O encontro de dois luminares

Luciano Huck entrevista o economista francês Thomas Piketti, hoje, no Estadão.

Quando o badalado Capitalismo do Século XXI foi lançado em 2013, a Amazon tinha uma estatística (não sei se ainda tem) de “marcação de livros”. Essa estatística mostrava quais os trechos dos diversos livros disponíveis na plataforma Kindle eram mais marcados pelos leitores. Esses trechos nos dariam uma ideia das principais ideias do livro, na visão dos leitores.

Pois bem, no caso da bíblia de Piketti, as marcações eram muito numerosas no início, passando a ser mais esparsas na medida em que o livro avançava, o que indicava que poucos realmente tinham lido o livro até o final. Eu fui um deles, de modo que posso dizer que sou um especialista em Piketti. O mesmo não posso dizer de Huck, pois se assisti a dois trechos de seu programa, foi muito.

Bem, na primeira parte de sua obra, Piketti faz um trabalho soberbo de compilação de dados com base nos informativos das receitas federais de diversos países. O problema vem na 2a parte, onde o autor francês envereda pela ideologia: ele conclui, com base em sua própria cabeça (os dados não lhe permitem chegar a essa conclusão) que o problema do crescimento econômico é um problema não somente de desigualdade, mas da existência de grandes fortunas. Essa é a sua fixação. O trecho que destaco abaixo sobre Bill Gates está ipsis literis na pg 444 da versão em inglês do seu livro. Este trecho merece outro post.

Abaixo, destaco um trecho em que ele dá uma amostra da sua desonestidade intelectual, que permeia a 2a parte do seu livro. Uma alíquota de imposto sobre um bem não pode ser nominalmente comparada com a alíquota sobre o estoque de riqueza. São coisas completamente diferentes. É como comparar o valor das empresas com o PIB dos países, coisa que já critiquei aqui.

Por fim, gostaria de saber o que Piketti pensaria se soubesse que Huck financiou seu jatinho com juros subsidiados do BNDES, uma espécie de imposto negativo sobre fortunas. Não deixa de ser muito irônico.

A panaceia dos estoques reguladores

Assim como o nobre deputado Alessandro Molon, tenho lido de fontes, digamos, a sinistra, que o governo Bolsonaro poderia estar controlando os preços do arroz se tivesse mantido a política de estoques reguladores. Tenho uma opinião, mas como costumo não dar palpite antes de verificar os números, fui atrás.

O gráfico abaixo mostra a evolução dos estoques de arroz desde o governo Sarney, em toneladas.

Apenas para se ter uma ideia da ordem de grandeza, consumimos algo como 12 milhões de toneladas/ano ou 1 milhão de tonelada/mês de arroz (fonte: brazilianrice). Se assumirmos que o consumo per capita não deve ter mudado muito ao longo do tempo, o consumo durante o governo Sarney devia ser cerca de 30% a menos do que hoje, ou 8 milhões de toneladas/ano, crescendo ao longo do tempo até chegar nos atuais 12 milhões.

Uma primeira coisa que chama a atenção é o imenso estoque de arroz durante os últimos anos do governo Sarney, em média 4 milhões de toneladas, ou 6 meses do consumo nacional. Era a época da hiperinflação, em que instrumentos de intervenção no mercado eram usados sem cerimônia.

O governo Collor baixou estes estoques para cerca de 1 milhão de toneladas, que foi mais ou menos o novo patamar vigente ao longo do tempo. Durante o governo FHC os estoques variaram de zero a 2 milhões de toneladas, enquanto nos governos Lula e Dilma estes estoques variaram entre zero e 1 milhão, com alguns raros momentos em que atingiram 1,5 milhão.

Duas coisas chamam a atenção no período dos governos do PT: o longo período (quase 3 anos) em que os estoques de arroz ficaram zerados no início do governo Lula e, isso é o mais importante, a diminuição e, por fim, a zeragem dos estoques na segunda metade do governo Dilma.

Poderíamos pensar que estes estoques foram zerados para combater altas de preços de alimentos. Mas não foi o caso. Observando o gráfico da inflação de alimentos (que reproduzo novamente abaixo), notamos que os períodos de zeragem dos estoques não coincidem com os períodos de alta dos preços. A zeragem se deu, portanto, por outro motivo. Minha hipótese é que acabou o dinheiro. Para manter estoques, é óbvio que é preciso empatar algum dinheiro. No final do ano passado, uma tonelada de arroz custava, no atacado, cerca de R$ 1.800. Para manter um estoque de um milhão de toneladas, é preciso desembolsar R$ 1,8 bilhões. E isso só para o arroz. Some a isso outros itens da cesta básica, a conta sai cara.

