Atualização da vacinação

Hoje o Ministério da Saúde anunciou a distribuição de 8,4 milhões de doses de Coronavac e 728 mil de AstraZeneca. Completamos, assim, 28,4 milhões de doses distribuídas em março, contra uma previsão inicial de 30,1 milhões.

O furo se deu no consórcio Covax, que previa 2,9 milhões e só entregou 1 milhão e na AstraZeneca, que previa entrega de 3,9 milhões e entregou somente 1,8 milhões. O Butantan compensou parcialmente, pois previa 23,3 milhões e entregou 25,6 milhões de doses.

Hoje também ficamos sabendo que não será possível importar 20 milhões de doses da Covaxin, porque a fábrica não foi certificada pela Anvisa. Já tirei essas doses da previsão de entrega.

Foram entregues, até o momento, o suficiente para vacinar 20,8% da população (somente uma dose) ou 10,4% da população considerando duas doses. Foram vacinados até o momento 8,2% da população com pelo menos uma dose e 2,4% da população com duas doses.

Estão sendo vacinados, na média dos últimos 7 dias, 0,26% da população, o que equivale a aproximadamente 550 mil brasileiros por dia. Precisamos dobrar esse montante.

31 de março ou 1o de abril

Golpe ou contragolpe?

Se nem sobre a data de um fato histórico conseguimos chegar a um acordo, quanto mais a respeito de sua natureza.

Na minha infância não era golpe nem tampouco contragolpe. Era “Revolução”. A Revolução de 31 de março. Para não brigar, usarei neste artigo o termo “evento”, para não ferir suscetibilidades. Ou para ferir todas.

Tenho algumas lembranças esparsas desse tempo. Lembro, por exemplo, de uma multidão aglomerada em frente à minha escola, na avenida Tiradentes, em São Paulo, acenando para um comboio de carros pretos passando. Eu estava com minha mãe, que também acenava, entre alegre e excitada. Ela me explicou: era o presidente da República passando. Hoje penso que ele certamente estava indo para o aeroporto, pois a avenida Tiradentes faz parte do eixo que liga a zona Norte à zona Sul, onde fica Congonhas. Aquela multidão alegre saudava Emílio Garrastazu Médici, o terceiro general presidente. O regime era popular.

Outra lembrança também está relacionada com a escola. Fazíamos semanalmente a cerimônia de hasteamento da bandeira no pátio da escola. Todas as turmas enfileiradas cantavam, então, o hino nacional. Era obrigação de todos saber a letra de cor, mas havia sempre alguém que destoava, cantando “no teu seio” ao invés do correto “em teu seio”. A diretoria resolveu fazer uma espécie de auditoria, e foi de sala em sala para verificar como cada turma cantava o hino. Lembro que estava na 4a série, pois a minha professora chamava-se Norma, nome que depois achei bem adequado para o momento. A minha turma cantou tão bem que depois fomos em turnê por várias salas demonstrando como se cantava o hino. O regime era patriota.

Mais uma lembrança, mais uma vez relacionada com a escola, como não podia deixar de ser. Estava fazendo um trabalho sobre os presidentes do Brasil. Na época, não havia computador nem muito menos Google. Os trabalhos eram feitos em folha almaço, com base nos livros e enciclopédias. Eu tinha a Delta Larrousse em casa, e copiei as informações sobre os presidentes. Mas faltavam as ilustrações. Na época, as papelarias vendiam figuras históricas autocolantes, justamente para esses trabalhos escolares. Fui até a papelaria perto de casa, e o atendente foi me entregando as figuras dos presidentes: Médici, Costa e Silva, Castelo Branco, Jânio, Juscelino, … Daí eu notei que estava faltando a figura do João Goulart. Fiz notar essa falta ao atendente, e do gesto dele não me esqueço: com o dedo indicador nos lábios, ele me diz para falar baixo, achando graça da minha ingenuidade. Meu trabalho ficou sem a imagem do Jango. O regime era censor.

Mas essas são apenas sensações infantis. O que dizem os que eram adultos na época? Assim como as crianças, os adultos tendem a se lembrar de coisas que marcaram as suas vidas. E pintam essas coisas com as cores de suas preferências políticas e ideológicas. Para tentar fugir dessa armadilha, pesquisei os jornais da época em busca daquilo que os políticos e os formadores de opinião diziam a respeito do evento. Usei, para tanto, o acervo do Estadão, jornal acima de qualquer suspeita em relação às suas convicções democráticas. Topei com coisas bastante interessantes.

Em primeiro lugar, a deposição de Goulart era quase uma unanimidade na classe política da época. A ilustrar este ponto, é interessante ler o manifesto assinado pelo então ex-presidente Juscelino Kubitscheck, em 30/03/1964, cujas credenciais democráticas estão acima de qualquer suspeita. Kubitscheck não era da então raivosa UDN de Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, mas sim do PSD, o que atualmente poderíamos classificar como centro-esquerda, tipo PSDB.

Destaco as seguintes frases: “… o nosso apelo de paz é um apelo para que se restabeleçam em sua pureza total a disciplina e a hierarquia”. “Neste momento, tenho a responsabilidade histórica de apontar onde está a legalidade, que cumpre defender com coragem e sem ódios. […] A legalidade está onde estão a disciplina e a hierarquia”. “A casa brasileira estaria irremediavelmente dividida se as Forças Armadas se dividissem em lealdades distintas e antagônicas”. “Salvemos a paz do Brasil, salvando a única legalidade possível”.

Juscelino estava se referindo ao apoio que João Goulart havia dado a uma sublevação de marinheiros, ocorrida 3 dias antes, por maiores soldos e melhores condições de trabalho. Reinvindicações sindicalistas, portanto. E o então presidente, fiel à sua base de apoio, decidiu apoiar o movimento.

Esta foi a gota d’água de uma série de acontecimentos que levaram grande parte do establishment político e empresarial a temer que o Brasil pudesse estar sendo levado, aos poucos, para a órbita soviética. Estávamos em plena Guerra Fria, e era este o contexto. Mas quero chamar a atenção é para o caráter democrático que este mesmo establishment deu ao evento de 31 de março (ou 1º de abril, já chegaremos lá).

Em todo o país, grupos políticos e empresariais se manifestaram em favor de algum tipo de intervenção, como podemos ver nessas manchetes dos dias 31/03 e 01/04/1964:

A intervenção militar se deu após o discurso de Goulart no Automóvel Clube do RJ para sargentos do exército, no dia 30/03/1964. Nesse discurso, Jango reitera sua posição no affair da Marinha de Guerra, afirmando que a disciplina militar deve ser uma “disciplina consciente, fundada no respeito recíproco entre comandantes e comandados”. Palavras bonitas, mas facilmente interpretadas como um convite à sublevação. Além disso, o discurso é forte não somente contra as elites empresariais, como também contra os “donos de apartamentos em Copacabana, que estão cobrando aluguéis em dólares” e os “comerciantes desonestos”. Enfim, um repto contra a iniciativa privada.

