Vou iniciar este artigo com um disclaimer: não tenho nada contra os funcionários públicos. Pelo contrário. Reconheço a importância de todos em um sem número de funções essenciais para o bom funcionamento do Estado. Portanto, o que vai a seguir não deve ser interpretado, nem de longe, como um libelo contra o funcionalismo público. Trago apenas números.
A minha fonte principal de dados é o Atlas do Estado Brasileiro, do IPEA. Trata-se de uma radiografia bastante completa do funcionalismo público brasileiro, cobrindo o período de 1986 a 2017. Usei especificamente os dados de 2017 para fazer a análise que vai a seguir.
Vamos do geral para o particular.
Em 2017, os três níveis de governo (Federal, Estadual e Municipal) gastaram R$ 751 bilhões com funcionários públicos da ativa. Isto significou 10,7% do PIB daquele ano. Como a carga tributária é de aproximadamente 33% do PIB e o déficit primário daquele ano foi de aproximadamente 2% do PIB, temos um total de despesas gerais do governo equivalente a 35% do PIB. Portanto, a despesa com funcionários públicos nos três níveis de governo representou algo como 30% (10,7% de 35%) de todas as despesas públicas. É o segundo maior item de despesas, somente atrás da Previdência Social, que já foi objeto de reforma. Portanto, o próximo item da pauta de controle de despesas é a despesa com salários dos funcionários públicos.
Claro que, como pressuposto básico, assumimos que é necessário fazer algum ajuste nas contas públicas. Temos uma relação dívida/PIB caminhando para 100% (muito acima de nossos pares emergentes), produzimos um déficit primário da ordem de 3% do PIB e temos uma carga tributária de cerca de 1/3 do PIB, também muito acima de nossos pares emergentes. Estes números nos levam à conclusão de que precisamos ajustar as contas, a não ser que sejamos partidários da tese de que podemos nos endividar indefinidamente ou podemos rodar a maquininha de imprimir dinheiro sem limites (o que vem a dar na mesma). Se você é partidário dessas teses, este artigo não vai fazer muito sentido para você.
Voltemos ao fio da meada. Tivemos, em 2017, um gasto anual de R$ 751 bilhões com salários de funcionários públicos da ativa. Para decidir onde e como cortar, precisamos analisar como se distribui este gasto. O Atlas do Estado Brasileiro traz alguns dados relevantes, que usei para fazer os meus próprios cálculos. É isso que veremos em seguida.
A distribuição dos gastos com o funcionalismo público
De maneira geral, podemos dividir os gastos com funcionalismo nas três esferas governamentais (Federal, Estadual e Municipal) e entre os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Uma primeira abordagem para analisar os gastos com o funcionalismo é levantar o salário médio dos servidores. Afinal, parece ser intuitivo que atacar os salários mais altos é a forma mais eficiente de controlar os gastos, pois é nesses salários que, supostamente, estaria a maior gordura. A tabela 1, a seguir, mostra os salários mensais médios de 2017 já atualizados
para 2019 pelo INPC:
Observe como os salários do poder Judiciário e da esfera Federal são muito maiores do que nas outras esferas e nos outros poderes. Uma crítica à reforma administrativa que foi enviada pelo governo para o Congresso é justamente a de não ter mexido com os supersalários do Judiciário.
Ocorre que a forma mais eficiente de cortar qualquer despesa é atacar as maiores despesas. Qualquer economia nas maiores despesas faz mais diferença do que se fossem feitos cortes nos menores itens de despesa. Os maiores salários estão no Judiciário. Mas será que este é o maior item de despesa? Não. A tabela 2 mostra o total gasto em cada nível de governo e em cada poder (estes números não estão no Atlas, eu calculei com base nos números do Atlas).
Observe como o grosso dos gastos encontra-se no poder Executivo (R$ 652,6 bilhões, representando cerca de 87% do gasto total). Isso acontece porque, mesmo tendo o nível salarial mais baixo entre os três poderes, o poder Executivo é o que tem, de longe, o maior número de funcionários públicos: são 10,7 milhões, representando 94% do total de 11,4 milhões de servidores em 2017, como podemos observar na Tabela 3.
E esse é o xis da questão. Enquanto os maiores salários estão no poder Judiciário e na esfera Federal, os maiores gastos, em valores absolutos, estão no poder Executivo e nas esferas Estadual e Municipal. Mesmo que conseguíssemos, por exemplo, cortar em 25% os salários do poder Judiciário nas esferas Federal e Estadual, teríamos uma economia anual de R$ 18 bilhões. Não é pouco, mas também não ajuda muito, em um déficit primário da ordem de R$ 200 bilhões por ano. Por outro lado, teríamos mais ou menos a mesma economia se conseguíssemos cortar os salários do poder Executivo nas três esferas de governo em algo como 2,8%.
