.
Então, antes de torcer para o mundo “dar uma lição na China”, pense nas consequências para o seu bolso.
Excelente artigo sobre as escolhas morais envolvidas nas políticas de contenção do Covid-19.
No Brasil como um todo e em vários Estados, já há alguns dias temos duas informações objetivas sobre o avanço da epidemia:
1) A nossa curva de contaminados/óbitos continua em tendência de crescimento. Ou seja, o pico da doença, em tese, está mais para frente, e não sabemos quando e qual será esse pico.
2) O crescimento da nossa curva de contaminados/óbitos está muito mais suave do que na Europa e nos EUA.
Os grupos que defendem apertar ou liberar a quarentena se apegam a uma ou outra informação. A balança, que começou com apoio forte para a informação 1, já há alguns dias começa a pender para a informação 2, ainda que essa informação possa estar enviesada pela subnotificação. Se continuar nessa tendência por mais uma ou duas semanas, chegaremos ao ponto de considerar as mortes pelo corona como “mortes normais”, como diz o artigo. E a quarentena terá acabado por morte natural.
A única coisa que poderá fazer o pêndulo voltar a pender para a informação 1 é a superlotação dos hospitais. Mas aí, já terá sido tarde demais.
No meu (longo) post anterior, cito de passagem a experiência da Islândia. O pequeno país do Ártico, que não conta com muitos raios UV para acabar com o vírus, está tentando controlar a doença utilizando um método um pouco mais científico: a testagem em massa.
A Islândia até hoje testou 42.271 pessoas, ou nada menos que 12,6% de sua população. Seria o equivalente, no Brasil, a testar 26 milhões de pessoas. Acho que nem daqui a um século.
O número de contaminados é de 1.771 pessoas, ou 4,1% da população testada. Ou seja, estão longe de atingir imunidade de rebanho. Em relação à população total, representa 0,5%. Se tivéssemos o mesmo nível de testagem com o mesmo grau de contaminação, teríamos o registro de aproximadamente 1,1 milhão de casos no Brasil. Mesmo que tenhamos metade da contaminação da Islândia, seriam mais de 500 mil contaminados hoje. Outro dia saiu um estudo, que comentei aqui, que dizia que o Brasil teria mais de 300 mil casos. Talvez não seja nenhum absurdo.
Mas o ponto que eu queria comentar é o seguinte: a Islândia estratifica os contaminados por faixa etária. Essa informação vale ouro, porque se uma determinada faixa etária for, por algum motivo, mais imune, pessoas dessa faixa etária poderiam circular mais por aí. Isso é de especial interesse para as crianças. As escolas estão fechadas porque não sabemos se as crianças pegam mais ou menos a doença, e se poderiam ser vetores do vírus em suas casas. As estatísticas mostram que os mais velhos são mais acometidos pela doença simplesmente porque os testes são aplicados nas pessoas que chegam aos hospitais, normalmente as mais velhas.
Fiz o seguinte: peguei a distribuição de casos por faixas etárias e dividi pelo número de pessoas em cada faixa etária de acordo com a pirâmide populacional do país. Com mais de 12% da população testada de maneira aleatória, esse número deve estar próximo da realidade. Tive que fazer pequenas interpolações, pois as faixas etárias dos casos não casam exatamente com as faixas etárias da pirâmide etária. Os resultados foram os seguintes (os resultados devem ser comparados com 4,1%, que é o índice de infecção sobre a o número de testados e que, supostamente, representa o percentual total de infectados no país):
0-4 anos: 1,3%
5-9 anos: 0,9%
10-14 anos: 1,7%
15-19 anos: 4,8%
20-29 anos: 5,0%
30-39 anos: 4,9%
40-49 anos: 6,6%
50-59 anos: 5,5%
60-69 anos: 4,6%
70-79 anos: 2,1%
80-89 anos: 1,2%
mais de 89 anos: 2,7%
Observe que a faixa de 15 a 69 anos apresenta um grau de infecção que é, grosso modo, o dobro ou um pouco mais, em relação às faixas inferiores e superiores da pirâmide. Se isso for verdade, a letalidade nos bem mais velhos (acima de 80 anos) é bem maior do que se imagina, pois mesmo “pegando” menos a doença, estão morrendo mais.