Todas as manchetes saúdam o evento como uma “vitória da democracia” com amplo apoio popular.

A legalidade do movimento está estampada na capa do Estadão de 3 de abril, com a foto da posse de Ranieri Mazzilli, então presidente da Câmara, como presidente da República interino, até a eleição, pelo Congresso, de um nome que pudesse completar o mandato de Goulart, que terminaria no final do ano seguinte. Note que temos a presença do presidente do STF e do presidente do Congresso a dar o ar de legalidade necessário ao ato.

Obviamente, tratou-se do arranjo político possível. A solução do impeachment não pareceu, à época, razoável, dado o precipitar dos acontecimentos. Declarou-se a “vacância” do cargo de presidente, pois João Goulart havia fugido para o Rio Grande do Sul e, daí, para o Uruguai. Com a sede do poder vacante, tudo o que se seguiu foi absolutamente constitucional. O fato de a sede ter se tornado vacante porque o aparelho militar obrigou o presidente a fugir, senão seria preso, é apenas um detalhe que não preocupou, de maneira alguma, os democratas da época.

O editorial do Estadão do dia 02/04/1964 não deixa margem a dúvidas: “a democracia brasileira venceu a ditadura”.

Aliás, a dúvida se esclarece: o movimento teve a sua resolução no dia 01/04/1964. Como ficaria muito feio identificar uma revolução tão bonita com o Dia da Mentira, mentiram sobre a data, colocando-a no dia 31/03/1964. E assim ficou.

Interessante também observar como a imprensa estrangeira repercutiu o evento. Nesse sentido, vale a pena ler o resumo que faz o Estadão em artigo de capa no dia 03/04/1964 (sem assinatura, do que se deduz que se trata de uma espécie de editorial):

Salta aos olhos a dicotomia entre “mundo livre” e “mundo comunista”, que era a regra de então. No “mundo livre”, o evento teria sido recebido como um “movimento destinado a impedir que o comunismo internacional […] conquistasse um ponto-chave da América Latina”. Já nos países comunistas, a cobertura não passa de “uma reedição dos velhos chavões da intervenção norte-americana no País”. Enfim, fica claríssimo o pano de fundo em que se desenrolou o evento.

Mas não foi em todo o “mundo livre” que o evento foi recebido com festa. Gilles Lapouge, correspondente do Estadão em Paris, escreve, em 02/04/1964, um artigo intitulado “Mal informados os europeus sobre a situação no Brasil”.

Vale a pena destacar a seguinte frase: “Ora, os europeus pensam, naturalmente, que o Exército brasileiro é semelhante a todos os exércitos do mundo, ao da França, por exemplo, ávido por golpes de força e de ditadura, enquanto, na verdade, tanto no passado quanto no presente, o Exército brasileiro deu provas de seu senso cívico e de uma escrupulosa adesão à democracia”. Isso é Gilles Lapouge, um verdadeiro porta-voz dos ideais democráticos. Lapouge recomenda, no artigo, que o governo brasileiro realize um trabalho de esclarecimento junto à opinião pública europeia, para convencê-los de que o que se deu não foi mais uma “quartelada latino-americana”. Qualquer semelhança com a imagem do Brasil após o impeachment de Dilma Rousseff não é mera coincidência.

Termino essa viagem no tempo com um editorial do Estadão do dia 04/04/1964, para dirimir de vez a questão da nomenclatura do evento de 01/04/1964:

“Espírito revolucionário”. Portanto, é de revolução que se trata, não golpe ou contragolpe. Não foi uma palavra inventada pelos militares, mas pelo establishment e seus porta-vozes na imprensa. O golpe veio depois, quando os militares resolveram, em consonância com o “espírito revolucionário”, não largarem o osso em 1965.

De quebra, o Estadão defende que o presidente ideal para o mandato tampão seja o marechal Castelo Branco. Outra evidência de que a eleição de um militar (Castelo foi eleito pelo Congresso) estava em consonância com os tempos, não foi uma imposição dos militares.

É sempre recomendável procurar analisar os fatos históricos com os olhos de quem os viveu. É o que procurei fazer nesse artigo. Com base nas evidências aqui apresentadas, parece ser claro que o establishment político e econômico da época, com todo o apoio da classe média, removeu do poder um presidente constitucionalmente legítimo, vendo nisso o suprassumo da democracia. Os militares foram parte ativa do evento, mas estavam longe de ser a única força envolvida. O golpe foi a resposta a uma situação política insustentável: um presidente confuso, que não dava mais as cartas do jogo, que ameaçava jogar o país em um caos institucional ao insuflar o baixo oficialato, com o objetivo de agregá-lo à sua agenda, flertando com uma virada de mesa.

Hmmmm… Um presidente confuso, que não dá mais as cartas do jogo, que ameaça o país com um caos institucional ao insuflar o baixo oficialato, com o objetivo de agregá-lo à sua agenda, flertando com uma virada de mesa. O establishment político e econômico, inquieto. Jango, é você?

Assim é se assim lhe parece

O Ministério da Verdade A Secretaria de Comunicação do governo, está fazendo uma campanha para lavar a reputação do governo Bolsonaro no tocante às vacinas. Trata-se de um contra-ataque à mídia esquerdista que insiste em denegrir tudo o que este governo faz.

Sabemos que a forma mais insidiosa de se contar uma mentira é dizer uma meia-verdade. Veremos que tudo o que a SeCom disse é verdade. Mas veremos também que faltou muita coisa para que TODA a verdade fosse contada. Contar toda a verdade é o que procuraremos fazer nesse artigo.

Para tanto, antes de analisar a história contada pela SeCom, vou abordar dois aspectos que, a meu ver, contribuíram de maneira relevante para a percepção da opinião pública a respeito da postura anti-vacina do governo: a insistência nos conceitos de segurança e não-obrigatoriedade. Logo em seguida, destrincharemos a história contada pela SeCom.

Segurança

O tema da segurança das vacinas esteve presente nos debates desde o início. Ao lado do tema da obrigatoriedade, esse tema da segurança da vacina constitui a própria essência do boicote. Explico.

É somente óbvio ululante que toda e qualquer vacina (assim como todo e qualquer remédio) somente vem a público depois que sua segurança foi avaliada e comprovada pelos órgãos competentes. A insistência nesse ponto óbvio transmite o conceito justo contrário: forma-se a ideia de que se trata de algo muito perigoso, que vai ser analisado com muito cuidado.

Tão tarde quanto dezembro do ano passado, o presidente ainda usa essa ideia para justificar o atraso brasileiro na busca pelas vacinas:

Ficou famosa a declaração do “virar jacaré”, feita em evento no dia 17/12/2020:

Observe como está por traz o conceito de perigo, de coisa que pode causar mal. Quando a Anvisa aprova um medicamento ou uma vacina, não está afirmando que não possa causar reações adversas, mas que essas reações adversas são suportáveis pelo benefício gerado pelo remédio/vacina. A palavra de um presidente da República tem peso e, nesse caso, está sendo usada para disseminar o temor na população.