O ponto que quero fazer, portanto, é que não foi Bolsonaro, nem tampouco Temer, que acabaram com os estoques reguladores. Foi o governo Dilma. Justamente o governo que amava um intervenção no mercado. Só que o dinheiro acabou.

Uma doença mutante

Junto aqui uma notícia com um artigo do Fernando Reinach com os números da epidemia na Espanha.

A notícia é a seguinte: o inquérito sorológico quinzenal patrocinado pela prefeitura de São Paulo encontrou um aumento significativo de contaminados pelo novo coronavírus em bairros de IDH mais alto (centro expandido de São Paulo). No entanto, este aumento de contaminação, surpreendentemente, não resultou em maior procura pelos maiores hospitais da região.

Corta para o artigo, aliás, espetacular.

Fernando Reinach afirma que a verdade verdadeira é que esses testes rápidos usados nos inquéritos sorológicos (inclusive o paulistano), têm resultados tão verdadeiros quanto uma nota de R$3. Segundo ele, estamos descobrindo que esses testes não detectam a presença de anticorpos após algum tempo da contaminação. Ou seja, pessoas podem ter sido contaminadas, serem já imunes, e o tal teste não detectar.

Trata-se de uma descoberta recente, e que joga por terra a estratégia das pesquisas sorológicas baseadas em testes rápidos para o estabelecimento de estratégias de abertura da economia. Podemos ter uma população muito maior já contaminada a essa altura do campeonato.

Corta para a Espanha (gráfico abaixo).

Na Espanha, o pico de casos da 1a onda foi em 21/03, com 192 casos/milhão de habitantes. O pico de óbitos ocorreu 13 dias depois, no dia 03/04, com 18,4 óbitos/milhão. Agora, a 2a onda. O pico dessa 2a onda foi no dia 27/08, com 158 casos/milhão. 14 dias depois, no dia 09/09, temos o suposto pico de óbitos (ainda não sabemos se é um pico): 1,4 óbitos/milhão.

Então, temos o seguinte: o pico da 2a onda foi de 82% do pico da primeira, enquanto o pico de óbitos da 2a onda foi de 7,6% do pico da primeira. Ou, de outra forma: se o número de óbitos nesta 2a onda fosse proporcional ao número da 1a onda, teríamos hoje 8,4 vezes mais óbitos.

O que mudou da 1a para a 2a onda? Mais testes? Pessoas mais jovens sendo contaminadas? Melhores protocolos médicos? Mutação benigna do vírus? São várias as tentativas de explicação. Nada que realmente explique.

Esse conjunto de informações só faz crescer minha convicção de que estamos tratando com um alvo móvel. Certezas absolutas são substituídas por outras certezas absolutas. É preciso ter a mente aberta para receber novos conjuntos de informações e agir de acordo. Fernando Reinach tem essa capacidade, na minha opinião. Sua leitura da pandemia vem mudando com o tempo, na medida em que novas informações foram chegando. A pandemia no início era uma coisa, hoje é outra. Quem, no início, defendia que se tratava de uma gripinha, estava errado. Assim como hoje, quem defende que estamos à beira do apocalipse, está errado. Olhamos para trás e vemos 130 mil mortos. Olhamos para frente, e vemos, por tudo o que foi descrito acima, perspectivas melhores, não piores.

O aquecimento de todos os anos

O fenômeno ocorre TODO ANO. É tão comum, que os incêndios recebem nomes, assim como os furacões que castigam os Estados Unidos TODO ANO.

Mas, por algum motivo misterioso, os incêndios deste ano foram causados pelo aquecimento global. Sei lá, me faz lembrar de povos primitivos, que atribuíam fenômenos naturais aos seus próprios pecados, e ofereciam sacrifícios para aplacar a ira dos deuses.

Veja, não estou negando o aquecimento global. Mas, para o bem da causa, seria melhor encontrar exemplos mais verossímeis.