Mas é para a faixa inferior que quero chamar a atenção: as crianças até 14 anos aparentemente estão menos suscetíveis à doença! Isso significa que, talvez, a reabertura de escolas possa ser possível, com alguns cuidados especiais de higiene. Ou seja, não tem nada a ver com “crianças aspiradoras de vírus” sem base científica alguma. Estamos diante de dados que podem ser significativos.
Não tenho formação epidemiológica e nem estatística, portanto esta análise pode estar totalmente furada. Mas acho que os dados que vêm da Islândia podem sim ser muito úteis para compreender cada vez mais o comportamento do vírus e dirigir as políticas públicas com base em conhecimento científico.
Desculpem-me, esse post vai ser longo. Quem quer acreditar no primeiro gajo que aparece falando bobagens, não precisa ler. Quem quer alguma informação com embasamento, peço um pouco de sua paciência.
Está rodando pelas redes sociais um vídeo “definitivo”, que “destrói a farsa do Coronavírus”. Trata-se de um PhD português, André Dias, PhD pela Universidade do Ártico da Noruega. Diz a apresentação no YouTube que se trata de uma das mais prestigiadas universidades do mundo na área de pesquisa epidemiológica. Visitando a página da tal universidade, encontram-se muitos campos de pesquisa em conservação ambiental, mas nada em epidemiologia.
Na verdade, no LinkedIn do PhD, e depois no próprio vídeo, a única experiência em epidemiologia que aparece é um período como pesquisador visitante na Universidade Técnica de Munique, no departamento de estatísticas médicas e epidemiologia. Mas isto foi entre 2008 e 2012. Depois disso, parece que derivou para outros campos.
Sua tese de doutoramento na Noruega (2013) foi a respeito da associação de doenças pulmonares com atividades físicas. Suas áreas de interesse são Inteligência Artificial e Sensores. Seu perfil no LinkedIn diz que ele trabalha na 3M da Inglaterra com reconhecimento de fala por algoritmos.
Mas, não costumo descartar argumentos descartando a pessoa que os expõe. Vamos analisar as ideias apresentados no vídeo.
Primeiro, o PhD português diz que o número de mortes na Europa está em níveis absolutamente normais. Mostra, para isso, o site euromomo.eu, que faz o tracking de mortes no continente. Não é on line como ele diz, tem uma certa defasagem, mas serve como estatística. O que ele mostra é o número TOTAL de mortes. Mas, visitando o site, vemos que a métrica que importa é o z-score, que é a distância para a média (esse gráfico ele não mostra). E o z-score está o dobro para esta época do ano. Ele até diz que se trata de uma gripe tardia, o que fez o pico atrasar um pouco, fazendo o número de casos ficar muito maior para a época do ano. Há dois problemas com esse argumento: 1) o que importa é o z-score, este indicador é o que mostra que há algo estranho, fora do padrão e, principalmente 2) o PhD compara períodos sem qualquer isolamento social com um período (o atual) com estritas regras de isolamento. E, mesmo assim, o número absoluto de mortes está semelhante. Ora, se com isolamento social, o número absoluto de mortes está no mesmo nível de períodos normais sem isolamento, então obviamente tem alguma coisa muito errada acontecendo.