Isso acontece porque a distribuição de riqueza no funcionalismo público segue mais ou menos o mesmo padrão do restante do Brasil: poucos ganham muito, e a maioria ganha uma miséria. Vamos pegar como exemplo os salários acima de R$ 20 mil/mês. No poder Executivo, apenas 0,1% dos funcionários públicos ganham acima deste valor nas três esferas de governo. No Legislativo, são 4,8%, enquanto no Judiciário são 12,5%. Em termos absolutos, o poder Executivo gasta R$ 5,5 bilhões/ano com esses salários, o Legislativo gasta outros R$ 5,5 bilhões/ano, enquanto o Judiciário gasta R$ 20 bilhões/ano. Portanto, o governo como um todo gasta R$ 31 bilhões/ano com salários acima de R$ 20 mil/mês, ou 4,1% do total dos gastos. Se conseguíssemos cortar em 25% esses salários, teríamos uma economia de apenas R$ 7,8 bilhões, a mesma economia que teríamos se cortássemos os salários abaixo de R$ 20 mil/mês em 1,1%.
Conclusão: mirar nos maiores salários é necessário, mas não suficiente
Mirar nos salários mais altos, nos privilegiados do setor público, é o equivalente a taxar grandes fortunas: funciona como efeito demonstração, mas tem efeito limitado sobre as contas públicas. Infelizmente, somos um país pobre, e se não taxarmos os pobres, ou não cortarmos os salários dos funcionários que ganham menos, não se tem o efeito pretendido.
Isso significa que não se deva mirar nos maiores salários? De maneira alguma! Politicamente, qualquer intervenção só funciona se houver um efeito demonstração. Os deputados, senadores e governantes deveriam começar cortando de seus próprios salários, e os magistrados com as maiores regalias deveriam ser os primeiros alvos de qualquer reforma administrativa. Mesmo que isso não signifique, como vimos, grande economia, demonstra para a grande massa dos funcionários públicos que a coisa é para todos e é para valer. Meu ponto aqui é que focar as reformas administrativas das três esferas do governo apenas nos maiores salários não funciona.
O Estado que queremos e o Estado pelo qual estamos dispostos a pagar
Os números acima mostram que o problema não está nos supersalários ou nos privilégios. O problema é mais embaixo: a grande massa dos funcionários públicos, aqueles que ganham menos e que prestam serviços diretamente à população, estes são os que representam os maiores gastos dos governos nas três esferas. A grande questão é que é fácil prometer o paraíso na Terra, mas pagar por isso é que são elas. Somos um país pobre, mas prometemos um Estado escandinavo para a população. É lógico que haja frustração, mesmo gastando 10,7% do PIB com salários de funcionários públicos (isso é só da ativa, não estou contando os aposentados).
A discussão de uma reforma administrativa passa pela discussão do Estado pelo qual podemos pagar. Para isso, é preciso, antes de mais nada, acabar com o mito de que, eliminando “penduricalhos” e acabando com os “marajás” do serviço público, os problemas estarão resolvidos. Não estarão. O grosso do gasto público se dá nos extratos inferiores, como vimos.
Já contribuímos com cerca de 1/3 do PIB em impostos. Trata-se de um nível somente inferior ao que se tem nos países nórdicos. E esta carga tributária não tem sido suficiente para pagar pelos serviços que demandamos do Estado. A solução é elevar ainda mais a carga tributária? Quem garante que a qualidade dos serviços do Estado melhorará simplesmente colocando mais dinheiro no sistema?
A questão não é se os funcionários públicos ganham muito ou pouco. A verdadeira questão é qual o tamanho do Estado pelo qual estamos dispostos a pagar. E aqui, vale a mesma lógica de um país pobre: o grosso da conta sempre vai recair sobre os pobres. Nunca esqueça esse fato.
Está mais do que na hora de acabar com o “me engana que eu gosto”
Encerro com o mesmo disclaimer que dei no início deste artigo: tenho o maior respeito pelos funcionários públicos e não quero usá-los como o bode expiatório dos problemas brasileiros. Meu único ponto neste artigo foi mostrar que, se queremos diminuir as despesas do Estado brasileiro (e essa é uma premissa importante), é preciso atacar a questão dos serviços que o Estado presta para a população e da remuneração dos funcionários públicos que prestam esses serviços. O fato é que os serviços demandados pela população não cabem no orçamento público, e alguém precisa dar essa má notícia.
Tenho consciência de que não se trata de assunto fácil, mas funcionários públicos de vários estados já estão sentindo na pele uma “reforma administrativa” não declarada, com o atraso sistemático de seus salários. Estamos vivendo um “me engana que eu gosto”, fazendo de conta que temos dinheiro para pagar os salários de todos. Não temos, e é melhor reconhecer este fato do que varrer a realidade para debaixo do tapete. O redimensionamento do Estado é a forma ordenada de resolver o problema. A maneira desordenada já conhecemos: inflação, que distribui para toda a população o ônus de uma conta que não tem como ser paga.