Não lembro exatamente o ano, mas certamente era no início da década passada. Minha filha estava no colegial, e fui dar uma olhada no livro de história do Brasil indicado. Estava lá: FHC havia sido um governo neoliberal, que entregou o patrimônio do povo brasileiro, mas o governo Lula veio para resgatar a dignidade. Tudo isso ilustrado por uma foto de uma mulher chorando ao olhar para o prédio do Banespa, que, como sabemos, foi privatizado em um governo neoliberal tucano.
Fui até a escola para reclamar. Aquilo era uma interpretação possível, mas não a única. O coordenador pedagógico me olhou como se eu fosse um ET e me disse: “mas o livro está certo, foi isso mesmo o que aconteceu”. E, como que para me consolar, acrescentou: “mas não se preocupe, esse livro não é dos piores, tem coisa muito pior por aí”. Saí aliviado.
Lembrei-me desse episódio ao ler o artigo de Sérgio Fausto, diretor do Instituto FHC, defendendo que o comunismo é apenas um fantasma conveniente para a extrema-direita.
Gasta duas das três colunas do seu artigo justificando esse ponto de vista com os fatos de que a URSS acabou, o Muro de Berlim caiu, a China não é mais comunista e Cuba e Venezuela são muito fracas para imporem qualquer doutrina. Ora, dois terços de um artigo somente para dizer o óbvio: o comunismo institucional não existe mais. Ok.
Mas é o último terço que nos interessa: o tal “marxismo cultural” também seria uma assombração conveniente. Como não há mais países comunistas, a extrema-direita denuncia “marxistas culturais” debaixo da cama, de modo a justificarem a sua própria agenda retrógrada. Segundo o articulista, isso não passaria de paranoia.
Assim como não notamos a atmosfera e um peixe não nota a água, os intelectuais não notam mais que estão inseridos em um mundo mental com categorias marxistas. Para o professor da escola da minha filha ou para a jornalista autora do tuíte reproduzido abaixo, em que diz que Faustão é um proletário, essa é a realidade. A única realidade possível. Então, falar de “marxismo cultural” é apenas como se um peixe dissesse “vivemos dentro da água”. É só natural.
Mas Sérgio Fausto tem um ponto. Da mesma maneira que o “marxismo cultural” toma conta de tudo, o “anti-comunismo” também é um esquema mental que perpassa todas as realidades. Tudo o que não é a agenda do líder, passa a ser “comunista”. A coisa torna-se caricata. Por exemplo, tive problemas, nas eleições de 2018, para provar que Amoedo não era “comunista”. Alguns achavam que eu era “ingênuo”, que não percebia a agenda marxista por trás daquelas belas palavras. Enfim, algo meio parecido com paranoia, como descreve o articulista.
Há uma tese, propagada principalmente por Olavo de Carvalho, de que o marxismo está tão entranhado nas estruturas da sociedade, que somente uma radicalização para o extremo oposto seria capaz de nos libertar. O seu uso continuado de palavrões (e, de modo geral, a grosseria inerente ao bolsonarismo-raiz) é somente uma das facetas dessa tática, que considera a violência (no caso, verbal) a única forma de diálogo com os marxistas.
Assim como os “intelectuais marxistas” não conseguiram ver Olavo de Carvalho e os bolsonaristas chegando, tão imersos que estavam em sua própria realidade, agora também os “intelectuais olavistas” não percebem que estão cevando, com a sua leitura peculiar da realidade e sua forma de tratar o contraditório, a volta dos “marxistas”. Quem não está em nenhum dos dois extremos acaba se cansando dessas diatribes.
O mercado financeiro tem uma certa nostalgia do governo Lula. Principalmente do primeiro mandato, até o Mensalão, em 2005.
Em 2002, na medida em que ia ficando cada vez mais claro que Lula seria o próximo presidente da República, o mercado foi estressando. Era cada vez mais difícil vender títulos públicos que venciam depois de 2002, pois era real o temor de um calote da dívida pública. O dólar bateu em R$3,95 no pior momento, o que equivaleria hoje a mais de R$8,00 se corrigirmos pela inflação do período.
Lula, muito esperto, sabia que não tinha como governar com o mercado fazendo um ataque especulativo contra a moeda. Iniciou, então, a tática que até hoje arranca suspiros dos faria limers. Em primeiro lugar, publicou a famosa “Carta ao Povo Brasileiro”, que poderia ter recebido o nome de “Carta ao Povo do Mercado Financeiro”. Neste texto de junho de 2002, Lula promete respeitar os contratos e preservar o superávit primário necessário para estabilizar a dívida pública.