Esta questão da falta de segurança é o principal motivo pelo qual as campanhas de vacinação têm perdido adesão no mundo inteiro. No dia 17/10/2020, por exemplo, o Ministério da Saúde patrocinou o chamado Dia “D” de mobilização nacional pela vacinação. Em comunicado do ministério, o secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, declarou o seguinte:

A campanha procura ampliar as coberturas vacinais, resgatar o sentimento de segurança dos pais e responsáveis em relação à vacinação dos filhos e desmitificar as fake news.” (grifos meus).

Escusado dizer que, neste comunicado do Ministério, não há qualquer menção à “não obrigatoriedade” da vacinação.

Os grupos anti-vax espalham e acreditam em todo tipo de boato para desacreditar a segurança das vacinas. Não à toa, grande parte dos comentários nas redes refere-se à segurança das vacinas. Fiz um compilado rápido com alguns comentários mais recentes:

Alguns poderão dizer que isso não passa de folclore, que são coisas tão absurdas que a maioria das pessoas não acredita. Não é bem assim. Pesquisa recente feita pelo Instituto Locomotiva em favelas mostra que esse tipo de “informação” tem a sua repercussão e influência.

Mas, alguns dizem, Bolsonaro não tem nada a ver com isso, ele só está preocupado com a segurança da população. Pois então, há uma linha tênue entre preocupação e sabotagem. Coincidentemente, todas essas reservas em relação às vacinas prevalecem nas redes bolsonaristas e são repercutidas por simpatizantes do presidente. Pode até haver exceções, mas que apenas confirmam a regra de fácil comprovação.

O fato é que a insistência na segurança das vacinas emite o sinal inverso. O mantra “precisa provar antes que é segura” é uma obviedade que, repetida ad nauseam, levanta justamente a desconfiança de que as vacinas não são seguras. Tanto é assim que a aprovação da Anvisa pouco fez para convencer as pessoas de que a vacina é segura. No final, o que vale é o “inception” levado a cabo por meses de campanha de desconfiança.

A situação só fez piorar com a insistência na “não-obrigatoriedade” da vacina.

Obrigatoriedade

No dia 06/02/2020, duas semanas antes da confirmação do primeiro caso de Covid-19 em território brasileiro, o governo Bolsonaro promulgou a lei 13.979, com a seguinte redação:

Portanto, está previsto em lei que as autoridades (entende-se quaisquer autoridades no âmbito de sua jurisdição) poderão (não deverão) determinar vacinação compulsória. Trata-se, portanto, de uma faculdade legal.

No dia 31/08/2020, uma admiradora pede a Bolsonaro que não permita “esse negócio de vacina”, por ser muito perigoso. O presidente, então, responde com o que seria, a partir de então, o mote do governo: “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. É a primeira vez que este assunto vem à baila publicamente no Brasil, e o governo Bolsonaro vê aí a chance de, novamente, reforçar a sua agenda ideológica.

No dia seguinte, 01/09/2020, a SeCom publica o seguinte post nas redes sociais:

O que poderia ser apenas uma resposta improvisada no “cercadinho” do Palácio do Planalto, tornou-se política de governo. Cheguei a comentar sobre este post na época:

Sim, é verdade, ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina. Nem por isso o governo deveria usar o seu poder de comunicação para vender a ideia de que se trata de uma opção como outra qualquer. Não é. Trata-se de saúde pública. A sua doença vai me afetar, pois será um a mais ocupando um leito hospitalar e alguém a menos para produzir para o país. O governo não precisa obrigar, mas tem o dever de estimular. Mensagens como essa têm o efeito contrário.

Até entendo que essa mensagem vem em resposta a uma pressão para tornar a vacina obrigatória. Mas, com o objetivo de rechaçar uma indevida intromissão nas liberdades individuais, o governo joga o seu peso institucional na direção inversa, quase uma mensagem de boicote. E isso é grave quando parte da autoridade constituída.”

A partir desse momento, toda a comunicação do Ministério da Saúde a respeito da vacinação contra a Covid-19 vem acompanhada com o mantra da não obrigatoriedade. Por exemplo, no comunicado sobre a intenção de compra da Coronavac, em 20/10/2020, está lá a frase: “o Governo Federal oferecerá a vacinação de forma segura, mas não recomendará sua obrigatoriedade aos gestores locais – respeitando o direito individual de cada brasileiro”. No comunicado do dia seguinte, temos: “Quando qualquer vacina estiver disponível, […] ela será oferecida aos brasileiros por meio do PNI e, no que depender desta Pasta, não será obrigatória”.

Em discurso no dia 06/01/2021, o então ministro Pazuello insiste no mantra:

Isso é interessante, porque o Ministério da Saúde patrocina muitas campanhas de vacinação e, em nenhuma delas, existe a observação da “não obrigatoriedade”. Por exemplo, o cartaz abaixo, fazendo a campanha para a vacinação contra a gripe, traz a frase “tem que vacinar”, uma mensagem oposta ao “a vacina não é obrigatória”. Observe que “tem que vacinar” não significa “a vacinação é obrigatória”, mas traz uma mensagem de urgência adequada ao problema.

A própria SeCom, como podemos ver em um dos posts da thread dedicada à lavagem de reputações, coloca a “não obrigatoriedade” como uma virtude do presidente, não percebendo a contradição em termos que isso significa:

Se a Secretaria de Comunicação, que, em tese, deveria entender de comunicação, não consegue sacar que insistir na “não obrigatoriedade” é equivalente a colocar uma névoa de dúvida em torno das vacinas, então entende-se por que esse governo está perdido nesse ponto. Para deixar a coisa mais clara, talvez o vídeo abaixo ajude a convencer que a insistência na “não obrigatoriedade” equivale, na prática, a negar a vacina:

A história da Secretaria de Comunicação

O foco da thread da Secretaria da Comunicação no Twitter é o cronograma de compra das vacinas. Afinal, independentemente de intenções ou sugestões subliminares, o fato é que o governo trabalhou para trazer vacinas para os brasileiros. Pelo menos, é sobre isso que querem nos convencer. O problema, como veremos, é que uma mistura de ideologia, luta política e incompetência atrasou a aquisição de vacinas pelo governo brasileiro. Vamos fazer um “fact checking” da thread produzida pela SeCOM e verificar se a tese se sustenta.

Esse primeiro tweet é interessante. De fato, mostra uma atenção do presidente ao tema. Mas achei estranho que não tivesse a parte de baixo com as curtidas. Fui verificar, e o tweet completo é o que vai a seguir:

É o então ministro Luiz Henrique Mandetta que faz o anúncio do primeiro teste de uma vacina. É neste ponto que uma mentira se conta através de uma meia-verdade: Mandetta foi escorraçado do governo justamente porque, digamos, sua linha não “casava” com a do presidente. Nesta época, portanto, o governo estava ainda em sua fase “científica”. Colocar Mandetta na thread comprometeria a narrativa. E o Ministério da Verdade a Secretaria da Comunicação está lá justamente para isso: eliminar da história os novos inimigos do povo.

