Casa sobre areia

Gosto de pensar em crescimento econômico como criação de valor. O PIB de cada país é calculado com base no valor agregado de cada atividade: depois de descontados todos os custos de produção daquele bem ou serviço, o que sobra é o valor agregado, o Produto Interno Bruto.

O PIB é calculado somando-se o valor, em reais, dos produtos e serviços finais, comprados pelos consumidores. O próprio IBGE, aqui, explica de maneira didática como é calculado o PIB. O exemplo dado pelo Instituto é o do pão: se o trigo foi vendido a R$ 100, a farinha de trigo a R$ 200 e o pão a R$ 300, o PIB terá sido de R$ 300, que é o valor pago pelo consumidor final.

No entanto, como disse acima, gosto de pensar no PIB como valor agregado em cada uma dessas etapas. Vamos imaginar, apenas para fins didáticos, que o produtor de trigo não tenha tido custo na sua produção. Seu lucro foi, então, de R$ 100. O produtor de farinha de trigo comprou o trigo a R$ 100 e vendeu a farinha a R$ 200, tendo também um lucro de R$ 100. E o produtor de pão comprou a farinha de trigo a R$ 200 e vendeu o pão a R$ 300, tendo lucro de R$ 100. A soma dos lucros em cada passo (do produtor de trigo, do produtor da farinha e do produtor de pão, R$ 100 em cada etapa) perfazem o total do PIB.

Observe que este “valor agregado” em cada etapa está dividido entre lucro para o capitalista e salários. Funciona como se os empregados de cada empresa fossem, eles mesmos, capitalistas de si mesmos, obtendo “lucro” do aluguel de sua mão de obra. Chamamos esse “lucro” de salário. Assim, esses R$ 300 obtidos na venda do pão não são exatamente a soma dos lucros dos capitalistas ao longo do processo. Inclui também os salários pagos à mão-de-obra utilizada em cada etapa.

Ah, e o PIB inclui também os impostos. Afinal, é preciso que todo esse processo remunere também o nosso “sócio oculto”.

Então, como estava dizendo, o crescimento econômico, o aumento do PIB, é, no final do dia, um processo de agregação de valor. Pode não parecer para você, que é um consumidor insaciável, mas a coisa mais difícil que existe no mundo é tirar dinheiro do bolso de alguém. Este alguém só vai tirar dinheiro do bolso para comprar algo que lhe agregue valor. Este contínuo esforço para agregar valor ao longo de todo o processo produtivo até chegar no consumidor final é que produz o crescimento econômico. Por definição.

Este conceito é de extrema importância. Muitas vezes nos envolvemos em debates sobre o papel do Estado na economia, sobre como gastos do governo poderiam estimular o crescimento econômico e esquecemos esta verdade básica: não existe crescimento econômico permanente sem agregação de valor.

Hoje, o Estadão traz uma entrevista com o colunista do Financial Times, Martin Sandbu, que defende a ideia (e não está sozinho) de um novo consenso se formando, e que se destina a substituir o chamado “Consenso de Washington”. Neste “novo consenso”, o Estado tem um papel central no desenvolvimento econômico, ao investir em áreas ou em momentos que não interessam à iniciativa privada, mesmo que, para isso, tenham que aumentar as suas dívidas.

Martin Sadbu dá o exemplo da austeridade fiscal que corta investimentos em saúde. Investir em saúde resulta em uma mão-de-obra mais produtiva, o que impulsiona o crescimento econômico. Mas isto estaria sendo negligenciado pelas políticas de austeridade. Parece ser um bom argumento. Mas, vejamos.

Digamos que o governo invista 1.000 moedas em “saúde”. Este termo genérico, “saúde”, envolve escolhas. Muitas escolhas. O que é “saúde”? Mais ambulâncias? Mais hospitais? Salários melhores para os médicos e enfermeiros? Financiamento de um seguro-saúde? Como fazer com que essas 1.000 moedas sejam investidas de modo a realmente agregar valor para a economia como um todo? Lembre-se sempre: estamos procurando políticas que fomentam o crescimento econômico, e o crescimento econômico se alcança, no longo prazo, somente através da agregação de valor.

Digamos que o governo, que opera os recursos do Estado, tome as decisões corretas, maximizando o valor agregado do investimento em saúde. Ainda cabe a questão: este teria sido o melhor investimento para este dinheiro, tendo como objetivo o crescimento econômico? Note que não estamos fazendo considerações de outras ordens, como justiça ou distribuição de renda. A discussão, da forma como está colocada, se refere ao estímulo ao crescimento econômico. Voltando: terá sido este o melhor investimento para as 1.000 moedas? Será que se estas 1.000 moedas permanecessem nas mãos da iniciativa privada, este dinheiro não poderia ser melhor investido? Quem disse que o investimento em saúde é a melhor alternativa para agregar valor para a sociedade como um todo?

Para quem se choca com esse tipo de discussão (sim, eu sei, saúde é algo sério, discutir economicamente o custo de uma vida humana é chocante), vamos usar outro exemplo, aliás muito em voga: o investimento em infraestrutura.

Biden está patrocinando um megapacote de investimentos em infraestrutura. Estes investimentos poderiam ser feitos pela iniciativa privada, desde que o preço cobrado dos usuários permitisse remunerar o capital, tanto financeiro quanto humano. Lembre-se, esta é a medida de criação de valor. Como o Estado vai investir, depreende-se de que se trata de obras que não agregam valor suficiente para os seus usuários diretos, aqueles que deveriam pagar pelo uso. Portanto, o governo faz uma vaquinha, passando o chapéu entre todos os cidadãos, usuários ou não daqueles serviços, para pagar pela sua construção e manutenção. A ideia é de que aquele investimento agrega valor para todos, mesmo para aqueles que não usam diretamente os serviços. Uma estrada, por exemplo: se fosse cobrado pedágio, este custo seria cobrado dos consumidores finais dos produtos que passam por esta estrada. Como estes consumidores não estão dispostos a pagar por isso (não reconhecem o valor agregado), outros consumidores que não consomem estes produtos são chamados a pagar por eles. De alguma forma, estes outros consumidores estariam sendo, teoricamente, beneficiados pelo fato de estarem pagando, indiretamente, por produtos que não estão consumindo. Essa história de “externalidade positiva” é quase um ato de fé.