Mas, como dizem os americanos, talk is cheap. Os mercados continuaram a piorar até outubro, com o dólar batendo o pico às vésperas das eleições. Lula precisou mostrar serviço.
A primeira coisa que fez depois de eleito foi procurar uma equipe econômica que não desse margem a dúvidas. Sob a liderança de Antônio Pallocci, que também arranca suspiros de saudades na Faria Lima, vieram para o governo Lula nomes como Joaquim Levy e Marcos Lisboa. E, para não deixar margem a dúvidas, Henrique Meirelles foi escalado para o Banco Central. Um verdadeiro dream team, para decepção de Mercadante, Beluzzo e a turma da Unicamp.
A combinação de políticas ortodoxas com o superciclo de commodities fez o trabalho: crescimento econômico com equilíbrio fiscal. Com isso, o governo Lula acumulou gordura para implementar a sua real agenda, que já estava clara na Carta ao Povo Brasileiro. Toda o programa desenvolvimentista da década de 50 já estava lá: estímulo à indústria e substituição de importações. Fora o inchaço da máquina pública. A carta fala de um “outro modelo”, que seria contraposto ao que FHC havia implementado. O fato é que, até 2005, o modelo adotado foi o mesmo.
Livre do Mensalão e com Pallocci caído em desgraça, Lula chama Dilma e Mantega para ajudá-lo a implementar esse “outro modelo”. O resto é história: no começo, queimou as gorduras acumuladas. Depois, o país começou a se auto-fagocitar.
Quando Lula diz que vai “acabar com o teto de gastos”, está falando algo em que realmente acredita. A esperança do mercado é que, como estamos ainda longe das eleições, Lula ainda esteja falando para os seus. Quando for a hora H, outra Carta aos Brasileiros será editada, prometendo disciplina fiscal. E, mais do que isso: o mercado acredita que a própria deterioração dos preços leva um governante pragmático como Lula a adotar políticas responsáveis. Afinal, ele já mostrou que é capaz disso uma vez.
O problema, no entanto, não é o que ele vai fazer a zero de jogo. O problema é a sua preferência revelada. Aos poucos ele vai adotar a mesma agenda econômica que levou Venezuela e Argentina para o buraco em que estão. Alguns têm na memória que o governo Lula foi muito bom do ponto de vista de políticas econômicas, depois Dilma veio e estragou tudo. Nada mais falso: Lula plantou Dilma, não somente como candidata, mas em termos de políticas econômicas. Quando Dilma assumiu, o BNDES já representava quase 10% do PIB, por exemplo. Não é coincidência que Dilma tenha mantido Mantega como seu ministro da Fazenda.
As pessoas rechaçam rupturas, e Lula é muito esperto para patrocinar uma. Mas as pessoas caminham tranquilamente ladeira abaixo, sem perceber que estão descendo em direção a um poço sem fundo. A subida de volta é muito mais sofrida. O PT na presidência não é perigoso pelo que vai fazer em 2023. O PT na presidência é perigoso pelo que vai fazer nos 20 anos seguintes.
Foram somente 67 votos contra, em um universo de 513 deputados. Do restante, 408 votaram a favor e 38 se abstiveram de votar na chamada “lei da impunidade”. Com essa maioria se aprova qualquer reforma constitucional. Com folga.
Quando leio que a reforma administrativa é “difícil” por não ser “popular”, fico cá pensando: será que a maioria do povo brasileiro é funcionário público ou depende de um funcionário público para viver?
Segundo o Atlas do Funcionalismo Público, do IPEA, havia cerca de 9,5 milhões de funcionários públicos no Brasil em 2019, representando cerca de 17% das pessoas empregadas no país naquele ano. Esse percentual não considera os desempregados. Portanto, trata-se de um bom contingente, mas, ainda assim, uma minoria. Não parece ser, assim, uma reforma tão impopular.
Impopular foi a reforma da previdência, que mexeu com a aposentadoria da maioria dos brasileiros. Mas o medo da impopularidade não foi suficiente para impedir que nossos valorosos parlamentares votassem essa reforma.