Depois, o PhD mostra a curva de evolução de casos ativos na China, mostrando que se trata de uma curva normal. Ou seja, as medidas de isolamento não mudaram o formato da curva, que sempre é normal em casos de epidemia. Ora, há aqui uma falácia: a curva é de casos ATIVOS, ou seja, depois de infectados. Claro, as medidas de isolamento não vão mudar o curso da doença DEPOIS DA INFECÇÃO. O que o isolamento faz é DIMINUIR O NÚMERO DE INFECTADOS. Ou seja, a curva de infectados sempre será normal. O que muda é o TAMANHO DA CURVA. Se com o isolamento o pico da curva é de X infectados, sem isolamento será um certo múltiplo de X. Mas será sempre uma curva normal. O formato da curva não diz nada sobre a eficácia do isolamento. Este ponto é muito importante, porque o PhD vai se apegar a ele para deslegitimar o discurso de que o isolamento achatou a curva. Ele pede “mostre-me a curva, então”. E a curva é uma curva normal. Todas as curvas são normais, sempre. Não prova nada, nem de um lado, nem de outro. A única “prova” seria o contrafactual no mesmo país, com isolamento e sem isolamento, o que obviamente é impossível.
Depois, o PhD diz que “a OMS entregou ao governo chinês a informação de que o índice de letalidade é de 13%”, assim, sem mais. E diz que o governo chinês sobre reagiu a este número. Ora, o PhD quer me fazer crer que os médicos chineses não sabem metodologia estatística, que compraram a valor de face essa informação (se foi essa informação mesmo que foi relatada ao governo chinês, o PhD não cita a fonte da informação) e as repassaram às autoridades chinesas assim, sem mais. Ou seja, somente André Dias sabe metodologia estatística, ninguém na China (país em primeiro lugar no PISA de matemática, diga-se de passagem) sabe. É sério isso?
Ele afirma que não há que ter pânico, porque a letalidade do vírus está decrescendo a cada nova revisão das estatísticas. Primeiro que isso não é verdade. Em todos os países do mundo, o índice de letalidade cresce e se estabiliza em um determinado patamar (veja o gráfico abaixo). Segundo, porque, mesmo que fosse verdade, o que importa é a capacidade hospitalar, não o índice de letalidade. Se a letalidade for baixa mas a capacidade de contaminação for muito alta, o sistema hospitalar pode não dar conta, aumentando a letalidade. Explico isso no meu post anterior.
O PhD fala que Boris Johnson tomou a decisão de fechar o Reino Unido por medo, por pressão dos eleitores, e contra o conselho dos epidemiologistas. Ora, foi justamente o contrário! Ele revogou sua decisão de não fechar quando recebeu estudo assustador do Imperial College, essa sim, uma das mais prestigiosas universidades do planeta quando o assunto é epidemiologia. De onde o PhD tirou que “os epidemiologistas aconselharam a não fechar”?
Ele ataca a fama do Imperial College. Bem, o Imperial College aparece em 13º lugar no ranking de universidades de saúde pública, enquanto a Universidade de Munique aparece na faixa de 100-150. A própria USP aparece entre 76-100 no mesmo ranking! Ou seja, a USP ranqueia melhor que a universidade onde o PhD adquiriu sua experiência. Ele cita um suposto “erro” do Imperial College na epidemia da vaca louca, em 2001. Não cita a fonte de sua informação, a não ser uma manchete de um artigo de um blogueiro. Talvez ele esteja incorrendo aqui no mesmo erro básico que está acontecendo agora: como houve sacrifício massivo de bovinos e ovelhas no Reino Unido, a epidemia teve pouco efeito final. Claro, o próprio sacrifício foi o responsável pelo efeito limitado da doença. Dizer que a doença “não foi tudo isso” para demonizar o Imperial College é ignorar o efeito do que foi feito para detê-la. Parece óbvio.
Depois, faz uma leitura política da ação de Boris Johnson, à luz de uma carta aberta de 295 cientistas urgindo o primeiro-ministro inglês à ação. Diz o PhD em política, quer dizer, em epidemiologia, quer dizer, em inteligência artificial, que Johnson agiu para preservar seu mandato. Seria a primeira vez na história que vemos um mandatário destruir a economia para preservar seu mandato. Pena que Bolsonaro ainda não sacou essa estratégia sensacional.