Veja: não estou negando que gastos governamentais estimulem o crescimento econômico no curto prazo. Todas aquelas obras, pessoas contratadas, gente trabalhando, e depois uma bela obra sendo utilizada, tudo isso “faz a roda da economia girar”, como dizem. O problema não é o curto prazo. O problema é o longo prazo.

Keynes, em resposta à crítica de que a solução de gastos públicos contra o desemprego levaria à inflação no longo prazo, dizia que, no longo prazo, estaríamos todos mortos. No entanto, esta afirmação de Keynes somente seria verdade se um meteoro atingisse a Terra extinguindo a humanidade. Neste caso, poderíamos gastar como se não houvesse amanhã, dado que não haveria mesmo. A verdade é que nem todos estaremos mortos. A dívida pública é uma transferência de renda intergeracional. A nossa geração estará morta no longo prazo, mas a dívida ficará para os nossos filhos e netos. Toda dívida é um saque a descoberto sobre a geração futura.

No longo prazo, é preciso que os investimentos feitos pelo governo agreguem valor. Somente dessa maneira o crescimento econômico será sustentável. Senão, é só fogo de palha, que se extingue rapidamente, deixando não mais que cinzas. Vejamos o que nos mostra a história.

O gráfico abaixo mostra uma série longa (desde 1947) de crescimento do PIB no Brasil e investimento público. As barras vermelhas são o crescimento do PIB em cada ano (escala da esquerda), enquanto a linha azul mostra o investimento público como percentual do PIB (escala da direita).

Podemos observar três momentos de elevação abrupta do investimento público. O primeiro não tem a ver com investimentos produtivos, mas com a construção de Brasília: os investimentos públicos passaram de 3% do PIB em 1956 para 5,5% do PIB em 1958. A ressaca deste que talvez tenha sido o investimento mais improdutivo da história (e olha que a concorrência é forte) veio a partir de 1963, quando o crescimento do PIB se desacelerou de maneira abrupta: de uma média de 9% de crescimento entre 1958 e 1962, o crescimento em 1963 foi de apenas 0,6%. Se alguém acha que o golpe de 64 não tem nada a ver com economia, talvez tenha que refazer seus conceitos. O crescimento no triênio 63-65 foi de apenas 2,1% ao ano, cerca de 7 pontos percentuais abaixo dos 5 anos anteriores. Ou seja, o crescimento do investimento público foi capaz de gerar crescimento de curto prazo, mas que não se sustentou com o tempo.

O segundo momento é a saída do milagre econômico do início da década de 70. Percebendo que o crescimento estava perdendo ritmo, e sem querer admitir o fim da festa, o governo de Ernesto Geisel pisou fundo no acelerador dos investimentos públicos, de uma média de 7% do PIB na primeira metade da década para uma média de 9,5% no triênio 76-78. Até conseguiu sustentar algum crescimento no curto prazo, mas depois o país mergulhou na crise da dívida externa, dando origem à década perdida dos anos 80.

O terceiro momento é a saída do “superciclo das commodities”, causado pelo crescimento acelerado da China. No quinquênio 2004-08, o Brasil cresceu a uma média de 4,8% ao ano. Com a grande crise financeira de 2008, o governo colocou o pé no acelerador dos investimentos públicos para levantar o PIB, elevando de uma média de 2,5% do PIB nos cinco anos anteriores para 4,5% em 2010. A recuperação do crescimento foi rápida no curto prazo, mas a ressaca foi grande, dando origem à década perdida dos anos 10.

O problema desses ciclos de investimentos públicos é justamente encontrar atividades que agreguem valor e que, por algum motivo, não atraem o investimento privado. Haja externalidade positiva!

Mas não é só de investimentos públicos que vive a expansão de gastos públicos em busca do santo graal do crescimento econômico. Como afirmou o colunista Martin Sandbu, os investimentos sociais, que não entram nessa conta de investimentos públicos, agregam valor ao longo do tempo. A austeridade seria, então, contraproducente.

Bem, talvez o colunista do Financial Times não esteja familiarizado com a questão brasileira. Nós  aderimos, de corpo e alma, ao novo consenso que está desbancando o Consenso de Washington. Vejamos o gráfico a seguir, em que mostramos a evolução dos superávits primários e da dívida pública nos últimos mais de 20 anos:

Observe como, a partir de 2014, começamos a produzir déficits primários, depois de 15 anos produzindo superávits. Primeiro, de maneira envergonhada, varrendo os números pra debaixo do tapete da contabilidade criativa. Depois, em plena luz do dia. E a dívida pública, como não poderia deixar de ser, cresceu desde então. Em 2020 produzimos a espetacular marca de 9,5% do PIB de déficit primário, de longe o maior número entre as economias emergentes e somente comparável ao déficit dos EUA entre os países desenvolvidos. Ou seja, já estamos muito à frente de todo mundo nesse “novo consenso”, em que os gastos do governo devem sustentar o crescimento econômico.

Mas este gráfico tem outro trecho interessante: observe o crescimento da dívida entre 1998 e 2002, apesar da produção de superávits primários. Por quê? Simples: a taxa de juros, na época, era gigantesca. O menor nível da Selic nesse período foi de 15,25%, mas foi comum convivermos com taxas acima de 20% ao ano. Então, mesmo produzindo superávits primários, os juros pagos sobre a dívida faziam aumentar essa mesma dívida. Este é o risco que corremos agora, com a dívida acima de 90% do PIB: se a taxa de juros subir, o gasto com juros será muito maior, dificultando a estabilização da dívida.