Se não é impopularidade o que impede a reforma administrativa de avançar, o que seria então? A votação acachapante da “lei da impunidade” nos dá uma pista. Quando estão em jogo seus interesses particulares, os parlamentares jogam às favas a sua impopularidade. Quer coisa mais impopular do que uma “lei da impunidade”? Mesmo assim, somente 67 heróicos deputados votaram contra.De onde se conclui que o problema da reforma administrativa não é sua “impopularidade”, mas os interesses pessoais dos parlamentares e, por que não dizer, do próprio presidente da república, que tem feito corpo mole nessa materia. Os políticos, de maneira geral, devem ter uma parcela de sua renda vinculada aos salários do funcionalismo. Têm parentes ou correligionários que são funcionários públicos. Estão pensando em seus próprios bolsos, é simples assim.
Portanto, quando você ouvir que a reforma administrativa tem resistências no Congresso por ser “impopular”, tenha em mente qual “povo” é contra a reforma.
Há um ano, se alguém me dissesse que um ano depois estaria tomando a vacina contra a COVID, certamente consideraria esse alguém como um sonhador ou ingênuo.
Bem, aí está.
Para chegarmos neste ponto, uma incrível corrida de obstáculos foi vencida. Já disse aqui algumas vezes: uma coisa é ter uma ideia, outra bem diferente é tirá-la do papel. A coordenação de milhares de cérebros trabalhando para um único objetivo não é tarefa trivial.
A humanidade, sobre a qual paira muito ceticismo a respeito de sua capacidade de sobrevivência, não chegou onde chegou à toa. Somos solucionadores de problemas, e este é mais um que vamos vencer.
O que faz ser histórica uma reunião entre chefes de Estado? Algo que mude os rumos da História, por suposto. Talvez a reunião histórica paradigmática seja a que ocorreu em Yalta, na Crimeia, onde o mapa da Europa pós-guerra foi desenhado por Churchill, Roosevelt e Stálin. Entre URSS e EUA, a reunião entre Nixon e Brejnev que determinou a redução de arsenais nucleares pode ser considerada histórica.
Por que a reunião entre Biden e Putin será histórica? Segundo o jornal, porque Biden será “durão” e apresentará uma série de exigências a Putin: fim dos ciberataques, retiradas das tropas da Ucrânia e advertência sobre a interferência russa nas eleições americanas.
Já fico imaginando Biden e Putin frente a frente na mesa de negociações. Biden entrega a lista de exigências. Putin lê com atenção, arregalando o olho a cada linha. Pensa consigo: “putz, agora que meu amigo Trump deu lugar a esse Chuck Norris das relações internacionais, acho melhor começar a colaborar”.
Este é o sonho do jornalista engajado. Na realidade, vai acontecer mais ou menos o seguinte: Biden e Putin em lados opostos da mesa de negociações. Biden entrega a lista de exigências. Putin dá uma olhada de alto a baixo em mais ou menos 5 centésimos de segundos, entregando a folha a um assessor, que a coloca dentro de uma pasta preta. Com o poker face que Deus lhe deu, Putin pergunta em seguida: “anything else, Mr. President?”
Outro dia, foi uma entrevista de Eduardo Paes, rasgando elogios a Lula (não cheguei a comentar aqui por falta de tempo).
Agora, é Rodrigo Maia que participa de um almoço oferecido por Eduardo Paes em homenagem a Lula e, segundo a jornalista Malu Gaspar, oferecendo seus préstimos ao ex-presidiário.
Eduardo Paes migrou para o PSD, partido de destino de Rodrigo Maia depois de ser expulso do DEM. PSD de Gilberto Kassab, que já foi ministro de Dilma, de Temer e de Doria, e que anunciou outro dia que seu candidato à presidência é o atual presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (risadas de seriado ao fundo).
As raposas da política estão abandonando essa história de “terceira via” antes mesmo de começar. O aperto de mão de FHC e Lula não foi um acidente de percurso, foi um movimento nessa mesma direção. As forças políticas do país estão se aglutinando entre os dois polos, Lula e Bolsonaro. O DEM assumiu o lado de Bolsonaro na eleição para a Câmara, e Rodrigo Maia pulou para o outro barco. Não há solução intermediária.
Claro que podemos continuar sonhando, afinal falta ainda mais de um ano para as eleições, e o Inesperado sempre pode dar as caras. Mas o desenho é claro: se 2018 foi a eleição do lulopetismo vs. anti-lulopetismo, 2022 será a eleição do anti-lulopetismo vs. anti-bolsonarismo, decidida por aqueles que não são nem lulopetistas e nem bolsonaristas.