Quanto à fala do Bill Gates, o PhD espertamente coloca somente a frase que interessa à sua tese: “O modelo do Imperial não é o que se verificou na China (…) felizmente parece que os parâmetros usados são demasiadamente negativos”. Bill Gates fala mais coisas. Por exemplo: “Uma grande coisa é aderir à abordagem “shut down” em sua comunidade, de modo que as taxas de infecção caiam dramaticamente e nos permitam voltar ao normal o quanto antes”. Com relação ao modelo do Imperial, além do que foi dito acima, ele diz também: “Eles (a China) fizeram o seu “shut down” e foram capazes de reduzir o número de casos. Eles estão testando amplamente de modo que eles são capazes de ver ressurgimentos da doença imediatamente e até agora não têm sido muitos. Eles evitaram um alastramento maior”. Bem, obviamente, o modelo do Imperial previu números gigantescos sem as medidas tomadas. E o contexto da resposta de Gates pode ser melhor entendido se virmos a resposta a uma questão anterior: “Precisamos ficar calmos, mesmo que esta seja uma situação sem precedentes”. Ou seja, a ideia de Gates é acalmar as pessoas, dizendo que, se fizermos o que tem que ser feito (distanciamento social), as previsões catastróficas não se confirmarão. Por fim, sobre este assunto, a China acabou de rever o número de óbitos para cima. Quantas mais revisões haverá? Quão confiáveis são os números da China para validar ou não qualquer modelo?
Depois, sobre os serviços funerários que “congelam”. Realmente não entendi. Por que os serviços funerários em Bergamo e na Espanha estariam mais lentos? Não dá pra entender o raciocínio do PhD. Interessante que, ao contrário do que ele faz logo no início, desta vez ele não mostra nenhum gráfico de mortes na Itália ou na Espanha para suportar a sua tese. Ele só fala. Então eu mostro pra vocês, tirado do mesmo site euromomo.eu. Na Itália, temos um z-score de cerca de 15, enquanto na Espanha o z-score alcança cerca de 20. Isso significa que o número de mortes alcançou, respectivamente, 15 e 20 desvios-padrão acima da média. Uma enormidade. Dizer que não houve mais mortes é simplesmente uma mentira.
Em seguida, o exemplo da Áustria para reforçar o tal argumento da “curva normal”. Desta vez, no entanto, ele pega o gráfico de NOVOS CASOS, ao invés de CASOS ATIVOS, como foi no exemplo da China. Mas o problema é o mesmo: o isolamento não vai mudar o formato da curva, vai apenas achatá-la. Continuará sendo uma curva normal. Aliás, ele prediz que “a Áustria em 3 dias estará em ‘zero estatístico’, com 10 novos casos”. Bem, esse vídeo é de 16 de abril, não sei a data em que foi gravado. Ontem, 18 de abril, a Áustria registrou 76 casos. Mas não vou pegar no pé, isso é erro estatístico. O ponto dele é que diminuiu bem, o que é verdade. Nosso ponto de discórdia é o motivo para ter diminuído.
O próximo ponto é o efeito dos raios UV, trazidos pela primavera, para diminuir as mortes pelo covid-19. O ponto é que essa diminuição teria ocorrido de qualquer maneira, porque a chegada da primavera faria o serviço a partir da semana 19. Pena que os dados não correspondam à realidade. Se isso fosse verdade, deveríamos ver uma queda generalizada nos casos nas semanas 12/13, conforme ele mesmo diz. Semanas 12/13 correspondem à segunda quinzena de março. Isso aconteceu, de fato, na Itália, em que o pico de casos ocorreu na 3ª semana de março. Mas em outros países o pico aconteceu depois: por exemplo, nos EUA, o pico ocorreu agora na 2ª quinzena de abril, enquanto em outros países da Europa, como Bélgica e Reino Unido, ocorreu na 1ª quinzena de abril. De qualquer forma, mesmo admitindo a hipótese, esperar os raios UV para dar cabo do vírus poderia significar um colapso do sistema de saúde muito antes do raio redentor chegar. Se a hipótese for verdadeira, e efetivamente se observar uma queda no número de casos/mortos, Europa/EUA poderão sair antes da quarentena, o que é uma boa notícia. Pena que talvez os raios UV não sejam páreo para o Covid: o Equador está aí para demonstrar quem manda em quem.