Perguntado sobre o que nós, um país altamente endividado, deveríamos fazer para nos juntar ao “novo consenso”, o colunista do Financial Times sacou o seguinte:

Em primeiro lugar, temos muito espaço para melhorar como o governo gasta o dinheiro público. Puxa, isso sim é uma descoberta, como não havíamos pensado nisso antes. Basta gastar o dinheiro melhor! Fácil.

Mas o último conselho é que vale ouro: o Brasil deveria encontrar modos de fazer empréstimos de forma segura, com prazos longos, para que não tenha de se refinanciar de repente quando as taxas de juros subirem. Uau, isso é que é conselho! Claro, basta fazer encontrar financiadores de longo prazo para que possamos aderir ao “novo consenso” de “maneira segura”.

Estou sendo sarcástico, claro, mas quando colocados diante do problema concreto, aquele que os gestores públicos enfrentam, todos esses palpiteiros não conseguem se sair com nada mais do que platitudes desse tipo. Quer outro exemplo? Na mesma edição de hoje, o ex-diretor do Banco Central, Luís Eduardo Assis, em sua coluna, também prescreve gastos públicos como a solução de todos os seus problemas. E, óbvio, o abandono do teto de gastos. Mas é o conselho final que vale a pena ler:

Sim, é tempo de pensar em soluções inteligentes e criativas. Estamos esperando. Em todo o artigo que leio criticando o teto de gastos, fico ansioso por encontrar soluções inteligentes e criativas que substituam esse burro e sem imaginação teto de gastos. Saio sempre de mãos vazias.

Resumindo alguns pontos para encerrar este artigo:

1. Crescimento econômico não se improvisa. Crescimento econômico é fruto de produtividade, agregação de valor para o consumidor final. Quanto mais valor se agrega com menos recursos, mais a economia cresce. A destruição de uma economia se dá pelo desperdício de recursos em atividades que não agregam valor.

2. A austeridade não é um fetiche. Quem não gosta de gastar, não é mesmo? O problema está na sustentabilidade da dívida gerada pelo gasto governamental. Se o gasto fosse investido em atividades que agregassem valor, o crescimento econômico resultante pagaria a conta. Mas isto requereria um grau de clarividência dos governos muitas vezes acima do que normalmente observamos. Além disso, parece pouco provável que só o governo encontre atividades que agregam valor, vendo oportunidades onde a iniciativa privada não vê. As externalidades positivas são de difícil mensuração e, como a história mostra, normalmente não compensam o gasto.

3. Este “novo consenso” não tem nada de novo. É o bom e velho keynesianismo, que levou à estagflação da década de 70. O articulista do Financial Times, perguntado sobre a diferença deste “novo consenso” para o keynesianismo, respondeu o seguinte:

O “novo consenso”, portanto, ultrapassaria o keynesianismo por incluir a desigualdade e a desregulamentação financeira como obstáculos ao crescimento econômico. Ou seja, não basta o governo gastar. Precisa gastar distribuindo renda e amarrando as mãos do sistema financeiro, limitando o crédito. Junto com uma boa política de fomento a determinados setores escolhidos pelo seu “efeito multiplicador” (política industrial sofisticada), a mistura disso tudo resultaria em agregação de valor para o consumidor final. Bem, quem sou eu para dizer que vai dar errado.

4. A austeridade não é garantia de crescimento econômico. Nem tem a pretensão de ser. A austeridade é apenas o alicerce da casa, não a casa em si. Seria néscio achar que somente o alicerce resolve. Assim como seria igualmente néscio tentar construir a casa sem o alicerce. Vimos que esse tipo de estrutura não se sustenta. O articulista do Financial Times insiste, em vários pontos de sua entrevista, que a austeridade diminuiu o crescimento econômico no curto prazo e, por isso, foi uma política equivocada. O que ele está sugerindo, no fundo, é trocar o alicerce por uma casa construída sobre areia.

Ensaio sobre o vírus

Em minha época de adolescente havia um jogo (ainda existe) chamado Combate. Neste jogo, dois exércitos se enfrentavam em um tabuleiro. O objetivo era libertar um prisioneiro de guerra em poder do adversário, e cada exército contava com militares das mais diversas patentes, desde o soldado raso (que valia 2 pontos) até o general (que valia 10 pontos). O general seria imbatível, não fosse a existência do agente secreto, que valia apenas 1 ponto, mas tinha o poder de matar o general. Ou seja, era a peça mais fraca do jogo, podia ser morto por qualquer peça, mas tinha o poder de matar a peça mais poderosa do tabuleiro.

O ser humano é o animal mais poderoso do planeta. De longe. Mas existe um ser vivo que é capaz de matar o ser humano. Este ser vivo é o mais simples de todos, a ponto de existirem dúvidas sinceras se este ser é vivo mesmo. No entanto, a exemplo do agente secreto, é o único capaz de matar o ser mais poderoso do planeta.

Claro, cães ferozes, cobras, leões e outros animais selvagens também podem matar o ser humano. Mas, convenhamos, os eventos em que esses animais são responsáveis por mortes de seres humanos são raros quando comparados às doenças mortais causadas por vírus. Em anos normais, o Brasil tem cerca de 80 mil mortes causadas por pneumonia (a maior parte causada por vírus), dez mil pessoas morrem por HIV por ano e assim por diante.

Um vírus não tem existência própria. Como não possuem célula, os vírus só conseguem se reproduzir dentro da célula de seu hospedeiro. São poucas as drogas que conseguem combater os vírus, sendo que, na maioria das vezes, o repouso é o único remédio enquanto o próprio corpo produz anticorpos para combater o invasor.

Quem é pai ou mãe de criança pequena, certamente já ouviu o diagnóstico do mal que aflige o seu pimpolho, normalmente dito pelo pediatra com um certo ar blazé: “é uma virose”. Como assim, uma virose? Qual o nome da doença? Como podemos tratar? “Não minha senhora, não meu senhor, não tem nome a doença, é só virose. E não tem tratamento, vai tomando um remedinho pra febre até melhorar”. E os pais saem do consultório com a impressão de que faltou alguma coisa. Não faltou nada. É só uma virose.