Receita para baixar o dólar

Olha, eu não sou tão expert quanto o presidente do BC, mas vou aqui dar uma dica quente para o presidente: envie ao Congresso um pacote de medidas que corte 5% do PIB em despesas permanentes a partir do ano que vem. E, obviamente, não coloque nada no lugar.

O dólar vem a 4,50 no dia seguinte.

Jogo de cena patriótico

Eu me enganei.

Achei que aquela frase sobre patriotismo era só mais uma no repertório populista do presidente, sem maiores consequências.

Mas me enganei.

O Ministério da Justiça foi pra cima dos produtores e empresários. Claro, pode ser só um jogo de cena, pra mostrar serviço, sem maiores consequências.

Espero não me enganar de novo.

PS.: o silêncio do Guedes sobre o assunto é ensurdecedor.

Os Fiscais do Bolsonaro

E eis que estão oficialmente de volta os “Fiscais do Sarney”!!!

Agora são os “Fiscais do Bolsonaro”.

Eu vivi aquela época. O presidente dizendo que o povo tinha que fiscalizar o congelamento, babacas comemorando quando a Sunab fechava supermercados.

Já lá se vão 34 anos. Aprendemos muita coisa desde então. A mais importante é que preço é aquela coisa que equilibra oferta e demanda, e não existe força no universo que consiga regular preço sem phoder com a oferta ou com a demanda.

Se tem uma coisa que pulveriza popularidade de presidente é inflação. E Bolsonaro sabe disso. Por isso está querendo espertamente jogar o pepino na conta dos donos de supermercado. E aí começam a surgir os “fiscais”, como este que aparece neste vídeo.

Bolsonaro não tem desculpa. O seu posto ipiranga sabe muito bem que a inflação de alimentos está muito além da “ganância” dos donos de supermercado. Mas sabe como é, quando a vaca está indo para o brejo, o melhor é encontrar um bode expiatório. Funciona durante um certo tempo. Até que o povo acorda.

Sarney pode contar essa história muito bem, se Bolsonaro quiser ouvir.

A verdade da verdade de Lula

Publiquei o texto abaixo no dia 13/01/2018, em resposta a um vídeo da defesa de Lula, chamado “A verdade de Lula“. Trata-se da minha convicção a respeito da robustez das provas que levaram Lula à condenação em duas instâncias por unanimidade (as instâncias superiores apenas confirmaram a lisura do processo, não a adequação das provas).

Republico aqui porque são cada vez mais fortes os indícios de que a sentença do triplex será anulada por “parcialidade” do juiz Sergio Moro. Lula já apareceu ontem colocando sua candidatura para 2022, tão certo está de que a sentença será anulada.

O texto é longo, muito longo. Esse tipo de discussão não cabe em dois parágrafos. Não sou jurista, apenas procuro analisar textos e ligar fatos através de raciocínio lógico. É isso o que faço a seguir. Repito: a questão técnica já foi definida por um juiz e 3 desembargadores por unanimidade. Aliás, este texto foi escrito antes do julgamento do recurso da defesa no TRF-4.

O tempo é um agente corrosivo da História. As coisas vão ficando longe, indefinidas. Para mim, este texto serve como uma forma de manter a memória viva.


Textão para rebater a “falta de provas” no caso triplex.

Lula e o PT estão usando de todos os meios para constranger os juízes do TRF-4 e jogar a opinião pública, local e internacional, contra a justiça. Faz parte desse processo a produção de, digamos, “vídeos educativos”, inclusive em inglês, para jogar no nome do País ainda mais na lama. O mais longo e que lista os argumentos da defesa está no link abaixo. É útil assistir, pois Lula e o PT estão martelando, dia e noite, que “não há provas”. Então, ao assistir o vídeo, você poderá entender a fragilidade dos “argumentos” da defesa. Fiz aqui uma análise desses argumentos, até para que eu mesmo tivesse certeza de que não estou condenando um inocente. Afinal, uma mentira martelada mil vezes se transforma em verdade.

Argumento 1: competência. A defesa insiste em que Lula deveria ser julgado por um juiz de Brasília ou do Guarujá. O MP incluiu a ação de Lula no âmbito da operação Lava-Jato, pois ligou a propina distribuída pela OAS a 3 contratos com a estatal. A defesa usa em sua argumentação uma frase usada pelo juiz Sergio Moro na sentença dos embargos de declaração (íntegra aqui): “Este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente.”