Depois ele faz uma preleção sobre “imunização de rebanho”. Ele está certo, mas não sei de onde ele tirou que “ouvimos ad nauseam que 80% da população deve ter sido infectada para atingir imunidade de rebanho”. Eu não ouvi isso. Ouvi 50%-60%. Ele diz 30%, o que me parece pouco. Mas eu não sou epidemiologista, nem ele, como ele faz questão de afirmar. Portanto ambos estaremos chutando. Trata-se do velho truque de atribuir uma afirmação absurda ao adversário, que nunca foi dita, e refutá-la para “ganhar” a discussão.
Ele critica a OMS por usar menções em redes sociais para fazer o monitoramento de epidemias. Fico com o pé atrás com afirmações jogadas no ar, assim. Onde está a fonte? Como posso consultar a metodologia usada pela OMS para o monitoramento de epidemias? Poderia até fazer uma pesquisa, mas ajudaria muito se o PhD disponibilizasse a fonte de sua informação. Senão, fica parecendo essas verdades “que todo mundo sabe”. Além disso, a última conferência sobre o tema da qual ele participou foi em 2014. Não me parece que esteja muito atualizado.
Com relação às escolas, o documento da OMS que ele cita é este aqui. No próprio vídeo, se você souber inglês e prestar atenção no que está escrito, está claro ali: “mantenha suas crianças na escola, A MENOS QUE UMA AUTORIDADE PÚBLICA DE SAÚDE […] TENHA EMITIDO UMA ORDEM QUE TENHA AFETADO A ESCOLA DO SEU FILHO. Bem, no caso, os governos fecharam as escolas! A OMS não disse: mantenham as escolas abertas. A OMS disse: mantenham seus filhos na escola se estas estiverem abertas. Acho que dá para entender a diferença. Ele insiste o tempo inteiro que a OMS recomenda que as escolas fiquem abertas, o que não é verdade.
O PhD defende a manutenção das escolas abertas porque as crianças “não ficam doentes” e depois vão “aspirar” os vírus por aí. Bem, talvez ele não tenha filhos pequenos. Quero ver pai ou mãe de crianças que não ficam doentes… Mas ok, as crianças vão à escola, passam duas semanas sem visitar os avós, retiram-se os funcionários mais velhos da escola durante duas semanas e… voi lá!, tudo volta ao normal depois. Como se todas as crianças do mundo pegassem o vírus ao mesmo tempo, e se pudesse resumir tudo a “duas semanas de isolamento”. Realmente me escapa a genialidade do raciocínio.
Todas as escolas no mundo foram fechadas, inclusive na Suécia! Por quê? Simples. Sabe-se que o grau de letalidade é mais alto para os mais idosos, mas não se sabe o grau de “infecciosidade” por faixa etária. Ou seja, não sabemos se crianças ou jovens pegam mais ou menos o vírus. O número de infectados mais velhos, hoje, é maior, mas simplesmente porque se testa mais os mais velhos, que são os que chegam aos hospitais. Não sabemos quantos infectados há por aí que não estão testados. A Islândia vem conduzindo um experimento espetacular de testagem ampla da população. Vou analisar este experimento em um próximo post, e que pode ser uma boa notícia para as escolas.
Ele cita um pesquisador alemão (interessante que só há citação de pessoas que concordam com sua tese), que disse que vai haver mais mortes por suicídios do que pelo vírus. Bem, nem fui atrás de saber quem é esse tal “pesquisador alemão”. Como você monta um modelo para chegar a essa conclusão? Sem comentários.