Os vírus são de tal maneira presentes na vida da humanidade, que tomamos emprestado suas características para nomear fenômenos humanos. Por exemplo, a figura de linguagem para transmitir a ideia de algo ruim que se espalha é a do vírus, como podemos observar na frase a seguir:

Outro exemplo são os vírus de computador. Sendo apenas softwares que se espalham através das redes, os vírus de computador recebem esse nome por imitar o comportamento dos vírus reais. A sorte é que temos vacinas que, em tese, funcionam e nos protegem desses softwares maliciosos.

Mas há quem pense o contrário. No primeiro filme da trilogia Matrix, o Agente Smith (um software de Matrix) faz um discurso para Morpheus, em que é a humanidade que faz o papel de vírus:

Quero compartilhar uma revelação que tive durante meu tempo aqui. Ela veio quando tentei classificar a sua espécie. Eu concluí que vocês não são realmente mamíferos. Todo mamífero deste planeta desenvolve instintivamente um equilíbrio natural com o meio-ambiente, mas vocês humanos, não. Vocês se mudam para uma área e se multiplicam até que todo recurso natural seja consumido. A única forma de sobreviver é mudar-se para outra área. Há um outro organismo neste planeta que segue o mesmo padrão. Você sabe qual é? Um vírus. Seres humanos são uma doença; um câncer deste planeta. Vocês são a praga, e nós somos a cura”.

Que um software chame um ser humano de vírus mostra como o conceito pode ser largo.

Mas nem sempre os vírus foram retratados como inimigos da humanidade. Em Guerra dos Mundos, os alienígenas são vencidos não pelas Forças Armadas humanas, mas pelos prosaicos vírus espalhados no ar de nosso planeta. Nós já nos acostumamos e temos defesas contra os vírus. Os alienígenas, não. Os vírus, novamente, vencem os mais fortes dentre os mais fortes.

Os vírus parecem querer nos lembrar que somos limitados. Com todo o poderio de nossa tecnologia, ainda temos que lançar mão do prosaico distanciamento social, uma ferramenta, convenhamos, primitiva.

Ao forçar o distanciamento social, o vírus quebra a coluna vertebral da sociedade humana. O ser humano é, em essência, um ser social. Grande parte da atividade econômica está baseada na convivência social. Ao isolar os seres humanos de outros seres humanos, o vírus muda a dinâmica da sociedade, com efeitos ainda desconhecidos. É como se o vírus tivesse a capacidade de infectar a sociedade humana, não somente os seres humanos.

Tudo voltará ao normal depois que o vírus estiver sob controle. Tudo voltará ao normal? Talvez sim. Mas as marcas da sua passagem ficarão por aqui durante muito tempo. Desde mudanças de hábitos (hello home office!) até implicações para o cenário político dos diversos países atingidos.

O vírus, o mais simples ser vivente (vivente?) sobre a face da Terra, está aí para nos lembrar das nossas limitações. Humilhando a nossa soberba, o vírus coloca a perspectiva da nossa finitude. Somos gigantes de pés de barro.

Sinuca de bico

Este artigo é uma espécie de continuação do anterior, em que comentamos a carga tributária brasileira. Vamos falar, agora, das despesas.

Começo com algumas manchetes que estamparam os jornais nos últimos dias:

O que aconteceu? O governo malvadão resolveu mostrar sua verdadeira face? Ou, em um acesso de loucura, decidiu dar um tiro no próprio pé, minando sua própria popularidade?

Nem um coisa, nem outra. Foi muito simples o que aconteceu: acabou o dinheiro.

Quer dizer, dinheiro tem. O que acabou foi o dinheiro do que chamamos de verbas discricionárias. O orçamento brasileiro é extremamente engessado. Como podemos ver na tabela abaixo, elaborada pela Instituição Financeira Independente, órgão do Senado, uma parte relevante das despesas são obrigatórias, ou seja, estão carimbadas por alguma lei. Inclusive, várias delas são nada menos que constitucionais.

As duas maiores despesas obrigatórias são a Previdência e Gastos com Pessoal. Somando todas as assistências sociais (Previdência, Seguro-Desemprego, BPC e Bolsa-Família), temos um total de 54,9% das despesas. Os Gastos com Pessoal, por sua vez, somam 21,4% das despesas. Outras despesas obrigatórias, como Educação (incluindo o Fundeb) e Saúde, somam 17,1% das despesas do governo. Sobram 6,6%, que são as chamadas “despesas discricionárias”.

E o que são essas despesas discricionárias? Despesas discricionárias são aquelas livremente definidas pelo governo e pelo Congresso, o que inclui todos os investimentos estatais. Como as obrigatórias são definidas por lei, não há o que fazer. E como existe a Lei do Teto de Gastos, acaba sobrando para as despesas discricionárias. Ou seja, as despesas obrigatórias crescem segundo a lei, empurrando as despesas discricionárias contra o teto de gastos. Parece aquela cena do filme Kingsman, em que o mocinho fica preso em uma sala com a água subindo, sobrando cada vez menos espaço para respirar.

O gráfico abaixo, elaborado pelo IFI, mostra os gastos discricionários ano a ano, em proporção do PIB.

Podemos observar que, neste ano de 2021, esses gastos representam apenas 1,3% do PIB, contra uma média quase sempre em torno de 2% do PIB nos anos anteriores.

Quando a Lei do Teto de Gastos foi aprovada, sabíamos que isso iria acontecer. A ideia era aprovar reformas estruturais que diminuíssem as despesas obrigatórias. Fizemos a Reforma da Previdência, que economizaria R$ 800 bilhões em 10 anos, ou R$ 80 bilhões/ano, o equivalente a pouco mais de 1% do PIB ao ano. Foi uma reforma potente, mas os seus efeitos só se farão sentir ao longo dos anos, o efeito no curto prazo é pequeno.

O mesmo se pode dizer da Reforma Administrativa que está no Congresso. Vai valer somente para os funcionários públicos que ainda vão entrar no serviço público. Então, seus efeitos sobre o orçamento serão sentidos somente ao longo dos anos, não hoje e nem no ano que vem.