Análise do argumento 1: ora, a frase foi retirada do seu contexto. Na sentença aos embargos de declaração, o juiz complementa a frase acima com o seguinte: “Nem a corrupção, nem a lavagem, tendo por crime antecedente a corrupção, exigem ou exigiriam que os valores pagos ou ocultados fossem originários especificamente dos contratos da Petrobrás.” Vamos entender uma coisa de uma vez por todas nesse processo: está mais que provado que a OAS pagou propina para vencer a licitação das 3 obras citadas na ação. Isto é pacífico. Na outra ponta, resta provar duas coisas: 1) que o presidente Lula tinha ascendência sobre os operadores da Petrobras que receberam a propina e 2) que a OAS concedeu benefícios ao ex-presidente Lula. Ou seja, não se faz necessário que haja um “caminho do dinheiro” entre a contabilidade da Petrobras referente a estes 3 contratos e os gastos específicos com o triplex. O juiz deixa isso claro no item 199 da sentença: “dinheiro é fungível e a denúncia não afirma que há um rastro financeiro entre os cofres da Petrobrás e os cofres do ex-Presidente, mas sim que as benesses recebidas pelo ex-Presidente fariam parte de um acerto de propinas do Grupo OAS com dirigentes da Petrobrás e que também beneficiaria o ex-Presidente. Logo, a perícia seria inócua pois a acusação não se baseia em um rastreamento específico”.

Argumento 2: cerceamento de defesa. A defesa alega que o juiz negou a perícia judicial para 1) provar a propriedade do triplex e 2) se o mesmo estaria vinculado em garantia a operações financeiras de um fundo gerido pela Caixa. Neste segundo caso, esta vinculação provaria a propriedade do imóvel por parte da OAS, pois não se pode dar em garantia algo que não é seu.

Análise do argumento 2: na sentença (veja a íntegra neste link), o juiz Sergio Moro estabelece o raciocínio que irá derrubar a tese de que o apartamento não pertence ao ex-presidente. Vale a pena transcrevê-lo todo, pois é de uma clareza meridiana (itens 304 a 308): “Na resolução desta questão, não é suficiente um exame meramente formal da titularidade ou da transferência da propriedade. É que, segundo a Acusação, a concessão do apartamento ao ex-Presidente teria ocorrido de maneira sub-reptícia, com a manutenção da titularidade formal do bem com o Grupo OAS, também com o objetivo de ocultar e dissimular o ilícito. Então, embora não haja dúvida de que o registro da matrícula do imóvel, […] aponte que o imóvel permanece registrado em nome da OAS Empreendimentos S/A, empresa do Grupo OAS, isso não é suficiente para a solução do caso. Afinal, nem a configuração do crime de corrupção, que se satisfaz com a solicitação ou a aceitação da vantagem indevida pelo agente público, nem a caracterização do crime de lavagem, que pressupõe estratagemas de ocultação e dissimulação, exigiriam para sua consumação a transferência formal da propriedade do Grupo OAS para o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não se está, enfim, discutindo questões de Direito Civil, ou seja, a titularidade formal do imóvel, mas questão criminal, a caracterização ou não de crimes de corrupção e lavagem. Não se deve nunca esquecer que é de corrupção e lavagem de dinheiro do que se trata.” Por isso, o juiz não perdeu tempo com perícias inúteis: a titularidade é, sempre foi e sempre haveria de ser da OAS.

Com relação ao tal “fundo da Caixa Econômica”, o juiz, na sentença, também aborda este assunto, nos itens 813 a 818. Na verdade, o que ocorreu foi uma operação de crédito imobiliário comum na fase de construção de empreendimentos: a OAS hipotecou todos os imóveis do empreendimento (incluindo o triplex) para obter o financiamento para construir o prédio. Uma vez construído e vendidos os apartamentos, cancelou a hipoteca. No caso do triplex, a OAS bancou o valor do imóvel para levantar a hipoteca. Cai no mesmo caso anterior: a propriedade formal é da OAS, mas isso pouco importa para o crime de lavagem de dinheiro.

