Uma das cenas mais icônicas da fantástica obra cinematográfica Adeus, Lênin, ocorre quando a personagem principal é “cumprimentada” por uma estátua de Lênin que acabou de ser retirada de seu pedestal. Era a Alemanha Oriental pós queda do Muro de Berlim, e estátuas de Lênin estavam perdendo o seu lugar em vários lugares da Cortina de Ferro.
Quando Saddam Hussein foi morto pelas tropas americanas no Iraque, suas estátuas foram devidamente retiradas, de modo a simbolizar uma nova era para o país.
Em São Paulo, o famigerado Minhocão tinha o nome de Presidente Costa e Silva, o nosso segundo general-presidente. Na impossibilidade de derrubar a coisa (ainda que muitos queiram, mas não por razões políticas), a Câmara de Vereadores da cidade decidiu trocar o nome da via elevada para João Goulart. Foi a forma possível de se derrubar um monumento em homenagem a um dos próceres da ditadura militar.
Qual a semelhança entre esses episódios e a depredação da estátua de Borba Gato e de várias outras ao redor do mundo, de personagens escravocratas e colonialistas? A reinterpretação da história. Qual a diferença? Nos episódios descritos acima, a história realmente mudou. A retirada das estátuas e a mudança do nome do viaduto se seguiram a uma mudança histórica. Na verdade, simbolizaram a própria mudança. Lênin, Saddam e Costa e Silva representavam um regime político que foi ultrapassado. Primeiro se mudou o regime, e só depois os símbolos foram retirados.
E o que dizer de Cristóvão Colombo, Thomas Jefferson e Borba Gato, cujas estátuas foram recentemente vandalizadas ou retiradas? Os regimes políticos que representavam foram ultrapassados? Claro que não! Estamos vivendo, hoje, em um mundo construído por esses personagens. Para que realmente representasse uma mudança, precisaríamos devolver toda a América para os índios e cada um voltar ao seus países de origem. Uma óbvia impossibilidade.
Diante da impossibilidade de mudar o regime e a realidade que nos cerca, construída ao longo de séculos, o que resta? Remover esses símbolos como uma forma de protesto bobo, que não muda absolutamente nada. Não conheço quem botou fogo no Borba Gato, mas sou capaz de apostar que não havia nenhum índio. Provavelmente se tratava de um grupo de jovens de classe média, confortavelmente instalados em seus apartamentos, nos quais índios não entram. É mais fácil queimar estátuas do que mudar o seu modo de vida, herdado da ação dos bandeirantes que exploraram o Brasil e dos europeus que “invadiram” a América.
Quer tirar a estátua do Borba Gato? Que se passe uma lei para tal. Se, no debate democrático, se decidir que a figura do bandeirante não deve ser homenageada, que se retire. O que não dá é fazer justiça com as próprias mãos. Imagine se cada grupo que se sentir prejudicado sair queimando patrimônio por aí.