O próximo tweet da thread fala sobre uma pesquisa da Fiocruz:

Trata-se do desenvolvimento de uma vacina brasileira. A iniciativa é bacana e tals, mas é pouco prática do ponto de vista que interessa: disponibilizar vacinas o mais rapidamente possível. Ou alguém acha que um laboratório federal brasileiro poderia competir com as grandes indústrias farmacêuticas globais? O depoimento do coordenador do estudo, Ricardo Gazzinelli, que reproduzo abaixo, é claro a respeito:

Gazzinelli ressalta que, embora as atividades já estejam em andamento, o desenvolvimento de uma vacina leva tempo. Em situações de calamidade pública, como a atual, em que as decisões relacionadas a financiamento são mais céleres, é possível chegar a resultados em torno de dois anos a três anos.” (grifo meus)

Lembrando que, em 03/04/2020, Luiz Henrique Mandetta ainda era o ministro da saúde. Sigamos.

Vamos ao próximo tweet da thread:

Note que o nome do ministro não foi citado. Era Nelson Teich, que mal esquentou a cadeira de ministro da Saúde. O governo Bolsonaro ainda tentava passar a ideia de contar com um ministério técnico. De qualquer modo, não há especificação de quais laboratórios estariam sendo contatados. A repercussão que o presidente deu ao “fato” (que não foi reproduzida pela SeCom pelo óbvio motivo de não relembrar que estamos no 4º ministro da saúde desde o início da pandemia) está reproduzida abaixo:

Fica o desafio de entender que raios significa “assim que o mapeamento for detectado”. Sigamos.

O próximo tweet, agora já com o então “ministro interino” Pazuello (a partir de agora a SeCom não precisa mais esconder o ministro da Saúde), mostra a boa intenção do governo. Mas, como sabemos, de boas intenções o inferno está cheio. Declarações de boas disposições não enchem a barriga e nem tiram vacina do nada.

Em seguida vem dois tweets anunciando a aprovação de estudos clínicos com a vacina produzida pela AstraZeneca:

A frase “colocou o Brasil entre as primeiras nações a buscar a vacina contra o coronavírus” é, para dizer o mínimo, imprecisa. O Brasil não foi “buscar uma vacina”. Na verdade, o Brasil foi “buscado” como campo de provas, por ter, na época do desenvolvimento (início de junho), um dos maiores índices de transmissão do mundo. Na época, o país era o líder global em número de casos e óbitos, a exemplo do que está ocorrendo neste momento. Não à toa, Sinovac, Pfizer e Jansen solicitaram e receberam aprovação para testes no país nos dois meses seguintes.

O próximo tweet trata de mais uma possibilidade distante: o início da fase pré-clínica de uma vacina nacional. Lembrando que, depois desta fase, a candidata à vacina precisa ainda passar pelas fases clínicas 1, 2 e 3. Não à toa, a matéria fala em registro somente em algum momento de 2022. São meritórias essas iniciativas, sem dúvida, mas estão na thread da SeCom só para passar a impressão, para o leitor menos atento ou mais engajado, que o governo estava sim fazendo alguma coisa.

A seguir, temos, finalmente, os primeiros tweets relevantes para o objetivo que nos importa: a obtenção de vacinas rapidamente.

Em 27/06/2020, o governo anuncia a parceria com a AstraZeneca para a compra de vacinas do laboratório e produção de vacinas pela Fiocruz. De toda a thread, este é, de longe, o fato mais relevante. Além de fechar a compra de 100 milhões de doses, prevê a transferência de tecnologia, o que é muito positivo. Mas o interessante é o seguinte trecho do comunicado do Ministério da Saúde:

“O acordo tem duas etapas. Começa com uma encomenda em que o Brasil assume também os riscos da pesquisa. Ou seja, será paga pela tecnologia mesmo não tendo os resultados dos ensaios clínicos finais. Em uma segunda fase, caso a vacina se mostre eficaz e segura, será ampliada a compra.

Nessa fase inicial, de risco assumido, serão 30,4 milhões de doses da vacina, no valor total de US$ 127 milhões, incluídos os custos de transferência da tecnologia e do processo produtivo da Fiocruz, estimados em US$ 30 milhões. Os dois lotes a serem disponibilizados à Fiocruz, de 15,2 milhões de doses cada, deverão ser entregues em dezembro de 2020 e janeiro de 2021.

O governo federal considera que esse risco de pesquisa e produção é necessário devido a urgência pela busca de uma solução efetiva para manutenção da saúde pública e segurança para a retomada do crescimento brasileiro.” (grifos meus)

Guarde essa informação: nessa parceria com a AstraZeneca, o governo brasileiro acha plenamente aceitável comprar um lote de vacinas que sequer foram testadas, quanto mais aprovadas pela Anvisa. Voltaremos a este ponto oportunamente.

A seguir, temos um tweet informando sobre a assinatura de uma Medida Provisória liberando US$1,9 bilhões para a produção e aquisição de vacinas.

Ou seja, no início de agosto o governo Bolsonaro separou R$ 1,9 bilhões do orçamento para comprar e produzir 100 milhões de doses da AstraZeneca. Lembrando sempre que esta vacina, assim como todas as outras até aquele momento, não contava com aprovação da Anvisa.

Neste momento interrompo a análise da thread da SeCom para mostrar algumas cenas de bastidores. Ao mesmo tempo em que a SeCom descreve um governo campeão na busca pelas vacinas assinando um grande acordo com a AstraZeneca, um outro grande laboratório global tentava também fechar um acordo com o governo brasileiro.

Os diretores locais da Pfizer, certamente animados com a perspectiva de garantirem fornecimento para um grande mercado consumidor como o brasileiro, começaram a conversar com o Ministério da Saúde. Testes clínicos na Fase 3 haviam sido aprovados pela Anvisa para a sua vacina em 21/07/2020, e a aprovação do acordo com a AstraZeneca no início de agosto com certeza despertou a óbvia possibilidade de negócio com o governo brasileiro. Afinal, 100 milhões de doses do acordo com o laboratório britânico não davam nem para o início em um país como o Brasil, e certamente o governo estaria atrás de outros acordos.

No entanto, aparentemente, não era bem assim. Soubemos depois (no final de janeiro) que o CEO mundial da Pfizer escreveu uma carta pessoal para o presidente Jair Bolsonaro, que reproduzo a seguir:

No terceiro parágrafo da carta, o CEO global da Pfizer afirma: “Minha equipe no Brasil se reuniu com representantes de seus Ministérios da Saúde e da Economia, bem como com a Embaixada do Brasil nos Estados Unidos. Apresentamos uma proposta ao Ministério da Saúde do Brasil para fornecer nossa potencial vacina […], mas até o momento não recebemos uma resposta”. (grifo meu)

Trabalho em uma multinacional que é uma fração do tamanho da Pfizer. Em qualquer multinacional, e quanto maior mais essa regra é verdadeira, leva-se para o CEO somente os problemas que não têm realmente solução. Afinal, estamos ali para resolver problemas, não para levar problemas. Para que o presidente da subsidiária brasileira tivesse reconhecido seu fracasso diante do CEO global nas tratativas com o governo brasileiro, é que deve ter tentado MUITO, sem sucesso.

