Demorei um pouco a voltar a escrever sobre Doria e o Coronavac, porque as nuvens estão mudando de formato dia a dia, e não quis correr o risco de escrever algo que ficasse velho algumas horas depois. Acho que agora, aparentemente, a coisa estabilizou-se. Vamos ver, espero não queimar a língua.
No meu primeiro post a respeito, saudei o movimento do governador de São Paulo, ao anunciar um cronograma de vacinação. Isso foi no dia 07/12. O Reino Unido começaria sua campanha de vacinação no dia seguinte, enquanto vários países já anunciavam os seus programas para dezembro. O nosso governo, deitado eternamente em berço esplêndido, fazia cara de paisagem. O anúncio de Doria serviu para chacoalhar o cenário.
Avaliei, na ocasião, que ele já devia ter um trunfo nas mãos. Caso contrário, não arriscaria um cronograma com data marcada. Data esta, inclusive, que dependia da boa vontade da Anvisa. O anúncio servia para emparedar o governo federal.
Na época, chamei a atenção para o papel dos fatos no jogo político. Cada um pode dizer o que quiser, pode usar a narrativa que lhe convém. Mas, no final do dia, o que vai determinar o rumo dos acontecimentos são sua majestade, os fatos. E o fato é que Doria contava com uma vacina eficaz nas mãos, a única até aquele momento disponível no Brasil. Por motivos técnicos, no entanto, o anúncio da eficácia da vacina não podia ser feita naquele momento, mas foi prometida para o dia 15/12. Como eu imaginava que Doria não faria esse movimento sem ter uma razoável segurança sobre este dado fundamental, achei que fosse somente cumprimento de tabela.
Na véspera do anúncio, no entanto, Doria adiou mais uma vez, desta vez para o dia 23/12, e afirmando que já entraria com o pedido de registro junto à Anvisa naquele dia. Escrevi neste dia (14/12) que os fatos começavam a jogar contra a narrativa de Doria. Por que houve a promessa de divulgação para o dia 15/12? Com que base foi determinada aquela data, que, como se viu, não era real? O cheiro de intervenção política foi ficando mais forte.
No dia 23/12, o anúncio foi novamente adiado. A desculpa, desta vez, é que a Sinovac queria unificar os resultados obtidos no Brasil com as suas experiências na Turquia e Indonésia. Como vimos posteriormente, bullshit, os dados foram divulgados de maneira separada. O detalhe sórdido foi a ausência de Doria durante a coletiva do não-anúncio, em uma escapadinha para Miami neste dia. Os fatos, definitivamente, começavam a jogar contra o governador.
O interessante deste não-anúncio da eficácia no dia 23/12 foi justamente o anúncio da eficácia: o diretor do Butantã afirmou que a vacina tinha eficácia acima de 50%, conforme o exigido pelas agências reguladoras. Essa informação, vista de hoje, foi absolutamente correta, o que mostra que o governador e a diretoria do Butantã já tinham os dados de eficácia no dia 23/12, e provavelmente antes. Estavam apenas tentando encontrar um modo de comunicar melhor a questão.
A próxima data prometida para o anúncio foi o dia 07/01. De fato, neste dia, com pompa e circunstância, e até com direito a filminho da diretoria do Butantan recebendo a notícia “fresquinha”, soubemos que a eficácia da vacina era de 78%. Um excelente número, para quem estava esperando algo “acima de 50%”. Os fatos começavam a pender novamente para o governador. Todos os adiamentos anteriores eram apenas por motivos técnicos mesmo, agora ficava claro que tínhamos uma vacina decente.
Mas os fatos teimam em colocar o seu nariz para fora. Não demorou a surgirem questionamentos sobre este número de eficácia. Descobrimos que se tratava de um corte do estudo, não a eficácia geral. Aquela festinha filmada no Butantan não passava de encenação. Um verdadeiro papelão de todos os envolvidos.
No final, temos uma vacina de fácil produção e estocagem, que serve bem para diminuir os números da Covid e aliviar a pressão sobre os hospitais. Não se trata da bala de prata, mas em conjunto com outras vacinas e procedimentos, pode sim servir para voltarmos a uma vida minimamente normal.
A pantomima patrocinada pelo governador de São Paulo serviu, quando muito, para diminuir a eficácia da campanha de vacinação. Com tantos números rodando por aí, não é à toa que as pessoas fiquem em dúvida sobre a vacina. Doria começou bem, tomou à frente em um processo arriscado, teve sucesso na obtenção de uma vacina. Temos, de fato, uma vacina. Mas a forma como tentou dourar a pílula deitou por terra todo esse trabalho. A esperteza engoliu o esperto.