Argumento 3: o juiz teria condenado por crime diverso daquele pelo qual Lula foi acusado pelo MP. Ou seja, Moro teria “inventado” um crime. Este argumento se divide em duas partes: 1) o MP acusou Lula de receber benefícios em função de 3 contratos da Petrobras. Ou seja, um fato determinado. No entanto, o juiz teria admitido que “este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente.” Portanto, como não há dinheiro da Petrobras envolvido, não haveria como incriminar Lula nesta acusação. 2) Além disso, o MP, na acusação, teria afirmado que a OAS transferiu a PROPRIEDADE (grifo meu) do triplex para Lula. No entanto, como não se conseguiu provar esta transferência, o juiz usou o verbo “atribuir” o triplex a Lula, o que não consta, de maneira alguma, da acusação.

Análise do argumento 3: com relação ao item 1), é o mesmo que vimos no argumento 1 acima. Portanto, não vamos nos repetir como fez o advogado de defesa. O item 2) é mais capcioso. De fato, esta frase consta do número 180 da denúncia do MP (link aqui). No entanto, como sempre feito pela defesa, foi retirada do contexto. A denúncia continua: “Todavia, o apartamento não foi formalmente transferido para LULA e MARISA LETÍCIA porque tal estratagema foi arquitetado com a finalidade de ocultar e dissimular a origem, a movimentação, a disposição e a PROPRIEDADE (grifo meu) dos recursos utilizados para a aquisição da cobertura em favor de LULA e MARISA LETÍCIA, haja vista serem valores ilícitos oriundos de crimes de cartel, fraude a licitação e corrupção praticados pelos executivos da CONSTRUTORA OAS contra a Administração Pública Federal, notadamente a PETROBRAS. Tal estratagema também decorreu do fato de que LULA ainda estava por demais exposto como Presidente da República e, na medida em que o empreendimento ainda não estava concluído, não poderia ocorrer a transferência formal da propriedade da cobertura 164-A do Condomínio Solaris para o casal. Materialmente, contudo, a cobertura passou a ser de propriedade de LULA e MARISA LETÍCIA.” Por isso, o juiz usou o verbo “atribuir” na sentença, para significar a propriedade material (não formal) do apartamento por Lula. Aliás, no item 850 da sentença, o juíz diz: “Considerando então que o o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa eram proprietários de fato do apartamento 164-A”. Portanto, Moro também usa o termo “propriedade” na sentença, o que torna o argumento da defesa sem fundamento.

Argumento 4: não há “ato de ofício” específico praticado pelo ex-presidente e nem prova de que Lula tenha pedido especificamente o triplex como propina.

Análise do argumento 4: este é o argumento mais delicado. De fato, o grande problema da acusação é ligar Lula ao esquema de corrupção. Na minha opinião, o recebimento do triplex, mais do que provado, seria o suficiente. Afinal, porque receber um apartamento se não houve corrupção? No entanto, o MP e o juiz Sergio Moro são diligentes e não deixaram este item sem resposta. Para começar, no item 863 da sentença, o juiz Sergio Moro lembra que, de acordo com os artigos 317 e 333 do Código Penal, a existência de “ato de ofício” aumenta a pena, mas não é necessária para tipificar o crime de corrupção. De fato, diz o art. 333: “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício.” Portanto, o ato de ofício pode nem existir. No entanto, e isso é o principal, conforme o item 890 da sentença, a ligação de Lula com a corrupção da Petrobras está na nomeação e manutenção dos operadores da corrupção na empresa, conforme inclusive depoimento do próprio Lula, transcrito no item 838 da sentença. Este é o “ato de ofício” que liga Lula à corrupção. Fecha-se o círculo.

Quanto a ter pedido especificamente o triplex como propina, fica provado pelas reformas personalíssimas feitas no imóvel.

Argumento 5: a sentença diz que Lula teria praticado “atos de ofício indeterminados”. Pergunta o valente defensor: como pode alguém ser condenado por “atos indeterminados”???

Análise do argumento 5: a única menção da sentença a “atos de ofício indeterminados” ocorre no item 865. Transcrevo: “Basta para a configuração que os pagamentos sejam realizadas em razão do cargo ainda que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam.” Moro não afirma que os atos foram indeterminados. O que ele afirma é que, mesmo que fossem indeterminados, servem como contrapartida de pagamento de propina. Não há nada mais determinado do que a nomeação de diretores da Petrobras para facilitar a vida da OAS na empresa.