Um ponto da carta chamou-me a atenção: a ênfase no negócio fechado com o governo americano, então ainda liderado por Donald Trump. Observe que o CEO cita acordos com vários países, mas cita nominalmente somente o presidente dos EUA. O objetivo parece-me claro: Bolsonaro venerava Donald Trump, e seu aval serviria para mitigar eventuais resistências. Afinal, se Trump aprovou é que deve ser bom.

Ledo engano. A carta, assim como as tentativas anteriores, ficou sem resposta. Difícil de entender por quê. Quando a carta veio à tona, o governo brasileiro tentou explicar, em nota oficial, porque não fechou acordo com a Pfizer. Os motivos seriam os seguintes:

  • Seriam poucas doses disponíveis (2 milhões de doses no primeiro trimestre)
  • Cláusulas leoninas, como ativos brasileiros no exterior como parte do pagamento e foro em Nova York para eventuais disputas
  • Isenção do laboratório em relação a quaisquer efeitos colaterais provocados pela vacina
  • Dificuldade de logística (a solução da caixa térmica somente seria apresentada em novembro, segundo o Ministério)

Com relação às doses disponíveis, a AstraZeneca, até o momento (final do 1o trimestre), entregou 5 milhões de doses no Brasil, não muito diferente das supostas duas milhões prometidas pela Pfizer. Digo supostas porque no Reino Unido, terra da AstraZeneca, a Pfizer entregou 1,2 milhões de doses já em 2020, de um contrato total de 40 milhões de doses. Fica difícil de acreditar que teriam entregue apenas duas milhões de doses para o Brasil em todo o 1º trimestre.

Com relação às cláusulas leoninas, é fácil entender por que uma multinacional exige garantias de pagamento de um governo como o brasileiro. Aliás, essas cláusulas devem existir em todos os contratos com governos de países, digamos, bananeiros.

Com relação à cláusula de isenção de responsabilidade, difícil acreditar que essa mesma cláusula não constasse dos contratos assinados com outros países. Se a agência reguladora de um país certificou a segurança da vacina, essa cláusula serve para proteger a empresa de processos relacionados a efeitos de longo prazo que dificilmente podem ser correlacionados com a vacina. Afinal, processos desse tipo podem quebrar uma empresa. Ademais, a empresa tinha a faca e o queijo na mão, era assinar com a cláusula ou ficar sem a vacina.

Aliás, não ficou claro se essas cláusulas não constam mais do contrato que foi assinado pelo Ministério da Saúde para o fornecimento de 70 milhões de doses do laboratório norte-americano. Na nota em que o ministério informa sobra a conclusão das negociações, não há menção a essas cláusulas, mas duvido muito que a empresa as tenha retirado. A não menção a algo tão fundamental, por parte do Ministério da Saúde, parece-me ser a confirmação dessa tese.

Por fim, as dificuldades de logística não me parecem suficientes para não fechar um contrato de fornecimento. Estas vacinas poderiam ser usadas nas grandes metrópoles, onde o armazenamento mais complicado poderia ser realizado, enquanto as vacinas da AstraZeneca seriam distribuídas em lugares onde o armazenamento seria menos complexo.

Enfim, a história não contada pelo thread da SeCom escancara a incompetência ou a desídia do governo na contratação de vacinas. Não custa lembrar que a primeira vacina a ser aplicada no mundo foi da Pfizer:

Voltemos à thread da Secretaria de Comunicação. O próximo tweet fala dos testes que estão sendo levados a cabo no Brasil (onde lê-se “junho de 2020” leia-se “agosto de 2020”):

Como se a mera autorização para conduzir testes no Brasil significasse algum esforço do governo para adquirir vacinas, o que já constatamos estar longe da realidade.

Os próximos dois tweets abordam a adesão do Brasil ao consórcio Covax:

Em primeiro lugar, um esclarecimento: a iniciativa Covax é um dos quatro pilares de uma iniciativa mais ampla chamada ACT-Accelerator. Esta iniciativa está no âmbito da OMS e foi lançada em um evento em abril, cujos anfitriões foram o presidente da OMS, o presidente da França, Emmanuel Macron e a Fundação Bill & Melinda Gates. Não deixa de ser curioso que o governo Bolsonaro tenha aderido a um grupo que transpira globalismo pelos poros. Não contaram ainda para os fãs do Olavo de Carvalho o que o governo Bolsonaro anda fazendo…

Em segundo lugar, não houve “reconhecimento à postura criteriosa e comprometida do Brasil” coisa nenhuma. Como podemos ver na tabela abaixo, com os membros do conselho do ACT-accelerator, o Brasil foi convidado por ser um “market shaper”, ou seja, faz parte de um grupo de países grandes que fazem diferença em suas regiões. Pelo seu tamanho, o Brasil seria convidado qualquer que fosse o governo.

Por fim, a adesão ao Covax e o desembolso de R$ 2,5 bilhões em vacinas ainda não aprovadas pela Anvisa mostram mais uma vez que o governo Bolsonaro não hesita em comprar vacinas sem a devida aprovação (vacinas que nem existiam à época!) quando avalia que esta é a melhor decisão. A adesão à Covax é como aquelas vaquinhas de escritório para comprar presente: não dá para não participar. Praticamente todos os países do mundo estão participando. Pelo menos, foi útil para a narrativa do comprometimento do governo com o esforço global de vacinação no mundo.

O próximo tweet da thread já vimos na seção sobre “não obrigatoriedade”:

Mas é o próximo tweet que nos interessa, não pelo que ele diz, mas, como sempre, pelo que não diz:

A notícia completa está aqui:

A afirmação de que esta foi a notícia que criou a narrativa do governo anti-vacina é um acinte à inteligência do leitor. Em primeiro lugar porque já havia todo um precedente, descrito no início deste artigo, de mal disfarçada prevenção contra a vacina, traduzida na insistência sobre a segurança e a não obrigatoriedade das vacinas.

Mas, o principal está na data da notícia: 21/10/2020, dia em que o governo Bolsonaro esnobou a vacina do seu arqui-rival, João Doria:

Vamos voltar um pouco no tempo, mais precisamente um dia. No dia 20/10/2020, o ministro da Saúde havia se reunido com os 27 governadores dos estados e DF (note a presença maciça, não há como dizer que foi algo improvisado). Dessa reunião resultou uma nota oficial do ministério. Destaquei os trechos mais importantes para entender o que foi escrito.

