Quando você lê ou ouve uma dessas expressões, saiba que elas estão lá para causar indignação. “Em meio” ou “em plena” pandemia significa um estado de coisas que exige circunspecção, resguardo, perda, luto. Coisas boas “em meio à pandemia” causam revolta. Ninguém está autorizado pela patrulha do comportamento a ser feliz “em plena pandemia”.
O Bradesco teve “lucro recorde em meio à pandemia”. Enquanto você, seu ph@odido, está aí sofrendo com a pandemia, os bancos continuam tendo lucros obscenos “em plena pandemia”. Esta é a mensagem.
Se a manchete fosse apenas “Bradesco teve lucro recorde”, já seria em si uma distorção. Como já expliquei em um post anterior, ficar comparando números mensais ou trimestrais deste ano com os de anos anteriores leva a grandes distorções, pois houve um impacto gigantesco na atividade econômica no 2o trimestre e uma recuperação igualmente forte nos dois trimestres seguintes. Então, é só natural que tudo, inclusive os lucros, sejam “os maiores” nestes dois trimestres, se comparados a trimestres de anos anteriores. Isso não quer dizer absolutamente nada, está tudo distorcido.
Mas, ao acrescentar “em meio à pandemia”, a manchete não está apenas distorcida. Ela é falsa. Feique nius. O impacto da pandemia na atividade econômica se deu no 2o trimestre, não no 4o trimestre. Assim, não estamos “em meio à pandemia” no que se refere à atividade econômica. Estamos, ao contrário, “em meio a uma recuperação”.
Na verdade, “em meio à pandemia”, no ano de 2020, o Bradesco teve QUEDA de lucro de quase 25%. Mas isso você só vai saber se não ficar apenas na manchete.
Foi a maior queda anual de lucros do banco desde o início do Real. Mas a quem interessa os fatos como eles são?
PS.: minha agenda não inclui “defender os bancos”. Eles são bastante crescidinhos para se defenderem a si mesmos. Meu único interesse é esclarecer os fatos por trás das narrativas.
Escrevi o post “Caiu a ficha” pouco menos de 3 meses após a posse de Bolsonaro. Foi uma epifania, quando uma realidade se faz clara diante dos olhos: Bolsonaro não iria negociar com o Congresso.
Foram muitas as críticas que vinha recebendo de bolsonaristas quando sugeria que ele talvez devesse conversar com os parlamentares para empurrar sua agenda. Enfim, fazer política.
Mas “fazer política” era sinônimo de “fazer negociata”, e isso Bolsonaro jamais faria.
Bem, eu errei, dou minha mão à palmatória. Acreditei nos bolsonaristas e, nos 3 cenários que tracei no post, em nenhum deles previ o que aconteceu ontem no Congresso. Pouco menos de 2 anos depois, Bolsonaro e a fina flor do Centrão estão umbilicalmente ligados.
Bolsonaristas-raiz estão chateados? De maneira nenhuma! Tudo sempre é parte de um “grande plano” para implementar a agenda do bolsonarismo, o que quer que isso signifique.
Chateado estou eu, por ter feito uma análise política porca e ter sido humilhado pelos fatos. Peço desculpas aos meus leitores.
Quando publiquei o ranking de número de óbitos por Covid, alguns amigos procuraram, com razão, matizar aqueles números. O Brasil aparecia em 15o lugar, em um ranking que considerava apenas países com mais de 5 milhões de habitantes. Comparado com outros países que supostamente haviam feito a lição de casa durante a pandemia, não parecíamos em situação tão precária.
Vou reproduzir abaixo o ranking, atualizado até o dia 30/01, e considerando países com mais de 1 milhão de habitantes (os números se referem ao total de óbitos por milhão de habitantes).
Bélgica: 1.812
Eslovênia: 1.662
Reino Unido: 1.555
Rep. Tcheca: 1.515
Itália: 1.459
Bósnia: 1.418
Macedônia: 1.356
EUA: 1.323
Bulgária: 1.308
Hungria: 1.285
Espanha: 1.246
Peru: 1.233
Croácia: 1.219
México: 1.215
Panamá: 1.214
Portugal: 1.194
França: 1.162
Suécia: 1.148
Suíça: 1.077
Argentina: 1.060
Colômbia: 1.054
Brasil: 1.053
Lituânia: 1.032
Armênia: 1.024
Polônia: 981
É curioso como um simples ranking despertou reações que, a rigor, na letra fria dos números, não se esperaria. Afinal, estar entre os 15% piores parece algo muito ruim. Mas como o objetivo político, ao citar a estatística dos milhares de mortos por Covid, é impichar o governo de plantão, estar entre os 15% piores parece não ser suficientemente ruim. Por isso, os comentários mais comuns procuraram matizar estes números com dois atributos: 1) a pirâmide etária e 2) a densidade dos países. Se estas duas características fossem consideradas, aí sim, o Brasil apareceria como o pior dentre os piores.
