Ao longo dos séculos, os filósofos se debateram com essa questão. No início era tudo muito simples: realidade é aquilo que nós vemos e sentimos. Os sentidos humanos eram a porta de entrada da realidade em nossas mentes. A realidade estava fora do ser humano, que tinha a missão de apreendê-la.
A partir de Descartes, no entanto, esta noção dá um rodopio de 180 graus. “Penso, logo existo” é algo completamente diferente de “Penso porque existo”. A realidade, a partir de Descartes, passa a ser, de alguma maneira, criada pela mente humana. A existência está subordinada ao pensamento: “penso, logo existo”. Se eu não pensasse, não teria nenhuma evidência da minha existência.
Claro que nós e o mundo existimos além da nossa própria consciência. Mas, ao reduzir ao pensamento a única evidência de nossa existência, Descartes abre a caixa de Pandora do idealismo. Ou seja, da ideia de que nós criamos a nossa própria realidade.
Filmes como Show de Truman e Matrix brincam com esse conceito. Existe uma falsa realidade montada para nos enganar. Nos movemos nessa falsa realidade como se fosse a verdadeira. Os protagonistas descobrem, horrorizados, que foram manipulados. Mas, nestes casos, ainda assim existe uma realidade “verdadeira”, aquela que manipula a falsa realidade. Saindo da falsa realidade, temos uma realidade “de verdade”.
Mas a coisa pode ser mais complexa. Em um episódio da série Black Mirror, um rapaz serve como piloto de testes de um vídeo game ultrarrealista. Durante o episódio, ele “volta para a realidade”, somente para descobrir que ainda estava dentro do jogo. O espectador termina o filme sem ter certeza se o final é ainda um sonho ou a “realidade”.
Nos casos acima, a realidade é criada externamente. Mas pode ser criada também internamente, por uma doença psíquica. Nos filmes Uma Mente Brilhante e Clube da Luta, o personagem principal é vítima de alucinação, e contracena com personagens criadas pela sua própria mente. Quem está fora de sua mente vê a realidade como ela é, enquanto o protagonista jura que aquilo que vê é a própria realidade.
Toda essa digressão me veio à mente diante desta questão das alegações de fraudes na eleição dos EUA. Qual a realidade?
Em todos os exemplos acima, há um momento em que o protagonista descobre a realidade. A verdade verdadeira, aquela que está fora da nossa mente e percepções. Truman descobre a verdade depois de desconfiar de vários erros nas filmagens, John Nash descobre que suas alucinações não envelhecem, o narrador de Clube da Luta é chamado pelo nome de sua alucinação. São momentos-chave dos filmes, em que a realidade se faz presente em toda a sua crueza.
No filme A Origem, em que Leonardo de Caprio faz o papel de uma espécie de “navegador de sonhos”, ele precisa ter um objeto, uma espécie de token, que o ajude a distinguir o sonho da realidade. No caso, ele usa uma espécie de pião. Se o pião não cai, ele está no sonho. Assim como o token usado pelo personagem de Leonardo de Caprio, também precisamos de algo firme, seguro, que nos permita distinguir o que é realidade daquilo que simplesmente está em nossa mente. Não é tão fácil quanto nos filmes.
No caso das eleições americanas, cada lado tem o seu “token” de estimação, aquele que lhe dá a segurança de que está do lado da realidade. Do lado daqueles que acreditam que houve fraude, o token é a convicção de que “Sleepy Joe” não teria condições de vencer Mr. Trump em uma eleição limpa. Como disse o chefe do Partido Republicano de Waukesha, um condado do Wisconsin, em uma matéria da The Economist, “Não há absolutamente nenhuma maneira de Biden ter superado Barack Obama no condado de Waukesha pelos números que eles estão proclamando”. Esta convicção faz com que a única explicação plausível, a única realidade possível, seja a fraude.
Do lado de quem não acredita na fraude, o “token” é a tradição de mais de 200 anos ininterruptos na realização de eleições, em um país aberto e com pesos e contrapesos funcionando. Uma fraude sistêmica precisaria ter o concurso de milhares de pessoas, em um esquema gigantesco que dificilmente passaria despercebido. Seria mais ou menos como duvidar de que o homem foi à Lua: milhares de pessoas envolvidas na farsa em um pacto de silêncio dificílimo de manter. Além disso, todos os pedidos de revisão e impugnação foram rechaçados pelos comitês eleitorais ou pela justiça, que precisariam estar envolvidos na fraude.
Qual desses dois “tokens” indica a realidade?
John Nash, quando nota que suas alucinações não envelhecem, descobre em que lado da realidade elas estão. Ele é uma pessoa com uma inteligência superior (ganhador do prêmio Nobel), e consegue se arrancar de dentro de suas alucinações somente com seu raciocínio. A maioria de nós não consegue. Somos reféns de nossas ideias preconcebidas, de nossa formação, de nossas posições.
Mas, efetivamente, existe uma só realidade. Ou bem houve uma gigantesca fraude que mudou o resultado das eleições americanas, ou não houve algo decisivo, que pudesse fazer grande diferença. Qual a real?
Minha regra pessoal, neste caso, é evitar coisas que cheiram a teoria da conspiração. Esse é o meu token, é onde confiro se o que estou vendo é alucinação ou realidade. Tenho imensa dificuldade em aceitar teorias da conspiração. No caso em foco, como já disse acima, a fraude precisaria ter o concurso de várias milhares de pessoas, em um esquema gigantesco. Não parece muito possível. Tem algo errado com essa história. Com a história inversa consigo lidar melhor: poderia Trump perder de “Sleepy Joe”? Com algum esforço, é possível traçar um cenário em que sim, isso seria possível. A Covid mudou o cenário eleitoral. A forma como o governo Trump, e o próprio presidente, lidaram com o assunto, foi desastrosa, na minha opinião. Enfim, motivos há para que Trump tenha perdido a eleição por uma margem estreita.
De qualquer modo, na disputa entre as duas realidades, há um árbitro. Por mais que não concordemos com a realidade “alternativa”, em sociedades civilizadas se respeita o árbitro. O juiz em campo, por mais que tenha errado ou esteja de má fé, no final das contas, é o juiz, e deve ser respeitado. Quando o PT chamou o impeachment de “golpe”, na verdade estava desrespeitando os juízes do julgamento, no caso, os deputados. Quando Trump insiste na tese de fraude, está desrespeitando os juízes do jogo, no caso, os comitês eleitorais e a justiça em suas várias instâncias.
Há alguns anos, recebi um e-mail de um economista, em cuja assinatura havia os dizeres “adequatio mentis ad rem”. Fiquei curioso e perguntei a ele o que significava. “Adeque sua mente à realidade”, ele me explicou. Os economistas precisam ser humildes e aceitar os dados da realidade para construir seus modelos, e não tentar enfiar a realidade dentro dos seus modelos pré-concebidos. Este é o sentido. Desde então, adotei este slogan como lema da minha vida: procure conhecer a realidade como ela é. Trata-se de uma tarefa difícil, muito difícil, pois a realidade, como vimos, se esconde sob diversas narrativas e, principalmente, sob o nosso próprio modo de pensar. Mas trata-se de uma tarefa essencial para manter a sanidade mental.