Em primeiro lugar, tratava-se de um protocolo de intenção para possível aquisição. Por que isso? Porque, obviamente, qualquer aquisição depende de a Anvisa assegurar a segurança e a eficácia da vacina. É o que está escrito neste comunicado: “é importante ressaltar que elas devem ser liberadas pela Anvisa e ter eficácia e segurança garantida”. Note o “elas” na frase, referindo-se às vacinas do Butantan e também da AstraZeneca. As duas vacinas são colocadas lado a lado – ambas estão em Fase 3, ambas precisam de aprovação, ambas são somadas para se chegar ao total de vacinas disponíveis. A única diferença entre essas duas vacinas (e que não está escrito nesse comunicado) é que o Governo Federal, como vimos, colocou dinheiro no desenvolvimento da vacina da AstraZeneca, enquanto foi o governo de São Paulo que colocou dinheiro no desenvolvimento da vacina da Sinovac. De resto, o paralelo entre as duas vacinas é o que salta aos olhos neste comunicado. Como cereja do bolo, temos a frase “não descarta novas aquisições”, deixando claro, para quem ainda tinha alguma dúvida, de que de aquisição é que se trata, sujeito, claro, à aprovação da Anvisa.

Depois do piti do presidente, o Ministério da Saúde soltou um “esclarecimento”, que reproduzo abaixo:

O contorcionismo verbal é evidente. A “nota de esclarecimento” somente repete o que foi afirmado na nota original: que as vacinas do Butantan serão adquiridas se forem aprovadas pela Anvisa. Esta é a essência do tal “protocolo de intenções”. Ninguém entendeu que a pasta tenha “aprovado” a vacina. Aliás, este expediente é manjado: atribuir ao seu interlocutor algo que ele não falou e negar veementemente.

Dizer que “não houve compromisso […] no sentido de aquisição de vacinas”, mas apenas um “protocolo de intenção” de aquisição é apenas uma malandragem. A nota original, como vimos, é clara sobre a intenção de aquisição, desde que tenha todas as aprovações sanitárias necessárias. Trocar a palavra “intenção” por “compromisso” é somente mais um subterfúgio para confundir algo simples: o ministério da Saúde não somente agregou as vacinas da Sinovac ao montante prometido de vacinas, como comemorou o feito em sua nota original. A aprovação pela Anvisa (e, portanto, a efetiva aquisição das vacinas) é algo que vale tanto para a Sinovac quanto para a AstraZeneca.

O único ponto que fugiu ao estilo somebodylove que marca essa nota de esclarecimento é a “não intenção de comprar vacinas chinesas”. Aliás, é exatamente isso que está escrito no tweet do presidente: “minha decisão é de não adquirir a referida vacina”. Como vimos, menos de três meses depois as vacinas chinesas foram as primeiras a serem distribuídas aos brasileiros.

Obviamente, a thread elaborada pelo Ministério da Verdade pela SeCom não faz menção a essa história. Prefere acusar a imprensa de manipular as falas presidenciais, como se todo esse affair da “vacina chinesa” não tivesse influenciado a opinião pública. Como se essa história simplesmente não existisse.

Aliás, é interessante como o governo, através da SeCom, age como se nada disso tivesse acontecido. No último dia 23/03, a SeCom publicou o seguinte tweet:

Nem vou entrar no mérito da comparação em números absolutos, e não em proporção de sua população. O ponto aqui é outro: dessas 14,12 milhões de doses administradas até o dia 22/03, nada menos do que 84% eram da “vacina chinesa do Doria”. Se fosse depender somente dos acordos fechados pelo governo “pró-vacina”, o país teria administrado algo como 2,5 milhões de doses, o que o colocaria lá na rabeira desse ranking, bem atrás de outros países muito menos populosos.

Concluindo

A postura anti-vacina do governo Bolsonaro foi construída de modo quase subliminar, através da ênfase no binômio segurança e não-obrigatoriedade. Segurança é um aspecto obviamente importante e não se trata de minimizá-la. Mas a insistência em chamar a atenção para este ponto, aliada à ênfase com relação à não-obrigatoriedade (conceito prima-irmã da desconfiança com relação à segurança), pavimentou a percepção da opinião pública. É excesso de polêmica para algo tão óbvio quanto uma vacina.

Para piorar, o governo Bolsonaro, seja porque tenha sido levado pelos seus vieses ideológicos, seja por pura incompetência, claramente ficou para trás na corrida pelas vacinas. Apostou todas as fichas em um acordo com a AstraZeneca e desprezou outras oportunidades que surgiram ao longo do caminho. Além disso, como vimos, entrou em uma querela política na qual não tinha nada a ganhar, a não ser agradar o seu eleitorado mais fiel.

A SeCom tenta reescrever a história, e nos conta as glórias de um governo campeão da vacinação. Assim é se assim lhe parece.

Stuhlberger me representa

Luís Stuhlberger, gestor do fundo Verde, é um dos mais bem sucedidos gestores de recursos do Brasil. Se tem alguém que traduz o sentimento da tal “Faria Lima”, é ele. Esse trecho de sua entrevista destacado abaixo resume o que pensam os “farialimers” que não têm compromisso ideológico com nenhum dos dois lados, que desejam apenas ter um bom ambiente de negócios: tanto faz Lula ou Bolsonaro, ambos são igualmente ruins.

Stuhlberger me representa.

As críticas de Guedes à Instituição Fiscal Independente

A IFI, Instituição Fiscal Independente, é um instituto ligado ao Senado Federal. Foi criada em março de 2016 e instalada em novembro do mesmo ano, como resposta ao trauma causado pelas “pedaladas fiscais” do governo Dilma.

Quem acompanhava de perto as contas do governo na época sabia que algo não estava se encaixando. Mansueto Almeida, por exemplo, mantinha um blog em que apontava as incongruências e bombas-relógio que estavam em gestação nas contas públicas da época. Com o objetivo de não depender da boa vontade de especialistas eventuais, o Senado, seguindo as melhores práticas internacionais, estabeleceu a IFI, que conta com diretores com mandatos fixos. O economista Felipe Salto foi escolhido para ser o primeiro diretor-executivo em um mandato de 6 anos, em função de seu extenso currículo em finanças públicas.

Ontem, o ministro da economia, Paulo Guedes, ao ser perguntado sobre uma determinada previsão da IFI, atacou a reputação de Felipe Salto.

Vou destacar aqui três afirmações:

  1. “A IFI disse que nós iríamos furar o teto de gastos no primeiro ano”
  2. “[A IFI] disse que nós iríamos furar o teto no segundo ano”
  3. “a IFI disse que a dívida iria chegar a 100% do PIB”.

Segundo Guedes, as três previsões se comprovaram furadas. “Previsões muito fracas” e “um economista que tem errado dez em cada dez”, foram as palavras usadas.

Fui verificar se, de fato, a IFI, sob a liderança de Felipe Salto, havia feito essas previsões. Para tanto, pesquisei os Relatórios de Acompanhamento Fiscal, produzidos mensalmente pelo Instituto. Já aviso que são trabalhos densos, muito bem elaborados.

