A orquestração para enquadrar o combate à corrupção no mundo político se dá, agora, a céu aberto. Note que não falei “combate à Lava-Jato”. A Lava-Jato é apenas um grupo de trabalho que alcançou o maior sucesso nessa empreitada. É um exemplo a ser seguido, e é esse o problema. Por isso, é tão importante “vilanizar” a Lava-Jato: seu fim ignominioso servirá de exemplo para outras forças-tarefa.
Esta orquestração inclui desde advogados criminalistas, mui legitimamente defendendo os interesses de seus clientes, até políticos de todo o espectro ideológico, desde a esquerda ideológica até à direita bolsonarista, passando, obviamente, pelo centrão pragmático. Aliás, este combate somente está sendo possível a céu aberto porque Sérgio Moro tornou-se uma ameaça ao projeto reeleitoral de Bolsonaro. Fosse, por exemplo, Temer a liderar o processo, a máquina de produção de memes do bolsonarismo faria picadinho do ex-presidente. E com toda razão. Agora, essa mesma máquina está dedicada a moer a reputação de Sérgio Moro, o que agrega à batalha um exército considerável.
Mas não é sobre estes dois batalhões (advogados e políticos) que gostaria de falar a respeito. Há um terceiro grupo alinhado ao que se convencionou chamar de “combate ao lavajatismo”. Este grupo, mais disperso e mais intelectualmente honesto, é formado por aqueles que, legitimamente, temem a “criminalização” da atividade política, o que daria espaço para uma solução não democrática. Afinal, se a política é corrompida pela sua própria natureza, não há solução a não ser um regime de força liderado por um salvador da pátria. Aliás, vimos exatamente isto no primeiro ano do governo Bolsonaro. Escrevi neste espaço algumas vezes sobre a incapacidade do presidente de dialogar com o Congresso, uma atividade política normal em qualquer lugar do mundo. Sempre que escrevia sobre isso, bolsonaristas me lembravam que “diálogo”, no léxico político, significava roubalheira. Compreendi, então, que a atividade política estava interditada, pelo menos da parte do presidente. Este era o fruto amargo temido por aqueles que acusavam a Lava-Jato de criminalizar a política.
Abre parênteses: vivi para ver Bolsonaro beijando de língua políticos do Centrão, enquanto os mesmos bolsonaristas que antes chamavam a todos de ladrões, agora se dedicam a acabar com a reputação de Moro e da força-tarefa da Lava-Jato. A História exagerou na ironia dessa vez. Fecha parênteses.
Os que temem pela criminalização da política costumam se referir à força-tarefa da Lava-Jato como uma espécie de “seita religiosa”, cujos líderes se auto-atribuem status de messias, que vieram salvar a humanidade de toda a corrupção. De fato, Dallagnol e seus companheiros muitas vezes fizeram discursos colocando a corrupção como o maior mal do país, e colocando-se na posição de paladinos da justiça. Tenho uma certa prevenção natural contra todos os que se colocam como “a solução de todos os seus problemas”, mas, neste caso, entendo este discurso de dois modos.
Em primeiro lugar, e já disse isso aqui algumas vezes, não se combate a corrupção em altos escalões da República de maneira burocrática. É preciso ganhar a opinião pública e, para isso, é necessário alguma dose de espetáculo. Trata-se de uma exigência da própria dinâmica de combate a esse tipo de corrupção. Homens públicos escolhem essa carreira com todas as suas consequências, inclusive terem suas vidas devassadas em público.
Em segundo lugar, e isso me ocorreu hoje, todo mundo deve trabalhar por um ideal. Claro, trabalhamos pelo salário no final do mês, mas precisamos de um ideal. Caso contrário, a vida torna-se insuportável. Todos precisamos de um propósito para o trabalho que fazemos, senão, nada tem sentido. Os integrantes da força-tarefa da Lava-Jato têm o ideal de acabar com a corrupção nos altos escalões da República. Aqueles que os acusam de “messianismo”, na verdade prefeririam que se ativessem ao seu trabalho burocrático, com o objetivo de receber seu salário no final do mês. Querer “acabar com a corrupção”, segundo essas pessoas, seria coisa de “seita religiosa”, quando nada mais é do que o idealismo que empurra qualquer ser humano para frente. Sem isso, nada é feito.
Há, como em tudo o que é humano, uma linha tênue entre o certo e o errado. As pessoas, por sua própria natureza, dão valores diferentes para os diversos matizes de um problema. Nada é preto ou branco, tudo depende de como interpretamos e julgamos as coisas. Por isso, entendo a discussão saudável sobre os meios utilizados pela Lava-Jato.
Outra coisa são os resultados concretos que a Lava-Jato tem para mostrar: bilhões de reais devolvidos aos cofres públicos e condenações que sobreviveram a várias instâncias da justiça. Não concordo que os fins justifiquem os meios, de maneira alguma. Só não vi, até o momento, nada que a força-tarefa da Lava-Jato tenha feito que fosse, em si, ilegítimo ou ilegal. Pode-se não gostar de seu discurso. Mas é preciso mais do que isso para legitimar uma caça às bruxas.