Assim, com o Teto de Gastos valendo e as despesas obrigatórias aumentando, começamos a ver a máquina rangendo. Falta dinheiro para o Censo. Falta dinheiro para o Minha Casa Minha Vida. Falta dinheiro para a segurança e a limpeza das universidades federais (não se preocupe, a verba para pagar salários de professores é obrigatória, não discricionária). Daqui a pouco vai faltar dinheiro para imprimir passaportes.

Estamos chegando à hora da verdade do Teto de Gastos. É a única regra fiscal que temos, depois que abandonamos, a partir de 2014, a política de superávits primários. Aliás, para quem acha que o Teto de Gastos é muita austeridade, gostaria que me explicasse que austeridade é essa que provocou o aumento da dívida pública em quase 40 pontos percentuais do PIB em 6 anos.

Abandonar o Teto de Gastos e não colocar nada no lugar é a receita certa para o desastre. Não temos a licença para gastar que um Tesouro dos EUA tem. Sem uma âncora fiscal que substitua o Teto de Gastos, os financiadores da dívida vão começar a exigir mais juros para financiá-la (já começaram, aliás). Uma coisa é pagar juros de dois dígitos sobre uma dívida de 50% do PIB. Outra, bem diferente, é pagar juros de dois dígitos sobre uma dívida de 90% do PIB. Começa a ficar insustentável.

Como sair dessa sinuca de bico? Esta é a questão que os candidatos a presidente a partir de 2023 precisam responder. Qualquer outra bandeira depende de se resolver isso. Porque, senão, não haverá dinheiro para financiar qualquer promessa.

O que importa é a carga tributária, não o imposto

Está rolando (mais) um ranking de preços internacionais do iPhone. É o ranking do site de comparação de preços Nukeni, mostrando que o iPhone 12 256Gb custa R$ 9.500 aqui no Brasil, contra R$ 5.167 nos EUA. A revolta é geral.

As duas reportagens que li hoje sobre o assunto se concentram na crítica ao imposto de importação, que encarece desproporcionalmente o produto em terras tupiniquins. Acho que as duas reportagens erram o foco.

Não tem dúvida de que o imposto de importação encarece os produtos. Mas sabemos por experiência própria todos os que já viajamos e fizemos compras nos States, que as coisas são sempre mais baratas lá, mesmo comparando com preços de produtos produzidos no Brasil. Roupas, eletrodomésticos, carros, enfim, tudo. Não precisa ser importado para ser mais caro.

Por que isso acontece? A resposta está no gráfico abaixo, retirado de um relatório elaborado pela Receita Federal.

O problema não está tanto na carga tributária, ainda que este seja um ponto importante sobre o qual falaremos em seguida, mas na distribuição dessa carga. Compare a carga tributária sobre bens e serviços do Brasil em relação à média da OCDE: 14,3% contra 11,1% do PIB. Nos EUA, essa mesma carga tributária é de apenas 4,3% do PIB. A diferença lá é cobrada sobre outros fatos geradores, principalmente renda. Ou seja, nos EUA e outros países desenvolvidos, há mais cobrança sobre a renda das pessoas do que sobre os bens e serviços produzidos.

Aqui no Brasil, portanto, os produtos são mais caros, mas o imposto de renda é muito menor. Assim, quando a classe média chora o iPhone caro no país, está analisando apenas um lado da equação. O outro lado é que paga menos imposto de renda do que seu equivalente norte-americano ou europeu. O resultado é que sobra mais dinheiro no bolso do brasileiro (ajustado pela renda de cada país), para gastar em produtos mais caros.

No final do dia, o que faz sentido é a comparação entre cargas tributárias totais. A distribuição do imposto, se pagamos sobre a nossa renda ou sobre os produtos que compramos, do ponto de vista estritamente econômico, importa pouco. Claro que esta é uma simplificação: o nosso sistema tributário é tão caótico, com tantas exceções e regimes especiais, que o nosso consumo é sim influenciado pelas escolhas dos produtos privilegiados. Mas, do ponto de vista de renda total disponível para consumo, o que importa é a carga tributária total do país.

Assim, não chore pelo iPhone caro. Chore pela carga tributária de 33% do PIB, equivalente à média dos países ricos e cerca de 10 pontos percentuais acima da média dos países da América Latina. Nos EUA, a carga tributária é de 25% do PIB. Antes do Biden, claro. E prepare seu bolso: ou você acha que essa dívida pública monstruosa que temos será paga com controle de gastos?

PS.: Não comentei, mas uma grande carga tributária sobre bens e serviços acaba sendo um instrumento de concentração de renda, na medida em que o imposto está embutido no produto, independentemente se é comprado pelo rico ou pelo pobre. Ou seja, o pobre acaba pagando a mesma coisa que o rico, mesmo tendo uma renda menor. Se o imposto fosse sobre a renda, o rico pagaria mais. Por isso, o nosso sistema tributário é altamente regressivo e concentrador de renda. E isto não está endereçado por nenhuma reforma tributária em análise no Congresso.

Quebra de contrato no dos outros é refresco

Alguma forma de proteção de propriedade intelectual existe desde a Veneza da Renascença. Leis de Patentes foram criadas e aperfeiçoadas a partir do século XVI na Europa e mesmo no Novo Mundo, onde leis desse tipo já existiam nas colônias americanas.

É sempre difícil desenhar um mundo contrafactual. Portanto, seria uma afirmação a priori dizer que a evolução tecnológica da humanidade teria sido impossível sem leis de proteção a patentes. Mas esta não é, tampouco, uma hipótese absurda. Afinal, se o inventor solitário e genial talvez seja movido somente pelo seu ideal, o capitalista, que é o responsável pela produção em massa daquele invento, certamente é movido pelo lucro. E de nada adianta uma invenção revolucionária que permanece confinada ao laboratório do inventor genial. Para a humanidade, tão importante quanto a invenção em si é a capacidade de produzi-la, vendê-la e entregá-la em massa. A proteção intelectual de patentes, portanto, não protege apenas o inventor. Protege, através de um monopólio temporário, principalmente o capitalista que financiou a produção do invento.