A primeira menção ao teto de gastos durante o governo Bolsonaro ocorre no relatório de maio de 2019. Podemos ler o resumo a seguir:

Podemos observar que não há projeção de rompimento do teto de gastos até 2022. Portanto, a IFI não “previu” que o teto seria furado “no primeiro ano” e nem “no segundo ano”. Pelo menos, não nesse primeiro relatório.

O trecho a seguir, do mesmo relatório, mostra um pouco como é a metodologia de trabalho de qualquer economista que faz previsões:

Observe como o economista desenha um cenário e vai adaptando-o na medida em que novas informações vão sendo conhecidas. Existe um mal-entendido sobre o trabalho do economista: ele não é pago para “acertar” o cenário, não tem uma “bola de cristal” para isso. O economista apenas aponta a direção para onde o barco está indo. Se, no meio do caminho, o barco muda de direção, ele refaz as suas premissas. Paulo Guedes sabe disso, mas, acuado, atira no mensageiro. Sigamos.

No relatório de setembro/19, a IFI novamente não prevê furo do teto:

No relatório de novembro, a IFI volta a prever o “furo” do teto de gastos para 2021 (não 2019 e nem 2020). Trata-se do “cenário-base”. No cenário otimista, o teto seria rompido somente em 2024 e, no pessimista, também em 2021. Como podemos observar no trecho abaixo do mesmo relatório, não havia risco de descumprimento do teto de gastos em 2020.

Portanto, podemos observar que as duas primeiras afirmações de Guedes não tem sustentação nos fatos. Vejamos a terceira.

Com o surgimento da crise provocada pela pandemia, não fazia mais sentido falar em teto de gastos em 2020, pois os gastos foram muito acima do teto em função do auxílio emergencial. E quanto à dívida? A primeira menção da IFI ao tamanho da dívida foi no relatório de abril/2020, ainda com muita incerteza:

Note que estamos longe dos 100% do Paulo Guedes neste momento. Mas, como disse, havia muita incerteza, e esse número seria mudado ao longo do tempo. No relatório de maio, esta previsão havia subido para 86,6% do PIB, em junho uma grande revisão para 96,1% do PIB.

Esta grande revisão se deu porque houve uma grande revisão para baixo do PIB naquele momento (maio), no olho do furacão da crise. Esta previsão somente seria mudada em novembro, com os dados de outubro, revisando o PIB para cima:

Note que essa revisão se deu porque o IFI incorporou na receita impostos que haviam sido diferidos entre abril e junho. Conservadoramente, o Instituto não havia considerado esses impostos como receitas de 2020.

A relação dívida/PIB seria novamente revista no relatório de janeiro deste ano, de 93,1% para 90,1% do PIB:

Esta revisão se deu por três fatores: uma revisão de metodologia do IBGE, que elevou o PIB nominal de 2018 e, portanto, o restante da série, um queda menor do PIB real e uma inflação maior do que a prevista inicialmente, o que aumenta o PIB nominal, diminuindo a relação dívida/PIB.

E chegamos ao fim das previsões, a relação dívida/PIB do Brasil fechou 2020 por volta de 90%. Uma previsão que variou de 84,9% a 96,1% durante um ano estupidamente conturbado como o de 2020. Em nenhum momento a previsão atingiu os “100%” do Guedes.

Paulo Guedes vem se notabilizando por prometer muito e entregar pouco, muito pouco. Penso que não tem autoridade nem moral para criticar o trabalho de uma instituição séria como a IFI.

A importância do disclaimer de conflito de interesses

Faz parte do trabalho no mercado financeiro a leitura de muitos relatórios. Uma regra básica de qualquer relatório é o “esclarecimento de conflito de interesses”, ou seja, se o autor do relatório tem algum interesse particular na empresa que está analisando. Esse interesse pode ser a detenção de ações da empresa analisada no relatório ou um parente que trabalhe naquela empresa ou, o que é mais comum, se a casa de análise onde o analista trabalha tem algum contrato firmado com a empresa analisada. Neste último caso, inclusive, é prática comum a casa de análise deixar de produzir relatórios sobre aquela empresa específica.

Todos esses cuidados têm uma razão óbvia: como confiar na análise de alguém “conflitado”, como se diz? Podem ser até análises isentas, mas sempre restará a dúvida sobre a sua lisura, dado o conflito de interesses presente.

Esse ponto me veio à mente quando me deparei com artigo no Estadão de hoje do advogado Sérgio Eduardo Mendonça de Alvarenga.

Antes de ler qualquer artigo, a primeira coisa que faço é checar as credenciais de quem escreveu. Não se trata de fazer críticas ad hominem, gosto de ler contra-argumentos que desafiem minhas convicções, independentemente de quem escreve. Mas as credenciais fornecem dois elementos importantes para enquadrar o artigo: 1) o grau de conhecimento e especialização do autor do artigo e 2) seus potenciais conflitos de interesse.

Ao se qualificar tão somente como “advogado”, o Dr. Sérgio Alvarenga qualifica-se como alguém 1) especialista e 2) isento. Fui então ler o artigo, para daí tentar extrair algo que pudesse me fazer mudar de ideia a respeito das duas recém estapafúrdias decisões do STF: a mudança de foro e a suspeição de Moro. O que li foram afirmações a priori, interpretações particulares do direito, colocadas como verdades absolutas. E o que é pior, longe do alcance dos “leigos”, que não estariam aptos a entender as filigranas da ciência jurídica. Como se sob a capa do palavrório técnico dos operadores do direito não se escondesse uma realidade plenamente inteligível para quem é alfabetizado.

Depois de ler o artigo, fui atrás de saber quem era o “advogado”, autor do repto anti-Moro. Sérgio Alvarenga é genro e sócio de Mariz de Oliveira, do escritório de mesmo nome, que extrai seu sustento explorando competentemente as chicanas de nosso sistema judicial, com seus infinitos recursos à disposição de quem pode pagar caras bancas de advocacia. Além disso, foi (não sei se ainda é), advogado de Roberto Teixeira da Costa, compadre de Lula e seu “assessor” no rolo do sítio de Atibaia.

Advogar para Lula, para Teixeira da Costa ou para qualquer outro endinheirado não é crime, pelo contrário. Trata-se de uma profissão como outra qualquer. Afinal, todos têm direito ao devido processo legal com a ajuda de um advogado. O que não dá é escrever um artigo no jornal sem fazer o disclaimer de seus eventuais conflitos de interesse no caso, levando o leitor a achar que está diante de uma opinião isenta.

Lame Duck

Seguindo o conselho de Lula e de outras raposas que desfilaram sua sabedoria política nos últimos dias, Bolsonaro se mexeu: criou um gabinete de crise, integrando legislativo e governadores.

Pena que foi tarde demais. Um movimento que teria sido um marco importante na luta contra a pandemia se fosse feito um ano atrás, hoje significa apenas que o presidente virou um “lame duck” faltando ainda 18 meses para o fim de seu governo.