Todos acompanharam o drama do jogador dinamarquês Christian Eriksen, que caiu desacordado em um jogo da Eurocopa. Pois bem, ontem, dia 13/06, fomos surpreendidos pelo seguinte tuíte de Allan dos Santos, responsável pelo canal bolsonarista Terça Livre:
Este tuíte foi apagado, não sem antes ser retuitado como se não houvesse amanhã. O boato, que ganhou o mundo antes de chegar em terras tupiniquins, foi desmentido pelo diretor da Inter de Milão, Beppe Marotta, nesta matéria da Reuters.
Antes de continuar, se você fuçar por aí, vai encontrar muitos questionamentos do tipo: mas como os jogadores da Eurocopa estão jogando sem tomar vacina? É um questionamento que tem como objetivo colocar em dúvida a afirmação de que Eriksen realmente não tomou a vacina. Como se uma grande conspiração estivesse em curso para esconder a verdade, envolvendo dirigentes, jogadores e imprensa. O fato simples é que efetivamente grande parte dos jogadores não se vacinou, simplesmente por serem jovens. Lembrando que a vacinação na Europa não está tão adiantada como nos EUA ou no Reino Unido. Segundo esta reportagem da ESPN, a seleção da Espanha “furou a fila” em seu país para se vacinar. Mas, ao que parece, foi exceção. Sigamos.
Fiquei curioso por saber de onde veio o boato. Não foi fácil, pois vários dos tuítes foram posteriormente apagados. Nem posso dizer que tenha sido realmente essa a fonte, mas tudo indica que sim. Aparentemente, o início de tudo foi este tuíte aqui:
Parece um tuíte inocente, de alguém genuinamente preocupado com a saúde do atleta. Mas percebam o texto: alguém absolutamente saudável, com a melhor assistência médica que alguém no mundo pode sonhar em ter, colapsa no gramado. Como pode? A frase final explica: ele tomou a vacina da Pfizer alguns dias atrás.
Antes de continuar, vamos ver um pouco mais sobre este perfil:
Um perfil criado há dois meses, com 109 seguidores. Não há descrição, não há local, não há nada. Só um nome engraçado. Visitando o seu perfil, podemos ver tuítes principalmente relacionados à política canadense, sempre contra medidas de isolamento e vacinas. Ok, até aqui, mais um perfil irrelevante.
O que me chamou a atenção é porque um perfil que comenta política canadense tem como seguidor um físico da Rep. Tcheca, Lubos Motl, que interagiu com o tuíte acima fazendo a seguinte pergunta:
Lubos Motl já tem um perfil mais estabelecido, com 2.661 seguidores e que existe desde 2009. Mantém um blog de curiosidades físicas e, adivinhe… de críticas a todas as políticas de combate à Covid-19.
A resposta à questão levantada por Lubos Motl (se havia uma fonte oficial para a informação de que o jogador havia tomado a vacina da Pfizer) foi excluída pelo autor. Mas eu achei de outra forma (tuítes são eternos…).
O perfil GeraYaYo2 respondeu que a informação foi dada pelo chefe da equipe médica do Inter de Milão (onde Eriksen joga) à Radio Sportiva, da Itália. Esta resposta foi imediatamente retuitada por Lubos Motl.
Seguindo Lubos Motl, temos Alex Berenson. Mr. Berenson já é alguém bem mais conhecido. Autor do livro “Tell Your Children: The Truth About Marijuana, Mental Illness, and Violence”, e ex-reporter do New York Times, Berenson tem cerca de 270 mil seguidores no Twitter. Ele retuítou o tuíte de Lubos Motl como figura, o que manteve o tuíte íntegro mesmo depois de retirado. O retuite começa com um “Aí está”, como que provando o ponto que ele tem feito, de que as vacinas são perigosas.
Como bom jornalista, ele toma o cuidado de dizer que não tem a fonte original da notícia. Como mau jornalista, ele retuita antes de se certificar que a fonte original existe.
A farsa foi desmontada em algumas horas pela própria Radio Sportiva, que tuitou o seguinte:
Não precisa saber italiano para entender o que está sendo dito: “As informações reportadas no tuíte são falsas”.
Claro que, antes desse desmentido, o tuíte já havia rodado o mundo e chegado por aqui.
A dinâmica das Fake News
O que faz as pessoas espalharem notícias de procedência duvidosa? Simples: elas confirmam uma teoria. Note que o autor e todos os que retuitaram a “notícia” tomam o cuidado de não fazer a correlação entre o mal súbito do jogador e a vacina. O primeiro gajo descreve uma pessoa absolutamente saudável que tem um mal súbito e deixa cair que havia tomado a Pfizer. O físico tcheco pede a fonte, e GeraYaYo2 inventa que ouviu na Radio Sportiva. Lembrando que GeraYaYo2 aparentemente é canadense.