Ele termina o vídeo com um raciocínio que coroa de maneira brilhante todo o monte de bobagens acumuladas até aqui. Parte da informação de que, na Alemanha, descobriu-se que 14% da população está infectada (ele mesmo diz que os testes não foram aleatórios, então não dá para fazer extrapolação nenhuma, mas vamos com esse número aí). Então, ele diz que o número de infectados já era imenso quando da decretação da quarentena, e que, portanto, a quarentena não serviu para nada. Ou pior, a quarentena aumentou o número de infectados, pois com 10%-15% de infectados, foram introduzidos um infectado em cada família, em cada casa, e ficaram trancados em casa. Oi? Em primeiro lugar, ou a decretação da quarentena “não serviu para nada” ou “aumentou em muito a contaminação”. As duas coisas ao mesmo tempo não dá. Em segundo lugar, se a quarentena aumentou em muito a contaminação, e 14% é supostamente o número de infectados HOJE, então o número de infectados ANTES da quarentena era muito menor. Portanto, não foram introduzidos um infectado em cada casa, em cada família. Ou seja, há uma contradição em termos aqui. Finalmente, em terceiro lugar, as pessoas deixariam de morar em suas casas se não houvesse quarentena? Provavelmente não. Então, os infectados iriam infectar suas famílias com quarentena ou não, certo? Não foi a quarentena que fez infectar as famílias, essas seriam infectadas anyway. O que a quarentena fez foi diminuir a contaminação FORA das casas, não dentro. Não parece ser um raciocínio muito sofisticado, acho que dá para entender.
Desculpem-me novamente pelo longo texto. Mas é que esse vídeo do PhD português está se espalhando como um vírus pela internet, e não podia ficar sem resposta.
O Brasil atingiu ontem 6,4% de mortalidade pelo coronavírus. Ou seja, de cada 100 casos notificados, 6,4 foram a óbito.
A crítica a este número, muito acertada diga-se de passagem, é que há uma enorme subnotificação da população infectada. Então, a base de cálculo está subdimensionada, o que levaria a uma taxa real de letalidade muito menor. Tão baixa, inclusive, que não justificaria toda essa histeria em torno do assunto. Não passaria de uma H1N1 um pouco mais forte (como sabemos, o índice de letalidade da H1N1 está por volta de 0,1%).
Bem, se o problema é subnotificação, vamos pegar alguns exemplos de países que têm uma notificação exemplar. O caso extremo é a Islândia. Esse pequeno país do Ártico já testou nada menos que 12% de sua população. Só para dar uma ideia do que isso significa, a Coreia, sempre citada como um exemplo de testagem em massa, testou 1% de sua população, enquanto o Brasil testou irrelevantes 0,03%. Pois bem: o índice de letalidade da Islândia é de 0,5%. Portanto, ainda cinco vezes maior que a H1N1.
Outro exemplo é Luxemburgo, um pequeno enclave entre Bélgica, Alemanha e França. Luxemburgo testou 5% da população, o quíntuplo da Coreia. Seu índice de letalidade é de 2,0%, muito semelhante ao da Coreia.
Será então que, uma vez testada toda a população, todos os países convergirão para o índice de letalidade da Islândia (0,5%)? A resposta é não.
O vírus não é um algoritmo que “escolhe” matar 0,5% de quem infecta. O índice de letalidade depende também da resposta dada à doença. Fatores como isolamento social, clima, vacinação anterior, podem influenciar o número de pessoas infectadas. Mas, uma vez infectada, as únicas variáveis que contarão para o óbito do infectado são a agressividade do vírus, a idade/comorbidade do contaminado e a resposta hospitalar. A agressividade do vírus deve ser a mesma no mundo inteiro, a não ser que haja mutações. A idade/comorbidade varia de país para país, mas é facilmente corrigida usando-se as pirâmides etárias de cada país. É na terceira variável que a coisa pega: como comparar o potencial de resposta hospitalar de cada país?
A forma mais simples é comparar leitos de UTI per capita. Quanto maior este coeficiente, melhor será a resposta hospitalar e menor será a letalidade. Mas existe uma outra variável muito mais importante, e de difícil mensuração: o grau de isolamento social. Vejamos um exemplo.
Digamos que dois países tenham 100 leitos de UTI/respiradores para cada milhão de habitantes. Digamos também que, se uma pessoa vai para a UTI, ela tem 75% de chance de se salvar. Por outro lado, uma pessoa que precise ir para a UTI mas não consegue vaga, vai a óbito em 100% dos casos.