Neste contexto, temos um caso singular: as patentes das vacinas contra a SARS-Cov-2. Uma emergência global do porte da pandemia de Covid-19 justificaria quebrar um contrato? Convém lembrar que a patente é um contrato entre o capitalista e o Estado, que assegura ao primeiro um monopólio temporário. Todo o cálculo da viabilidade econômica do investimento realizado pelo capitalista é baseado na boa fé da vigência desse contrato.

Vamos imaginar um cenário alternativo: digamos que o governo dos EUA, a União Europeia e a OMC decretassem, logo no início da pandemia, que não haveria concessão de patentes para vacinas contra o novo coronavírus. Haveria desenvolvimento de vacinas? Se sim, qual seria a sua velocidade? Como dissemos acima, é sempre difícil imaginar um mundo contrafactual. Mas, neste caso, pelo menos as regras do jogo seriam conhecidas desde o início.

Há quem diga que os governos, principalmente nos EUA, investiram muito dinheiro dos contribuintes no desenvolvimento das vacinas e que, portanto, teriam “direito” a quebrar as patentes. Bem, se o dinheiro do governo tem esse poder de criar vacinas, porque fizeram parcerias com laboratórios privados? E por que não estabeleceram, desde o início, que o seu investimento estaria sujeito ao não estabelecimento de patentes? Haveria parcerias se houvesse uma cláusula desse tipo? Haveria vacinas?

Joe Biden quer posar como o Anjo Bom do mundo, nem que para isso precise fincar uma picareta em uma das colunas mestras do capitalismo, o respeito aos contratos. A sua iniciativa é inócua do ponto de vista de oferta de vacinas, porque não há capacidade produtiva ociosa no momento e não vai haver durante muito tempo, além de o preço das vacinas não estar sendo um impeditivo para a sua aquisição pelos governos.

Mas a iniciativa do presidente norte-americano não é inócua do ponto de vista de investimentos em pesquisa: qual será a próxima “grande emergência” que justificará a quebra de contratos? Se o objetivo de Biden é estatizar a atividade de pesquisa, está no caminho certo.

As Maravilhas da Matemática

Hoje é o Dia Nacional da Matemática. A data, 06 de maio, é homenagem ao nascimento do escritor Júlio César de Mello e Sousa. Não conhece? Quem sabe você conheça o seu pseudônimo: Malba Tahan.

Malba Tahan despertou meu amor à Matemática através de um de seus muitos livros. Não, não foi O Homem Que Calculava, sua mais famosa obra. Fui ler O Homem Que Calculava já quase adulto. Livro espetacular, mas que já me pegou em uma fase em que as convicções já estão formadas, assim como a torcida por determinado time.

Refiro-me ao livro As Maravilhas da Matemática.

Nesta obra, Malba Tahan vai contando, em capítulos curtos e com sua prosa envolvente, as muitas curiosidades da Matemática, suas histórias e seus truques. Em linguagem acessível mesmo para uma criança de 10 anos, Malba Tahan percorre desde o ângulo perfeito das células das colmeias até o pouco caso com que as pessoas tratam o respeitável milhão, passando pelas propriedades da proporção de ouro, pelas histórias de grandes matemáticos e muito mais.

O Homem Que Calculava é uma coleção de pequenos truques matemáticos, como se um mágico estivesse performando o seu espetáculo hipnótico diante de seus olhos. Já As Maravilhas da Matemática é um compêndio das pequenas pérolas escondidas neste grande oceano da Matemática.

Acho que nenhum ser humano é uma página em branco depois de sua primeira infância. Mesmo antes de começar a receber educação formal, o ser humano já tem suas inclinações, fruto de uma mistura de genes e influências do ambiente. Portanto, As Maravilhas da Matemática já deve ter encontrado em mim um espírito pronto para entender e amar a sua mensagem simples e profunda. De qualquer modo, não consigo deixar de pensar que este livro despertou em mim, ou trouxe à consciência, meu gosto pela Matemática.

Portanto, obrigado Malba Tahan! E parabéns pelo seu dia!

Destino vs. Mérito

Eu dou aulas em um curso preparatório para a obtenção de um certificado muito prestigiado no mercado financeiro, o CFA. São três provas em três anos seguidos, peneirando os candidatos até sobrarem os mais perseverantes que, estima-se, sejam somente 30% dos que iniciam a jornada.

Ontem, recebi um e-mail de um ex-aluno, informando que havia passado na primeira prova e agradecendo pelas aulas. Confesso que fiquei surpreso, por dois motivos.

O primeiro é que não é muito comum um ex-aluno escrever agradecendo ao professor as suas conquistas. Trata-se de um gesto raro, e que tem um valor imenso para quem joga a semente sem ter muita esperança de que vá germinar. E denota o caráter de quem reconhece que suas conquistas dependem não só de si.

O segundo motivo da minha surpresa é que este aluno não se destacava pelo seu brilhantismo. Era um aluno, digamos, comum, em quem eu não apostava muitas fichas. No que ele se destacava sim era no bombardeamento de perguntas. Explico: quando termina a minha parte no curso preparatório, deixo meu e-mail para que os alunos possam enviar dúvidas ao longo de seus estudos. Quer dizer, deixo proforma, porque raramente alguém escreve. Não foi o caso deste meu ex-aluno: dia sim, outro também, abria minha caixa postal e ali estava um e-mail dele com alguma dúvida. O que isso significa? Que o rapaz estava estudando. E muito.

No começo do curso, costumo dizer que as provas não são difíceis, não são um teste para entrar na NASA. São, sim, trabalhosas, pois a matéria é muita extensa. Mas nada que um bom plano de estudo e perseverança não resolva. E é isso que distingue quem passa de quem não passa: dedicação e perseverança. Vejo muitos alunos afirmando com palavras que que querem passar, mas seus atos demonstram que eles na verdade esperam que a coisa caia do céu.