Argumento 6: a sentença tomou como base fundamental para condenar Lula o depoimento de Léo Pinheiro, que, sendo corréu da ação, prestou o depoimento sem o compromisso de dizer a verdade. Inclusive, Rodrigo Janot teria rejeitado o acordo de delação de Léo Pinheiro porque este não teria apresentado provas de suas acusações.

Análise do argumento 6: como diria Jack o estripador, vamos por partes. O argumento 6 se divide em 3 partes: 1) o depoimento de Léo Pinheiro foi base fundamental da sentença; 2) Léo Pinheiro não tinha compromisso de dizer a verdade e 3) Léo Pinheiro não apresentou provas de suas acusações. Vejamos.

1) A delação de Léo Pinheiro não foi base fundamental da sentença. O juiz Sergio Moro gasta praticamente metade da sentença (até o item 515) montando o arranjo de provas documentais e testemunhais (incluindo do próprio ex-presidente), antes de introduzir o testemunho de Léo Pinheiro. E este testemunho apenas corrobora o conjunto de provas.

2) O juiz alertou Léo Pinheiro de que, por ser acusado, não estava sujeito ao art. 342 do Código Penal (falso testemunho), mas responderia por “denunciação caluniosa” (art. 339 do CP) se prestasse informações inverídicas sobre terceiros. Ou seja, haveria um custo para o réu se este mentisse em relação ao papel de Lula.

3) Rodrigo Janot suspendeu o acordo de delação de Léo Pinheiro em agosto/2016 porque parte vazou para a imprensa, inclusive com a citação do nome do ministro Toffoli. Isto está amplamente noticiado, basta dar um Google. Não tem nada a ver com “falta de provas”. Aliás, provas do que Leo Pinheiro disse foram apresentadas. Por exemplo, a troca de mensagens nos celulares dos principais executivos da OAS sobre a reforma no triplex. Ou o fato do triplex ter sido a única unidade do edifício a nunca ter sido colocada à venda.

Argumento 7: “lawfare”. Este argumento não está no vídeo, mas incluí aqui porque é bastante comum ouvir os petistas falando em “perseguição política usando a justiça”. Então resolvi rebater este argumento também.

Análise do argumento 7: “lawfare” é a submissão do Poder Judiciário ao ditador de plantão, que o usa para perseguir seus opositores. Basicamente o que está acontecendo na Venezuela. No Brasil, os poderes são independentes, e o Presidente da República está longe de dominar o Judiciário. Muito pelo contrário, como pudemos ver nas duas denúncias de Rodrigo Janot. Então, não tem o mínimo cabimento falar em “lawfare”. A não ser para aqueles que insistem em culpar “a zelite” por tudo. As tais “zelite” e “setores reacionários da imprensa” estariam manipulando a justiça para perseguir Lula. Acho que não precisa responder a esta patacoada, né?

Enfim, pode ser que o TRF-4 absolva Lula. Afinal, os juízes podem ter outra interpretação sobre a culpabilidade do ex-presidente. Isto não mudará a minha convicção, amparada nas provas apresentadas pelo MP e acolhidas por Moro. Mas, ao contrário de Lula e dos petistas, respeitarei a decisão da justiça.”

Contrição de conveniência

Causou grande repercussão o “mea culpa” de FHC a respeito da Emenda Constitucional da reeleição (reproduzo abaixo o trecho do artigo publicado no Estadão ontem).Muito bem. Pena que tenha vindo um pouco tarde. FHC perdeu a oportunidade de se opor ao instituto da reeleição quando Lula e Dilma eram presidentes. Não lhe pareceu um erro na época, dado que não houve “mea culpa”. O ex-presidente bate no peito justamente agora quando é Bolsonaro o reelegível da vez? Contrição de conveniência.

Eu particularmente acho que qualquer sistema funciona, desde que não se mudem as regras do jogo casuisticamente. As regras, quaisquer que sejam, devem valer independentemente da pessoa que esteja ocupando o cargo. A desculpa de que o atual presidente tem a máquina do Estado para se reeleger vale também para o sucessor escolhido. Ou ninguém viu o que Lula fez para eleger Dilma? Não permitir a reeleição não vai resolver a questão do uso da máquina. O grupo político que detém o poder sempre terá vantagem.

Esse “mea culpa” de FHC tem esse odor de casuísmo. Mas como é FHC e como é Bolsonaro o presidente, parece muito lógico e sensato. Só que não.