Já o físico tcheco passa a informação adiante comprando a história da rádio italiana, e por sua vez é retuitado pelo jornalista americano. Este também toma o cuidado de dizer que não teve acesso primário à fonte, mas retuita do mesmo jeito. Por fim, o nosso jornalista brasileiro da Terça Livre repete a história, tomando o cuidado de dizer que não há nada que ligue a vacina ao mau súbito. “Mas o questionamento é grande”, joga no final do tuíte.
É essa a dinâmica. Não há informações, apenas uma grande sombra de suspeição. A rigor, a fake news refere-se apenas à informação de que um dirigente da Inter teria dito à rádio italiana que o jogador dinamarquês teria se vacinado com a Pfizer. Afinal, era preciso ter uma fonte, qualquer uma. Alguém fisgou a isca e passou adiante. E é neste ponto que se apegam os que espalharam a notícia: a fonte pode ter sido falsa, mas a notícia é mais do que real.
Quem foca na fake news perde o foco no que é realmente relevante
Depois de remover o tuíte falso, o físico tcheco tuitou o seguinte:
Notem como Lubos Motl não desiste da grande tese: as vacinas fazem mal e podem causar mortes. O fato de a notícia específica da rádio italiana ser falsa é um mero detalhe, irrelevante até. O mesmo podemos ver no perfil do jornalista americano, que fixou uma thread em seu perfil contando a história de uma garota que faleceu de miocardia após ter tomado a segunda dose da vacina da Moderna:
Parece-me que a grande questão aqui não é saber se as vacinas podem causar reações e, em casos extremos, até a morte. Todo e qualquer remédio pode causar reações adversas, basta ler na bula. A questão é: qual a chance de isso acontecer?
Em remédios aplicados a pequenas populações, as reações adversas não chamam a atenção. Afinal, são eventos raros. Em grandes populações, no entanto, os eventos adversos podem ser mais notados, pois são em maior número. Estatisticamente falando, no entanto, continuam sendo improváveis.
Aquele “ALERT” retuitado pelo físico tcheco e reproduzido acima, por exemplo. Trata-se de uma reportagem de um site, digamos, especializado nesse tipo de teoria (thebeltwayreport.com). A reportagem cita um report do próprio CDC, que estaria admitindo o aumento brutal de mortes devidas à vacinação. Então, você vai na fonte, e verifica que se trata das estatísticas VAERS – Vaccine Adverse Event Reporting System. Trata-se de um sistema que aceita relatos de reações adversas, mas que ainda não foram verificadas. Ou seja, não se sabe se essas reações foram realmente causadas pelas vacinas.
Esta matéria da Reuters traz as conclusões de um estudo israelense sobre reações adversas causadas pela vacina da Pfizer. Como sabemos, Israel está à frente de qualquer outra nação em termos de vacinação, e 100% das vacinas foram da Pfizer. Um perfeito campo de testes, portanto. As conclusões: de dezembro de 2020 a maio de 2021, foram reportados 275 casos de miocardia entre mais de 5 milhões de pessoas vacinadas. 95% dessas pessoas não passaram mais do que quatro dias no hospital.
O fato é que a chance não é zero de ter miocardia, mas é extremamente baixa. 5% de 275 casos em 5 milhões significa uma probabilidade de 1 em 360 mil. A chance de morrer de Covid em uma política de imunidade de rebanho (também conhecida como “vamos voltar a viver e esquecer essa doença”), considerando um índice de fatalidade de 0,1% e 70% da população pegando a doença, é de 1 em 1.400. Ou seja, uma chance 250 vezes maior do que morrer de miocardia.
Enfim, a radio italiana fake é o que tem de menos importante nessa história. O mais estarrecedor é a campanha contra as vacinas, que permitem diminuir em 250 vezes a chance de morrer. Essa é a verdadeira insanidade.
O autor começa o artigo contrapondo dois exemplos de restaurantes nos EUA. O primeiro, em Mendocino, California, avisa que usar máscaras dentro do salão acarretará uma taxa adicional de 5 dólares. O segundo, em Washington D.C., avisa que, sem máscara, não será servido hummus.
As máscaras, mais que uma questão de saúde pública, se transformaram em uma questão política. Antes de avançar, permitam-me uma pequena digressão.