A pirâmide etária como fator de ajuste é óbvia: os mais idosos são o principal grupo de risco. Então, países com uma proporção maior de idosos tendem a ter maior número de óbitos.
O segundo fator, densidade, também é óbvio. Quanto mais pessoas juntas em um determinado lugar, menor o distanciamento social e, portanto, maior a probabilidade de transmissão. Mas este fator é preciso ser medido com cuidado.
Quando as pessoas pensam em “densidade”, normalmente consideram o tamanho de cada país: países “pequenos” seriam mais densos, enquanto países “maiores” seriam menos densos. O Brasil, portanto, por ser o 5o maior país do mundo em área, seria muito menos denso, o que é verdade. Por isso, um grande número de óbitos aqui seria muito mais significativo, por exemplo, do que na Bélgica, um país “pequeno”.
Este raciocínio está errado. A densidade importaria se toda a população se distribuísse de maneira uniforme pelo território do país. Mas isso não acontece. As pessoas se concentram em cidades. Portanto, o que importa é o grau de urbanização do país, não a sua densidade. Quanto mais pessoas viverem em cidades, maior será a concentração, ou “densidade” daquele país.
Acho que um exemplo prático pode deixar o conceito mais claro. Na final da Libertadores, a Conmebol liberou público no Maracanã. No entanto, apenas 5 mil pessoas seriam admitidas. Como a capacidade do Maracanã é de quase 80 mil pessoas, 5 mil “desapareceriam” no estádio. A densidade (número de pessoas por área) seria muito baixa. No entanto, não foi o que se viu. As pessoas se concentraram no centro do estádio, onde a visibilidade era melhor. Resultado: concentração de pessoas, mesmo em um estádio com uma grande área.
Pois bem. Rodei duas regressões, uma contra a pirâmide etária e outra contra o grau de urbanização dos países. Usei o conjunto de 155 países com mais de 1 milhão de habitantes. Os gráficos estão abaixo.
Nos dois casos a correlação foi fraca, ainda que contra a pirâmide etária tenha sido um pouco mais forte. De qualquer forma, a tendência, de fato, é crescente: quanto mais velha e mais urbana for a população, maior tende a ser o número de óbitos.
O Brasil encontra-se acima das duas linhas de tendência. Isso significa que o país tem mais óbitos do que sugeriria a tendência geral. Em números: se o Brasil seguisse a média mundial para a pirâmide etária, teria cerca de 360 óbitos/milhão, e se seguisse a média mundial para a urbanização, teria cerca de 590 óbitos/milhão. Números muito melhores do que os atuais mais de 1.000 óbitos/milhão.
Dá para estimar uma equação com as duas variáveis. Segundo essa equação (r2 de 0,40, p-value para a pirâmide etária igual a zero, p-value para a urbanização igual a 8,7%), o número esperado de óbitos para o Brasil, considerando essas duas variáveis ao mesmo tempo, seria de 428/milhão. Uma diferença de 625 óbitos em relação ao número observado.
Abaixo, a lista dos 25 primeiros países de acordo com esse critério (o número representa quantos óbitos por milhão de habitantes ocorreram acima da linha de tendência):
Bélgica: 957
Peru: 872
México: 862
Panamá: 844
Eslovênia: 840
Bósnia: 811
Macedônia: 802
Reino Unido: 764
Rep. Tcheca: 683
Colômbia: 673
Bolívia: 634
Brasil: 625
EUA: 599
Itália: 559
Armênia: 523
Equador: 516
Argentina: 504
África do Sul: 489
Bulgária: 475
Espanha: 463
Hungria: 438
Chile: 426
Irã: 421
Croácia: 393
Portugal: 355
Observe como o Brasil saiu do 22o lugar para o 12o com esse ranking “corrigido” pela pirâmide etária e pela urbanização. De fato, esses fatores parecem ser importantes para explicar uma parte da letalidade do vírus.
O r2 da regressão é baixo, o que significa que certamente há outros fatores que explicam a letalidade. Mas, pelo menos, avançamos na precisão da estatística.
Agora, a leitura política deste novo ranking fica por conta de cada um.
Rodrigo Maia talvez tenha sido o presidente da Câmara mais liberal que passou pela casa.
Baleia Rossi é nada menos que o autor da PEC 45, a mais estruturada proposta de reforma tributária em análise na Casa.
Mas Paulo Guedes acha que é o Centrão que vai fazer deslanchar a sua “agenda liberal”.
A única agenda de Guedes, hoje, é a volta da CPMF. Aquela “grande agenda liberal”, com a qual Bolsonaro hipnotizou o mercado financeiro e os empresários, ficou no discurso.
Escrevam aí: não sai nenhuma grande privatização e nenhuma grande reforma até o fim deste governo. Podem printar este post e me cobrar daqui a dois anos.
Terei prazer em reconhecer o erro e pedir desculpas.