As migalhas

Bater no Boulos não tem graça, eu sei. O marxismo do sujeito é tão de almanaque, que qualquer coisa que ele diz parece vindo de um viajante do tempo que acaba de chegar do fim do século XIX.

Mas não pude resistir a comentar a sua fala em apoio aos entregadores de aplicativos. Boulos descobriu um filão, a luta dos moto e cicloboys por remuneração maior. Sua forma de entender o problema, porem, é típica de quem não entendeu como se cria riqueza ao longo do tempo. Note que não falei “de quem não entendeu o capitalismo”, mas sim algo mais amplo, que supera uma determinada forma de organizar a produção.

Boulos não se conforma com o fato de que as empresas de tecnologia fiquem com a parte do leão “só por oferecerem uma tecnologia”, enquanto os donos dos braços, pernas, motos, bikes e carros fiquem com as migalhas do negócio de entregas.

Ocorre que essa é a regra, não a exceção. A tecnologia, em qualquer lugar e tempo, é o que mais agrega valor, é o que mais gera riqueza. Quem domina a tecnologia, é mais rico. Simples assim.

Sempre uso esse exemplo, mas como tem muita gente nova por aqui, vou usar de novo, com a licença dos leitores mais antigos. Somos um dos maiores produtores de café do mundo, com muito orgulho. No entanto, quem fica com a parte do leão dos lucros dessa indústria? A Nestlé, com o seu Nespresso e outras tecnologias. A Suíça não produz um grãozinho de café sequer, mas fica com o grosso dos lucros da indústria. Faz sentido? Todo sentido. Ou alguém toma café diretamente do grão?

Ao desenvolver uma tecnologia que agrega valor para o usuário, a Nestlé multiplica em dezenas de vezes o potencial do grão do café. E se apropria dessas dezenas de vezes, sobrando as migalhas para os produtores de café.

É sempre assim. E como se cria alta tecnologia comercializável? Porque também tem isso: não basta ser um professor Pardal supercriativo, inventor de mil e uma tecnologias inovadoras. É necessário criar uma empresa que faça essa tecnologia chegar aos usuários por um preço razoável. Isso requer não só o gênio criativo, mas também, e principalmente, a capacidade de captar o capital necessário para o desenvolvimento de uma forma de fazer chegar a tecnologia para os consumidores. Que são, afinal, os que darão o veredito final sobre o valor agregado daquela tecnologia.

A nova fronteira tecnológica está na Internet móvel. Ao conectar tudo e todos em qualquer lugar, a Internet móvel abre campos insuspeitados de ganhos de produtividade. E agregar valor nada mais é do que fazer mais com menos, entregando o mesmo produto por preços menores ou produtos novos por preços acessíveis. Não é à toa que as empresas mais valiosas do mundo hoje são as que exploram essa tecnologia.

Só que, para chegar lá, existe um caminho tortuoso e incerto de erros e acertos. Para cada Facebook que dá certo, milhares de outras empresas que tentaram caminhos alternativos fracassaram. E é preciso capital intensivo para testar todos esses caminhos. O caminho até o Santo Graal da tecnologia é coalhada de cadáveres.

Voltemos à questão das plataformas de entrega. Imaginemos o mundo antes dessa tecnologia. Cada entregador deveria procurar um emprego em milhares de pequenos comércios que tivessem tomado a decisão de manter frota própria, ou em centenas de pequenas empresas de entregas. Os comércios tinham que manter frotas próprias ou contar com as pequenas empresas de entrega. E os usuários deveriam contratar essas pequenas empresas de entrega ou comprar de pequenos comércios com frotas próprias. Um esquema claramente improdutivo, se comparado aos aplicativos.

Hoje o usuário tem, na palma da mão, acesso a milhares de comércios e milhares de entregadores. E os comércios não estão mais na mão das pequenas e ineficientes pequenas empresas de entregas. E, mais importante que isso, têm condições de atingir públicos muito maiores, que saberão sobre a existência de seu pequeno comércio através do aplicativo. Aliás, esse é o grande pulo do gato: publicidade. A entrega é quase mero detalhe.

Ter braços, pernas, carros, bikes e motos é como ter o grão do café. O valor agregado é muito baixo, perto do que fazem os aplicativos de entrega. Por isso, moto e cicloboys recebem as migalhas, assim como os plantadores de café. Boulos nunca vai entender isso.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.