Em minha época de adolescente havia um jogo (ainda existe) chamado Combate. Neste jogo, dois exércitos se enfrentavam em um tabuleiro. O objetivo era libertar um prisioneiro de guerra em poder do adversário, e cada exército contava com militares das mais diversas patentes, desde o soldado raso (que valia 2 pontos) até o general (que valia 10 pontos). O general seria imbatível, não fosse a existência do agente secreto, que valia apenas 1 ponto, mas tinha o poder de matar o general. Ou seja, era a peça mais fraca do jogo, podia ser morto por qualquer peça, mas tinha o poder de matar a peça mais poderosa do tabuleiro.
O ser humano é o animal mais poderoso do planeta. De longe. Mas existe um ser vivo que é capaz de matar o ser humano. Este ser vivo é o mais simples de todos, a ponto de existirem dúvidas sinceras se este ser é vivo mesmo. No entanto, a exemplo do agente secreto, é o único capaz de matar o ser mais poderoso do planeta.
Claro, cães ferozes, cobras, leões e outros animais selvagens também podem matar o ser humano. Mas, convenhamos, os eventos em que esses animais são responsáveis por mortes de seres humanos são raros quando comparados às doenças mortais causadas por vírus. Em anos normais, o Brasil tem cerca de 80 mil mortes causadas por pneumonia (a maior parte causada por vírus), dez mil pessoas morrem por HIV por ano e assim por diante.
Um vírus não tem existência própria. Como não possuem célula, os vírus só conseguem se reproduzir dentro da célula de seu hospedeiro. São poucas as drogas que conseguem combater os vírus, sendo que, na maioria das vezes, o repouso é o único remédio enquanto o próprio corpo produz anticorpos para combater o invasor.
Quem é pai ou mãe de criança pequena, certamente já ouviu o diagnóstico do mal que aflige o seu pimpolho, normalmente dito pelo pediatra com um certo ar blazé: “é uma virose”. Como assim, uma virose? Qual o nome da doença? Como podemos tratar? “Não minha senhora, não meu senhor, não tem nome a doença, é só virose. E não tem tratamento, vai tomando um remedinho pra febre até melhorar”. E os pais saem do consultório com a impressão de que faltou alguma coisa. Não faltou nada. É só uma virose.
Os vírus são de tal maneira presentes na vida da humanidade, que tomamos emprestado suas características para nomear fenômenos humanos. Por exemplo, a figura de linguagem para transmitir a ideia de algo ruim que se espalha é a do vírus, como podemos observar na frase a seguir:
Outro exemplo são os vírus de computador. Sendo apenas softwares que se espalham através das redes, os vírus de computador recebem esse nome por imitar o comportamento dos vírus reais. A sorte é que temos vacinas que, em tese, funcionam e nos protegem desses softwares maliciosos.
Mas há quem pense o contrário. No primeiro filme da trilogia Matrix, o Agente Smith (um software de Matrix) faz um discurso para Morpheus, em que é a humanidade que faz o papel de vírus:
“Quero compartilhar uma revelação que tive durante meu tempo aqui. Ela veio quando tentei classificar a sua espécie. Eu concluí que vocês não são realmente mamíferos. Todo mamífero deste planeta desenvolve instintivamente um equilíbrio natural com o meio-ambiente, mas vocês humanos, não. Vocês se mudam para uma área e se multiplicam até que todo recurso natural seja consumido. A única forma de sobreviver é mudar-se para outra área. Há um outro organismo neste planeta que segue o mesmo padrão. Você sabe qual é? Um vírus. Seres humanos são uma doença; um câncer deste planeta. Vocês são a praga, e nós somos a cura”.
Que um software chame um ser humano de vírus mostra como o conceito pode ser largo.
Mas nem sempre os vírus foram retratados como inimigos da humanidade. Em Guerra dos Mundos, os alienígenas são vencidos não pelas Forças Armadas humanas, mas pelos prosaicos vírus espalhados no ar de nosso planeta. Nós já nos acostumamos e temos defesas contra os vírus. Os alienígenas, não. Os vírus, novamente, vencem os mais fortes dentre os mais fortes.
Os vírus parecem querer nos lembrar que somos limitados. Com todo o poderio de nossa tecnologia, ainda temos que lançar mão do prosaico distanciamento social, uma ferramenta, convenhamos, primitiva.
Ao forçar o distanciamento social, o vírus quebra a coluna vertebral da sociedade humana. O ser humano é, em essência, um ser social. Grande parte da atividade econômica está baseada na convivência social. Ao isolar os seres humanos de outros seres humanos, o vírus muda a dinâmica da sociedade, com efeitos ainda desconhecidos. É como se o vírus tivesse a capacidade de infectar a sociedade humana, não somente os seres humanos.
Tudo voltará ao normal depois que o vírus estiver sob controle. Tudo voltará ao normal? Talvez sim. Mas as marcas da sua passagem ficarão por aqui durante muito tempo. Desde mudanças de hábitos (hello home office!) até implicações para o cenário político dos diversos países atingidos.
O vírus, o mais simples ser vivente (vivente?) sobre a face da Terra, está aí para nos lembrar das nossas limitações. Humilhando a nossa soberba, o vírus coloca a perspectiva da nossa finitude. Somos gigantes de pés de barro.