Nesta linha, hoje o jornal traz uma reportagem sobre um rapaz chamado Wellington Vitorino, o primeiro brasileiro negro a ser aceito no MBA do MIT.

A trajetória de Wellington é a de alguém que acredita que o estudo o levará mais longe, e dedica-se de corpo e alma a isso. Claramente não foi contemplado, na loteria da vida, com o grande prêmio de ter nascido em uma família de posses, mas explorou bem seus outros dons, tendo a “sorte” de encontrar pessoas que o ajudaram no meio do caminho. Sorte entre aspas porque o seu desempenho acabou por atrair quem o pudesse ajudar.

Tenho sempre dificuldade em separar mérito de destino. Acho que a vida das pessoas é uma mistura das duas coisas: uma boa parte do seu destino está traçado no seu nascimento, mas não todo ele. Conseguimos mudar o nosso destino a partir de nossas decisões, mas seria ingenuidade achar que as nossas decisões têm o poder de mudar tudo.

Há pessoas diferenciadas, que foram agraciadas pela vida com dons negados à maioria dos mortais. E não me refiro, aqui, à renda familiar. Wellington claramente tem um dom, e soube explora-lo para subir. Seria forçar a barra apontar o seu caso como um exemplo de que tudo é possível, basta esforçar-se. Seria como dizer que jogar como o Messi é possível, desde que você treine o suficiente. O caso de Wellington é único, porque ele é único.

Isso é uma coisa. Outra coisa é elevar o nível médio da população através de políticas públicas eficazes. Não para buscar outros Wellingtons. Estes, por terem o dom, encontrarão o seu caminho mesmo no meio das mazelas do nosso sistema de ensino. Mas para que o esforço de pessoas comuns, como o do meu ex-aluno, encontre terreno mais fértil para mudar os seus destinos.

PS.: para evitar mal-entendidos, que pude perceber em alguns comentários, não fui professor do Wellington. São duas histórias paralelas.

O vírus chinês

Bolsonaro deu vazão mais uma vez, ontem, a uma de suas teorias da conspiração de estimação: a China declarou guerra “química, bacteriológica e radiológica” ao mundo. A evidência? O país foi o que “mais cresceu o seu PIB”. Mais evidente que isso, só as provas insofismáveis de que a Terra é plana.

Vamos lá. A China vinha crescendo a mais de 6% ao ano antes da crise. Em 2020 cresceu apenas 2%. Perdeu, portanto, 4 pontos percentuais de PIB em 2020. O Brasil crescia 1% ao ano antes da crise. Decresceu 4% em 2020. Perdeu, portanto, 5 pontos percentuais de PIB. Reforçando: a China perdeu 4 pontos percentuais de PIB e o Brasil, 5. Não parece ser uma grande diferença, não é mesmo?

Além disso, a resposta da autoridades chinesas ao vírus foi muito mais violenta. Se aqui estamos reclamando da “perda das liberdades”, é porque não vivemos na China. Lockdown lá é lockdown, não esse arremedo que temos aqui. Resultado: números de infectados e óbitos muito menores do que no mundo ocidental. É até provável que os chineses estejam escondendo os números reais, mas a diferença é tão gritante que, mesmo o número real deve ser muitas vezes menor que o que vimos na Europa e Américas. Aliás, os números chineses estão em linha com os de outros países do Sudeste Asiático e mesmo Japão, Austrália e Nova Zelândia, que, igualmente, implantaram medidas draconianas de controle da pandemia. O resultado: a China e estes outros países puderam voltar antes a uma vida mais ou menos normal.

Por fim, em um mundo globalizado, não parece ser uma tática muito inteligente acabar com seu mercado consumidor e fornecedor. Crescimento econômico não é um jogo de soma zero, em que o meu crescimento depende do decrescimento do outro. Crescimento econômico é um jogo cooperativo de criação de valor. O vírus, que claramente destrói valor, só é instrumento de crescimento econômico na cabeça de paranóicos.

Como toda teoria da conspiração, a tese do “vírus chinês” é plausível à primeira vista, assim como a sensação de que a Terra é plana quando se olha para o horizonte. Mas, como toda teoria da conspiração, não para em pé diante de argumentos nem tão sofisticados.

Sim, a China é uma ditadura. Sim, a China tem aspiração a ser uma potência hegemônica. Mas eles não chegaram aonde chegaram sendo idiotas a ponto de atacarem seus principais parceiros comerciais.

O difícil caminho da terceira via

O Valor Econômico pediu ao Instituto Atlas uma pesquisa eleitoral entre os eleitores do Rio Grande do Sul. Como sabem, sou cético com relação a este tipo de pesquisa a mais de um ano da campanha eleitoral. A essa altura, é mais uma pesquisa de “recall de marca” do que verdadeiramente de intenção de voto. Mas, tendo dito isso, essa pesquisa traz algumas informações interessantes, que gostaria de comentar aqui.

O dado que mais me chamou a atenção foi a coincidência das intenções de voto em Bolsonaro em qualquer cenário: 1/3 dos votos. Sendo que este percentual coincide com a avaliação positiva do presidente. Parece até uma constante física: 1/3 dos gaúchos aprovam o presidente e pretendem votar nele, independentemente de qualquer cenário eleitoral.

Apesar da resiliência, o copo meio vazio para o presidente é que o RS deu 53% de seus votos no 1o turno de 2018 para o então candidato Bolsonaro. Ou seja, nesses dois anos, 40% desses votos foram perdidos. Mas, como disse acima, estamos distantes da campanha eleitoral, que pode recuperar esses votos ou minar ainda mais a posição.

Com 1/3 firme e forte ao lado do presidente, os outros 2/3 se dividem entre os outros candidatos. Na pesquisa aberta a todos os candidatos, Lula consegue os mesmos 1/3 de Bolsonaro, e os outros 1/3 se dividem entre todos os outros candidatos. O governador gaúcho Eduardo Leite (com bom nível de aprovação e de recall entre os gaúchos) e Ciro Gomes lideram as intenções dessa “terceira via”. Até aqui, nenhuma novidade, a não ser o fato de Eduardo Leite aparecer bem, o que mostra o poder do recall.