Entre 2009 e 2014, viajei a trabalho ao Japão uma vez por ano. Uma das muitas coisas que me chamaram a atenção era o fato de alguns usarem máscaras ao andarem na rua ou em transporte público.
Estas fotos foram tiradas por mim mesmo. Não era a maioria, mas também não era difícil encontrar crianças, jovens e adultos usando máscara. Perguntei aos meus anfitriões o porquê daquilo. A resposta foi meio óbvia: ou porque estavam ligeiramente resfriados e não queriam passar a doença adiante, ou porque tinham receio de pegar doenças pelo ar e queriam se proteger.
As máscaras eram, então, uma forma de profilaxia. Só isso. Em um país que sofreu muito com a epidemia de SARS em 2003, aquele comportamento era natural. Tratava-se apenas de uma decisão relacionada com a saúde própria e de terceiros. Não havia conotação política.
Como um simples pedaço de pano no rosto se transformou no símbolo maior da verdadeira guerra cultural que se instalou no Ocidente?
O início de tudo
No início, não eram as máscaras. Ou melhor, máscaras não eram recomendadas, a não ser para os profissionais de saúde e pessoas infectadas. Por exemplo, na edição de 06/03/2020 do Estadão, podíamos ler a seguinte orientação:
Isso não impediu, no entanto, que o próprio presidente Bolsonaro aparecesse de máscara em live no dia 13/03/2020, ao lado do então ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta.
Ou seja, apesar de não ter caráter obrigatório, o presidente foi garoto-propaganda do uso da máscara no início da pandemia.
No dia 15/03/2020, Bolsonaro foi a uma manifestação em seu apoio.
Observe que as críticas da imprensa e dos infectologistas se restringiram à falta de isolamento social. Não há menção à falta de máscaras, nem do presidente e nem dos manifestantes, em uma evidência de que este não era um problema àquela altura.
Em foto do dia 08/04/2020, vemos pessoas em transporte público de São Paulo sem máscaras. Este fato não é citado na reportagem. Ainda não era um problema.
Na posse do novo ministro da saúde, Nelson Teich, em 17/04/2020, nem sinal de máscaras, mesmo por parte do novo ministro. Não houve críticas a este fato nas reportagens da época.
Em 19/04/2020, nova manifestação com a participação do presidente. Existe menção à aglomeração e à tosse de Bolsonaro, mas ainda não à falta de máscaras.
Essa não-orientação pelo uso de máscaras não foi exclusividade brasileira. Pelo contrário. A própria OMS, no início, recomendava o uso de máscaras apenas em situações muito específicas. Era o que podíamos ler em seu site em 18/03/2020:
• Se você for saudável, só precisará usar máscara se estiver cuidando de uma pessoa com suspeita de infecção por nCoV 2019.
• Use uma máscara se estiver tossindo ou espirrando.
• As máscaras são eficazes apenas quando usadas em combinação com a limpeza frequente das mãos com produto à base de álcool ou sabão e água.
• Se você usar máscara, deve saber como usá-la e descartá-la de maneira adequada.
Foi apenas no início de abril que o C.D.C – Centers for Disease Control e Prevention, dos EUA, mudou a sua orientação e recomendou o uso de máscaras. Em sua página, as orientações começavam com a seguinte frase: “Quando você usa uma máscara, você protege outros assim como você mesmo. Máscaras funcionam melhor quando todo mundo usa uma”.
Mas esta reportagem do New York Times mostra uma Casa Branca dividida. No mesmo dia em Anthony Fauci, o todo poderoso diretor do U.S. National Institute of Allergy and Infectious Diseases e chefe do conselho médico de apoio à presidência, recomendou o uso de máscaras, o presidente Donald Trump veio a público dizer que aquela se tratava de uma orientação, não uma obrigação, e que ele mesmo não usaria. Talvez possamos estabelecer aqui o marco zero da politização do uso das máscaras.
De início, essa polêmica tinha, de fato, embasamento científico. Lembrando que a própria OMS não havia mudado a sua orientação (isso aconteceria somente em junho), a Dra. Deborah Birx, chefe da equipe médica da Casa Branca, afirmou, em uma coletiva de imprensa, que tinha receio que, se as pessoas usassem máscaras, poderiam se sentir à vontade para aglomerar, o que poderia ser ainda pior. Aliás, na foto desse coletiva de imprensa no início de abril, tanto ela quanto o Dr. Fauci não estão usando máscaras.