Como sentar-se à mesma mesa com governadores que são tratados como conspiradores que só pensam em apeá-lo do poder? Não à toa, somente sete governadores se fizeram representar no tal gabinete. Há um ano, seria possível alguma coordenação nacional. Hoje, não mais.

Na tarde do mesmo dia da instalação do tal gabinete, o presidente da Câmara, Arthur Lira, alinhado ao presidente e um dos sustentáculos do gabinete de crise, deu o seu recado: “temos remédios fatais” para combater a pandemia. E não era à cloroquina que ele estava se referindo.

Enfim, Bolsonaro está colhendo o que plantou, no que vem se mostrando o seu maior erro político. Tal qual Chamberlain, acreditou na boa intenção do vírus e tentou negociar, com o objetivo de manter a economia funcionando. O vírus, no entanto, seguiu a sua natureza, e atropelou o país com sua blitzkrieg.

Parafraseando Churchill, entre a paralisação da economia e o vírus, Bolsonaro escolheu o vírus. E vai ter a paralisação da economia.

Todo dia é um 3 x 2

Hoje acordei sem vontade de ler o jornal. Ocorreu-me que é a exata mesma sensação que tenho quando meu time perde uma final de campeonato. No dia seguinte, quero passar longe da seção de esportes. Ler para quê? Para reviver os detalhes de uma experiência dolorosa? Para saber dos detalhes de uma comemoração que deveria ser a minha? Não, obrigado.

A comparação do julgamento de ontem com os 3 x 2 da derrota para a Itália na Cooa de 82 foi a primeira que me veio à mente para traduzir o que estava sentindo no momento. Hoje, depois de uma noite de sono, consigo elaborar um pouco mais.

O ser humano é um misto de razão e emoção. Por mais que tentemos separar essas duas dimensões, elas estão imbricadas de tal maneira que, mesmo quando achamos que nossos julgamentos e decisões foram absolutamente racionais, as emoções estão lá, escondidas, atuando.

Dei-me conta dessa verdade tão simples analisando minhas sensações ontem e hoje. Não é racional. Ou melhor, não é só racional. A paixão por um time não tem explicação racional. Do mesmo modo as paixões políticas, por mais que tentemos dar uma roupagem racional às nossas crenças. Se fosse algo absolutamente racional, e se as emoções não tivessem papel nenhum em nossas escolhas políticas, chegaríamos todos, racionalmente, a uma só conclusão: a melhor. Mas aí não seria o planeta Terra, mas Vulcano, o planeta de Mr. Spock.

Mr. Spock é tripulante da USS Enterprise, na famosa série e filmes da franquia Star Treck. Os habitantes de Vulcano não têm emoções, só razão. Nesse mundo, o bem e o mal, o certo e o errado são definidos de maneira rigorosa, sem possibilidade de erro, a não ser a limitação própria da mente humana, quer dizer, vulcânica, que não consegue ver todos os aspectos de uma determinada questão. Em nosso planeta não é assim. As definições de bem e mal, certo e errado, estão sempre envoltas em uma capa espessa de emoções. Ou, para fazer um paralelo melhor com a psique humana, o nosso invólucro racional esconde um núcleo quente de emoções. Procuramos o tempo inteiro racionalizar as nossas escolhas, que já foram feitas a priori pelo nosso núcleo emocional.

Se para a escolha do time isso parece absolutamente claro (afinal, ninguém tem a pretensão de dizer que o seu time é o “certo”, a não ser o Santos, que está acima de qualquer discussão possível), para as escolhas políticas o papel das emoções é muitas vezes subestimado. As nossas escolhas nos parecem tão claras – racionalmente falando – que não nos damos conta que estamos, na verdade, torcendo para um time.

Bem, todo esse longo preâmbulo serve para colocar o problema: existe juiz absolutamente imparcial? A deusa grega Têmis aparece vendada em frente ao STF, simbolizando a imparcialidade que a justiça deve perseguir, resultando na balança equilibrada que a deusa carrega em uma de suas mãos. O problema, como víamos, é que a parcialidade não reside nos olhos, mas no coração: são as emoções que nos levam a fazer pender a balança para um dos lados, mesmo sem percebermos. Quem assistiu ao julgamento de ontem, me diz se os impropérios de Gilmar Mendes têm algo a ver com defesa racional da justiça. Gilmar foi a encarnação do juiz dominado por suas emoções, a própria definição de parcialidade.

Moro tem uma certa aura de Mr. Spock. Seus interrogatórios, principalmente o de Lula, me fizeram lembrar alguns episódios de Star Treck, em que o vulcano Mr. Spock paira soberano sobre a balbúrdia causada pelas emoções humanas. Mas Moro é humano, e certamente tem suas preferências políticas. Essas preferências, no entanto, deveriam permanecer ocultas, justamente para evitar a associação com uma decisão que deveria ser racional. Ao aceitar um cargo no ministério de Bolsonaro, Moro fez o movimento que expôs o seu núcleo emotivo de anti-petismo. Ainda que a sua suspeição provavelmente seria declarada com base nas gravações rackeadas, o movimento de 2018 ajudou a compor o quadro.

Mas agora vem o ponto principal: o fato de qualquer juiz, por ser humano, ter as suas paixões, torna inútil qualquer tentativa de se fazer justiça? Claro que a resposta é não. É preciso, para cada caso, procurar um juiz que não esteja emocional ou racionalmente ligado às duas partes em litígio. Mas, em se tratando de um grande líder político como Lula, seria possível encontrar um juiz não envolvido emocionalmente? Talvez um juiz estrangeiro, mas, mesmo assim, a se julgar por várias manifestações de personagens internacionais a favor de Lula, a escolha deveria ser cuidadosa.

A busca pela imparcialidade absoluta torna impossível o julgamento de grandes líderes políticos. Os juízes, em tese, julgam de acordo com as provas produzidas e reunidas nos autos do processo. Mas vimos nesse processo do Lula que não há provas absolutas: ao mesmo tempo que o triplex me parece uma prova irrefutável de sua ligação com a roubalheira da Petrobras, para outros tratou-se de um subterfúgio usado por um juiz parcial. Não é que cada parte tenha uma única ideia da verdade mas a esconda debaixo de suas paixões políticas. É que as paixões políticas levam cada uma das partes a crer que está sendo muito racional ao acolher ou rechaçar as mesmas provas.

O mesmo ocorre com as mensagens hackeadas. A depender do time em que se esteja, a simpatia ou antipatia que causa a figura de Moro ou Lula, as mensagens dizem tudo ou não significam absolutamente nada. Onde está a verdade?Acordei hoje de manhã sem vontade de ler os jornais. E isso me despertou para a possibilidade de estar agindo mais como um torcedor de time de futebol, o time do Moro, do que como um ser humano que se orgulha de basear suas decisões na racionalidade.

O Brasil continua. A Lava-Jato existiu, e isso mudou o Brasil a seu jeito. Desistir do Brasil é permitir que o time adversário ganhe de WO. Perdemos a final do campeonato, mas há várias temporadas adiante. Olha eu torcendo de novo…