Notinha de hoje no Estadão, que me fez pensar em vários aspectos dessa pandemia no estágio atual.
Em primeiro lugar, salta aos olhos o viés do jornalista: Bolsonaro não “provocou” uma aglomeração. A aglomeração já estava ali. Os jornais não cansam de estampar fotos de aglomerações em ruas, praias e festas todos os dias. E Bolsonaro não está em nenhum desses lugares. As pessoas que se aglomeraram em torno de Bolsonaro não brotaram do fundo do mar. Já estavam lá antes da chegada de Bolsonaro e continuaram depois.
Claro que o presidente deu um mau exemplo. Se usasse o poder de seu cargo para reforçar as medidas sanitárias preconizadas pelos especialistas, não haveria aglomeração na praia. Será? É justamente este o ponto que me fez parar para pensar.
Será que Bolsonaro (ou qualquer presidente) tem esse poder de liderança, a ponto de fazer as pessoas mudarem de comportamento? Ou será que Bolsonaro faz a leitura do que vai nas mentes e corações de uma parte do povo e age de acordo? Ou, até mais do que isso: não será que Bolsonaro é uma parte desse povo, que está cansado de quarentenas e não acredita mais em “especialistas”? Estarão errados em sua percepção negacionista?
Vejamos.
Depois de 10 meses de epidemia temos 200 mil mortos. Arredondando, 0,1% da população. Imagine você chegando para uma festa com mil convidados. Um amigo seu também foi convidado, só que vocês chegaram em momentos diferentes. Sua missão: encontrar seu amigo nesse salão, mas sem sair muito do seu lugar. Essa é a chance de um brasileiro conhecer pessoalmente algum morto por Covid. Podemos tentar melhorar a estatística, dizendo que meu amigo e eu temos um conhecido em comum na festa. Lembre-se que isso significa que temos, em proporções brasileiras, 200 mil amigos em comum. Mas vá lá. Mesmo assim, a chance de conhecermos alguém que conhece alguém que morreu de Covid também é relativamente baixa. Sobram 997 pessoas que não conhecem nem você e nem o seu amigo.
Na falta dessa experiência pessoal, resta somente a cobertura jornalística, que procura trazer os casos de mortes por Covid para o cotidiano das pessoas. Ou seja, procuram transmitir a sensação de que o seu amigo é amigo de todo mundo. No início até funciona.
Quando eu era criança, de vez em quando aparecia, na escola, o boato da loira do banheiro. Seria uma mulher morta, com algodão no nariz, e que ficava no banheiro assustando as pessoas. Os mais velhos entravam no banheiro e saiam afetando terror, para assustar os mais novos. No início todo mundo ficava apavorado e evitava ir ao banheiro. Mas a vontade de fazer xixi era mais forte, e uma criança mais valente arriscava. E, adivinha? Não havia loira nenhuma ali! Estava desfeita a farsa, para júbilo da garotada.
Não estou dizendo que a Covid seja uma farsa, longe disso. Mas, com as estatísticas atuais, apenas um em mil banheiros tem uma loira com algodão no nariz. A imprensa procura chamar a atenção para este banheiro, mas o fato é que os outros 999 banheiros ainda não tem loira alguma, e as pessoas cada vez mais têm a sensação de que não vão encontrar nenhuma mesmo.
É bem conhecido o fenômeno da assimetria da atribuição de probabilidades: o ser humano costuma dar maior probabilidade subjetiva a um fenômeno positivo do que a um fenômeno negativo. Assim, as pessoas apostam na Mega-Sena com a firme esperança de ganhar, mesmo que a chance seja de 1 em 50 milhões, mas não apostam na chance de morrer de Covid, cuja chance real (já aconteceu) é uma em mil. Aliás, é maior do que isso, pois a letalidade é maior que 0,1%. Mas o ser humano olha com esperança o fato de uma ou duas pessoas terem ganho a Mega-Sena, e olha com desdém o fato de 200 mil terem morrido de Covid. Esta é a psique humana.
Voltando a Bolsonaro e à parcela da população que não está nem aí para a epidemia. O problema é que estamos há 10 meses dizendo que tem uma loira no banheiro, e a tal da loira não aparece na vida concreta das pessoas. As pessoas sentem falta do convívio, da vida normal, e começam a retoma-la, acreditando que a loira não vai aparecer mesmo. Pelo menos, não para elas. A única forma de mudar essa percepção é acontecer um desastre de proporções bíblicas, que sirva de aviso. Tipo, cadáveres sendo carregados por caminhões do exército porque acabaram os carros funerários, e pessoas morrendo ao vivo nas portas dos hospitais por falta de atendimento. O problema é que, depois do desastre, há pouco o que se possa fazer. O próprio aviso é o desastre, de modo que, quando acontecer, pouco mais poderá ser feito.
Nassim Taleb, eu seu livro O Cisne Negro, fala sobre risco e percepção de risco. Ele faz um experimento mental, em que um legislador exige portas blindadas para a cabine do piloto dos aviões, para evitar atentados como o das torres gêmeas. Obviamente, não teria sido aprovado, pois era um risco muito baixo, desprezível. Precisou ocorrer um evento daquele tipo, de proporções bíblicas, para ser adotado, mas aí o atentado já havia ocorrido. Se tivesse sido adotado antes, o atentado não teria acontecido. Mas sem o atentado ter acontecido, todo aquele gasto pareceria inútil, pois evitava um risco muito remoto. O próprio atentado serviu de aviso, mas aí o atentado já ocorreu.
Tudo isso para dizer que aglomerações são um problema global, não é exclusividade brasileira. Elas acontecem mesmo em países onde os dirigentes estão comprados com as medidas sanitárias, pois faz parte da própria forma como os seres humanos percebem a realidade e se comportam diante dessa percepção. Claro que, como narrativa política, colocar a conta da pandemia no colo do presidente faz todo sentido. Por isso, parece-me que Bolsonaro erra ao reforçar essa narrativa. Mas, do pontos vista prático, uma parcela da população estaria se aglomerando hoje, com ou sem o aval do presidente. Bolsonaro é apenas mais um que acha que não tem loira nenhuma no banheiro. E a percepção probabilística está do lado dele.