Trump justificou sua negativa em usar máscara pelo relacionamento que tinha com chefes de estado, o que mostra que as máscaras, naquela altura, ainda eram vistas com certa estranheza. A reportagem do NYT chama a atenção para este ponto: o cidadão ocidental não está acostumado a esconder o rosto, é algo estranho à sua cultura.
No Brasil, somente em 03/05/2020, em cobertura de nova manifestação em apoio ao presidente, há, pela primeira vez, alguma menção à ausência de máscaras na reportagem do Estadão.
Começava a batalha. Não a batalha da saúde, mas a batalha política.
Máscaras e política
Por que as máscaras são o símbolo maior dessa batalha política? Porque é visível. Ninguém vê se você pegou ou não pegou Covid, se você tomou ou não cloroquina, se você tomou ou não a vacina. Esses atos são, digamos, declaratórios. Máscaras, não. Máscaras são visíveis. Todo mundo vê se você está usando ou não.
As máscaras passaram a ser muito mais do que uma proteção. Para os que defendem a sua adoção, as máscaras se tornaram um sinal público de virtude. Quem usa máscara dá valor à vida, pensa no seu semelhante. Por outro lado, quem não a usa, é um egoísta que despreza a vida do seu semelhante.
Por outro lado, os que são contra o uso das máscaras encaram os que usam como covardes, que abrem mão de sua liberdade em nome de uma política inútil, imposta, em última análise, para manter a população sob controle. Trata-se, a exemplo do sinal externo de virtude citado antes, também de uma demonstração de superioridade moral. Ainda em março de 2020, publiquei em meu perfil no FB a seguinte imagem que, na época, não passava de uma piada, mas que depois foi ficando mais séria:
Está aí o símbolo de virilidade, o mesmo usado várias vezes pelo presidente, quando, por exemplo, chamou de “maricas” todos os que se protegiam de alguma forma da doença. Além disso, o uso de máscaras poderia causar mais mal do que bem à saúde, segundo algumas teorias que circularam por aí, como a do post abaixo.
Então, temos de um lado os que fazem da máscara um símbolo de virtude. E, do outro lado, os que fazem da falta da máscara também um símbolo de virtude. São virtudes diferentes, sem dúvida, mas ambas símbolo de superioridade moral. Quando chegamos neste ponto, a verdade, como em todas as guerras, é a primeira vítima.
Ciência
A ciência é sempre invocada como o árbitro imparcial das questões envolvendo a Covid-19. Como instância não engajada politicamente, a ciência teria o poder de trazer racionalidade à discussão sobre as máscaras (e, de resto, a todas as questões envolvendo a Covid-19). A má notícia é que a ciência não tem o conhecimento divino da realidade das coisas, aquele conhecimento definitivo, que apreende a realidade de uma só vez e de maneira definitiva. A ciência é uma construção humana, em sua constante luta por compreender a realidade à sua volta, com base em uma metodologia amplamente aceita, chamada de método científico. Se compreendida desta forma, a ciência é essa criação humana que nos tirou da idade da pedra para onde hoje estamos.
No entanto, quando a ciência é encarada como um oráculo infalível, assumindo o lugar da onisciência divina, passa a ser utilizada como instrumento político pelos dois lados da disputa. De um lado, a palavra definitiva sobre o que deve e o que não deve ser feito. De outro, a exploração da desmoralização de orientações antes tomadas como absolutas.
Por exemplo, recentemente se chegou à conclusão de que o vírus se transmite preponderantemente pelo ar, sendo muito remota a possibilidade de transmissão por tocar em superfícies (veja, por exemplo, esta reportagem da Economist). Pouco se falou sobre isso, mas este achado nos deixa em posição ligeiramente ridícula quando nos lembramos do “teatro da higiene” do início da pandemia, em que alguns de nós chegamos a lavar todas as compras de supermercado com álcool gel. A questão das máscaras é típica: a mudança de orientação é até hoje lembrada como uma “desmoralização da ciência”.
Além disso, os cientistas, assim como os economistas, também têm lado. As conclusões científicas a respeito da Covid-19, uma doença nova, são bem menos definitivas do que nos querem fazer crer cientistas que pontificam verdades absolutas. Sem querer, trabalham contra a causa que defendem, pois novas descobertas desmoralizam aquelas verdades que não eram mais do que provisórias.
Enfim, a ciência, como qualquer outra criação humana, trabalha a serviço da política, não o contrário. Não que não exista conhecimento científico e tudo seja não mais que narrativa. Longe disso. O problema é usar a ciência como narrativa, um vício que acaba se voltando contra a própria atividade científica.