Agora, suponhamos que os dois países tenham adotado alguma forma de isolamento social. O isolamento social do primeiro fez com que houvesse 100 pessoas precisando de UTI ao mesmo tempo. Tem vaga pra todo mundo, e 25 morrem. No segundo país, o isolamento social foi um pouco mais fraco, e 110 pessoas precisaram de UTI ao mesmo tempo. Dessas 110, 100 foram tratadas e 25 morreram. E das 10 que não foram tratadas, todas morreram, totalizando 35 mortes. Ou seja: um isolamento social apenas 10% mais fraco levou a um índice de letalidade 40% maior! Em outras palavras, comparar graus de letalidade entre países sem conhecer de perto suas práticas de isolamento social não passa de um tiro no escuro.
Sabemos muito pouco sobre essa doença. Calibrar então o grau de isolamento social necessário para não forçar o sistema hospitalar é mais do que uma arte, é puro chute. Lembro de minhas aulas de resistência dos materiais, em que aprendíamos cálculos complicadíssimos para projetar uma ponte. Depois de muita ciência, colocava-se um tal de “coeficiente de segurança”. Esse coeficiente de segurança é proporcional ao grau de ignorância sobre fatores não antecipados pelos cálculos. Quanto maior a ignorância, maior o coeficiente de segurança. Esse coeficiente de segurança, obviamente, custa dinheiro: significa mais material gasto na construção da ponte. Mas vidas estão envolvidas, então algum coeficiente de segurança é necessário.
No caso do coronavírus, o grau de ignorância é gigantesco. E qualquer erro pode levar à multiplicação do grau de letalidade em várias vezes, como vimos acima. Por isso, entende-se o “coeficiente de segurança” usado pelos gestores públicos no mundo inteiro na adoção do isolamento social.
Samy Dana e outros quatro autores publicaram um estudo de fôlego, em que simulam o número de mortes no Brasil pelo Covid-19.
A apresentação começa dizendo que as simulações feitas até o momento erraram em “várias ordens de grandeza” o número esperado de mortes. Bem, várias ordens de grandeza significa, pelo menos, em 100 vezes (duas ordens de grandeza). Fiquei curioso para conhecer os resultados.
Depois de descrever o modelo de maneira bem detalhada, a apresentação chega nos resultados: no Brasil, teríamos entre 23 mil e 93 mil mortes, com a mediana das expectativas em 38 mil mortes. Isso, mantendo as condições atuais de isolamento social, como os autores fazem questão de lembrar em todos os slides.
Muito bem. Fui revisitar o estudo do Imperial College, aquele que fez o Reino Unido sair correndo para fazer o isolamento, e que foi taxado de sensacionalista por meio mundo. Aliás, a simulação de Dana et al utiliza o modelo do Imperial College para modelar o número de pessoas infectadas no tempo.
Para o Brasil, o estudo do Imperial College estimou 44 mil mortes para o cenário de isolamento precoce e 206 mil mortes para o cenário de isolamento tardio. Bem, para começo de conversa, não se trata de um erro de “várias ordens de grandeza”. Parece-me que o Brasil adotou um isolamento mais precoce do que tardio, de modo que o número de 38 mil de Dana et al se compara mais com os 44 mil do Imperial College. Mas mesmo que fosse com os 206 mil, trata-se de um erro de menos de 10 vezes, e não de 100 vezes. Além disso, o estudo inglês é de 26/03 e, portanto, foi feito com dados menos precisos sobre o Brasil do que temos hoje.
Ocorre que o que causou furor no estudo do Imperial College foi o cenário SEM QUALQUER ISOLAMENTO SOCIAL, que previa, para o Brasil, mais de um milhão de mortes. Infelizmente, Dana et al não publicaram a sua previsão para a hipótese de não isolamento social, de modo que não podemos fazer comparações neste caso.
Em resumo: mais um estudo que corrobora a simulação feita pelo Imperial College, e a importância do isolamento social para controlar os efeitos da epidemia.