O interessante acontece quando a pesquisa fecha em 4 candidatos: Lula, Bolsonaro, Ciro Gomes e um 4o candidato do PSDB, representando a tal “terceira via”. Achei inteligente não ter excluído Ciro Gomes desse cenário, pois torna a pesquisa mais realista. Ciro Gomes não vai desistir de seu projeto e, na verdade, trata-se de uma falsa “terceira via”. Ciro, apesar de suas desavenças com Lula, tem muito mais similaridades do que diferenças com o PT, de modo que, na minha opinião, não se qualifica como “terceira via”.

Vamos aos resultados: quando esse 4o candidato é Eduardo Leite, consegue amealhar metade do 1/3 dos votos da “terceira via”. A outra metade vai para Lula e Ciro Gomes. Ou seja, mesmo no RS, com bom índice de aprovação e alto recall, o candidato da “terceira via” não consegue ameaçar os dois primeiros colocados.

Os resultados de Doria e Tasso são piores do que os do governador gaúcho, mas aí atribuo mais à falta de conhecimento (novamente, o recall) do que pela intenção de voto. Na campanha, os números dos dois poderiam se aproximar do que tem hoje Eduardo Leite. De qualquer modo, continua sendo apenas metade dos 1/3 dedicados à “terceira via”.

Vale notar que, no cenário fechado a 4 candidatos, praticamente nenhum voto migra para Bolsonaro. Se o presidente tem 1/3 de eleitores fiéis, sua grande desaprovação impede aumentar este contingente. Ou seja, na foto de hoje, Bolsonaro tem votos suficientes para ir ao 2o turno mas não para ganhar a eleição. Não estão nesses gráficos, mas a pesquisa também mediu intenção de voto no 2o turno e, sem surpresas, Bolsonaro perde de praticamente todos os outros candidatos relevantes. Digo sem surpresas porque esta é a conclusão que se chega ao analisar a migração de votos nos vários cenários eleitorais do 1o turno.

Essa pesquisa tem limitações importantes: trata-se de um microcosmo (o estado do RS) e está sendo feita a mais de um ano do início da campanha eleitoral. Mas por ser feita na terra de um dos favoritos a assumir a bandeira da “terceira via”, é útil para medir a força dessa ideia. E as notícias definitivamente não são boas para quem está buscando este Santo Graal.

El Salvador, o sonho de consumo do bolsonarismo

El Salvador é mais uma República de Bananas da América Central à qual não se presta muita atenção. Mas aqui vale a pena acompanhar a história, por ser o sonho de consumo do bolsonarismo.

Nayib Bukele foi eleito presidente do pequeno país da América Central em 2019, com apenas 37 anos, desbancando os dois maiores partidos do país, Arena e FMLN, que vinham se alternando no poder desde o fim da guerra civil, em 1992. Sua campanha foi fortemente baseada nas redes sociais, dada a falta de estrutura de seu pequeno partido, o GANA. Soa familiar?

Até aqui, as semelhanças. Agora, o sonho de consumo.

Em fevereiro do ano passado, Nayib invadiu o Congresso acompanhado de tropas para intimidar os parlamentares a aprovarem um pacote de investimentos em segurança pública. Entrevistado na época pelo El País, Nayib afirmou que, se fosse seguir a vontade do povo, que o cobrava nas redes a tomar medidas radicais, deveria ter tomado conta de tudo. Mas não, ele trabalhou pela moderação e saiu do Parlamento sem ninguém machucado e a ordem constitucional preservada.

Em fevereiro último, seu partido recém-fundado, Ideias Novas, ganhou com larga margem as eleições legislativas. O novo Congresso tomou posse no último sábado, 1o de maio, e, no mesmo dia, destituiu 5 ministros do STF deles, indicando 5 novos ministros no lugar. Não sou especialista em legislação salvadorenha para dizer se isso pode, Arnaldo.

Agora que vimos as semelhanças e o sonho de consumo, vamos às diferenças, que não são poucas.

Bolsonaro não tem maioria no Congresso. Nayib governou 2 anos sem maioria, mas agora seu novo partido conquistou 70% das cadeiras. Ou seja, em 2 anos Nayib conseguiu fundar um partido novo e logrou convencer seus compatriotas a sufragarem deputados desse partido de maneira esmagadora.

Bolsonaro começou em posição mais vantajosa comparativamente, porque a eleição do legislativo se deu ao mesmo tempo da sua. Ou seja, poderia ter começado o seu mandato já com apoio majoritário no Congresso. Não foi o que aconteceu: o PSL elegeu apenas cerca de 13% dos deputados. Além disso, em dois anos, Bolsonaro conseguiu a proeza de perder o apoio de metade desta já minguada bancada. Resultado: teve que se compor com a “velha política”, negando, na prática, seu discurso eleitoral. Aquele “povo” na rua no sábado não foi capaz de lhe dar maioria no Congresso.

Novo partido então, nem se fala. Nayib fundou o Novas Ideias, que agora domina o Parlamento salvadorenho, mostrando sua força política. Bolsonaro não consegue (ou não quer) fundar o Aliança, e agora está atrás de uma sopa de letrinhas qualquer para ser candidato em 2022. O que demonstra que o bolsonarismo é muito mais um estado de espírito do que uma força política de fato. Sua existência se dá pelo negativo, evitar que o PT volte ao poder. Falta um “Novas Ideias” ao bolsonarismo.

Em 2022, Bolsonaro terá a oportunidade de demonstrar que estou enganado, reelegendo-se e elegendo maioria no Congresso. Claro que, se isso não ocorrer, a desculpa já está sendo construída: fraude eleitoral. Restará ao capitão, então, invadir o Congresso com uma tropa, emulando seu modelo salvadorenho e, por que não, a invasão do Capitólio. Teremos, então, a oportunidade de ver com quantas bananas se faz uma República.