O futuro das máscaras
No dia 13/05, o C.D.C. chocou o mundo ao recomendar que todos os que já tivessem tomado a vacina não precisariam mais utilizar máscaras. Depois de um ano e meio de terror, sair de casa sem máscara é quase como exibir-se somente com roupas de baixo. Houve contestações por vários epidemiologistas. Mas o C.D.C., em tese, se guia pela ciência, o que só demonstra a ambiguidade de toda essa situação.
O fato é que máscaras passaram a ser um símbolo político. Nos países do oriente, o uso de máscaras segue a lógica da doença: evitá-la e evitar passar para outros. No ocidente, no entanto, as máscaras serão a lembrança de uma batalha política que dividiu os cidadãos em dois campos irreconciliáveis.
Depois que tudo isso passar, seremos capazes de usar máscaras quando estivermos com uma gripe? Não fazíamos isto antes, faremos agora? Ou serão as máscaras a lembrança do pior pesadelo coletivo pelo qual passou a nossa geração, de modo que o seu uso será como que um tabu? E pior: o uso da máscara (ou o seu não uso, em caso de doença) não será considerado uma espécie de desafio ao campo político adversário?
São questões em aberto. Será interessante observar como se desenvolverá esse fenômeno sociológico.
Destaquei abaixo trecho do editorial do Estadão a respeito de um acordo no âmbito do G7, de modo a tributar multinacionais. Seria o fim dos chamados “paraísos fiscais”, onde essas maldosas fontes de desigualdade escondem os seus polpudos lucros, evitando, assim, que os governos possam usar esse dinheiro para mitigar o sofrimento dos mais pobres.
O trecho destacado já traz, em si, o ceticismo do editorialista com relação a essa arrecadação adicional de impostos. Não do ponto de vista técnico, ainda que seja uma tarefa difícil tributar entre fronteiras. Mas do ponto de vista da aplicação do dinheiro arrecadado: “se o dinheiro fosse bem aplicado, sem interferência do Centrão e de ministros gastadores”.
Confesso que tive que abandonar a leitura nesse ponto por conta de um ataque irreprimível de risadas.
Não vou nem perder muito tempo com a impropriedade: se não for o “Centrão” (Legislativo) e nem “ministros gastadores” (Executivo), quem vai definir o que fazer com o dinheiro dos impostos? O Judiciário? Anjos travestidos de deputados e ministros? O que temos é isso aí, e são esses que estão aí que vão decidir o destino do nosso dinheiro. Esse “se” não faz o mínimo sentido.
Mas o buraco é mais embaixo, como diria o poeta.
Não são nem esses os que realmente decidem. Foram outros deputados e ministros, no passado, que já decidiram pelos que hoje estão no poder. Cerca de 93% do orçamento federal está vinculado a gastos decididos nas décadas passadas. Os atuais legisladores e ministros têm pouquíssima margem de manobra.
Acrescentei duas notícias para ilustrar esse ponto: o imbróglio das dívidas dos Estados (R$350 bilhões são impagáveis) e o furo atuarial da previdência dos militares, calculado em R$700 bilhões. Ambos os gastos deverão ser cobertos por impostos no futuro. São somente amostras de como o grosso do nossos gastos já está decidido.
Claro que o Legislativo e o Executivo atuais poderiam mudar o curso dessa história, mexendo em privilégios adquiridos. Por exemplo, grande parte do rombo dos Estados tem origem na previdência dos funcionários públicos. A alíquota de contribuição já foi foi elevada em alguns Estados de 11% para 14%, mas está longe de resolver o problema. E sempre que se fala sobre o assunto, existe unanimidade em dizer que o tema não é “popular”, podendo prejudicar ambições eleitorais. Ora, se conter gastos com funcionalismo público é “impopular”, isso só significa que o peso do funcionalismo já ficou tão grande na sociedade brasileira que é impossível reverter o quadro. E mesmo que Legislativo e Executivo fizessem a sua parte, teríamos sempre um Judiciário pronto a defender os “mais pobres”.
Voltando à tributação das multinacionais: hoje, o dinheiro salvo da sanha arrecadatória é utilizado para novos investimentos por parte dessas empresas ou para pagar dividendos para os seus acionistas, a maioria pequenos investidores que têm nesses dividendos a sua renda para consumo. Os grandes acionistas, por outro lado, terão menos dinheiro para os seus gastos com luxo e suas ações de filantropia. Tudo isso para que os governos possam continuar sustentando suas máquinas de fazer o bem.