A comparação da economia de um país com as finanças de uma família tem suas limitações, mas, às vezes, é muito útil para compreender o que está acontecendo.
Para uma família que vive acima do limite de seu orçamento, sem reservas e que só consegue manter o seu padrão de vida endividando-se, uma grande despesa inesperada cai como uma bomba. Pode ser um acidente de trânsito ou uma doença, que exigirá ainda mais desembolsos de um orçamento que já não consegue pagar nem as despesas correntes.
Esta é a situação do Brasil, hoje. O orçamento já apertado foi atingido, no dizer do ministro da Economia, por um meteoro: precatórios no valor de R$ 90 bilhões, a serem pagos no ano que vem.
Vamos voltar um pouco no tempo para entender o imbróglio. Em 2016, ao assumir o governo, a primeira medida que o então presidente Temer patrocinou no Congresso foi o chamado Teto de Gastos. Com a morte dos superávits primários no governo Dilma, os credores da dívida pública exigiam algum outro mecanismo para garantir que a dívida não estava em trajetória explosiva e, portanto, impagável. O Teto de Gastos foi esse mecanismo, que permitiu o controle da inflação mesmo com taxas de juros bem mais baixas do que nos governos anteriores.
Quando aprovado, o Teto permitia uma folga no orçamento para o pagamento das chamadas despesas “não obrigatórias”, ou seja, aquelas que não estão cravadas na Constituição. O grosso das despesas obrigatórias são, basicamente, o pagamento de aposentadorias e dos salários dos funcionários públicos, além dos precatórios. As não obrigatórias incluem desde investimentos em estradas, passando pelo bolsa família, até chegar nos serviços de limpeza das universidades federais, na verba para o censo e no papel para imprimir passaportes.
Como funciona o teto? Simples: as despesas do setor público no ano de 2016 são o limite de gastos do governo federal, com algumas poucas exceções, como a capitalização de empresas estatais e o Fundeb, que não entram nesse cálculo, A cada ano, esse limite é reajustado pela inflação do ano anterior. Qual o problema? As despesas obrigatórias crescem, a cada ano, acima da inflação, diminuindo o espaço para as despesas não obrigatórias.
Vamos colocar isso em números. O último valor que vi do IFI (Instituição Fiscal Independente) para o valor mínimo das despesas não obrigatórias de modo que o governo não entrasse em shutdown era de R$ 100 bilhões. Com uma folga no orçamento do ano que vem de R$ 120 bilhões, ainda sobrava uns trocos para dar uma turbinada no bolsa família e aumentar o fundo eleitoral dos partidos. Estava todo mundo feliz. Até que detectaram o meteoro dos precatórios vindo em direção a Brasília, com gastos de R$ 40 bilhões além do previsto. Parece mentira que, em um orçamento de R$ 1,6 trilhões, não se encontre espaço para esses R$ 40 bilhões adicionais. Mas é verdade. O nosso orçamento é tão amarrado, são tantos os interesses envolvidos, que a única saída parece ser não pagar esses R$ 40 bilhões. É essa a proposta do ministério da economia, ao sugerir o parcelamento e a criação de um fundo de privatizações dedicado ao pagamento dessas despesas, que ficariam fora do teto de gastos. Aliás, aparentemente, essa proposta libera até mais do que os R$ 40 bilhões, o que permitirá turbinar o bolsa família e as emendas parlamentares. A felicidade volta a Brasília.
Mas tem alguém que não está nada feliz com essa história: o credor da dívida. As taxas dos títulos públicos de vencimentos mais longos já ultrapassaram 10% e o câmbio já encosta nos R$ 5,50, apesar de um Banco Central que promete subir a Selic sem dó. O motivo é simples: essa manobra está sendo vista como um drible no teto de gastos. Parafraseando o famoso “não é pelos R$ 0,20”, o mercado está dizendo “não é pelos precatórios”, mas pela sinalização de que, quando a coisa aperta, Brasília vai tentar encontrar uma forma criativa de manter tudo como está, sem sacrificar nenhum de seus interesses. E o pior: desta vez, quem está patrocinando o furo do teto é, em tese, o guardião da cofre. Quando nem o ministro da economia defende a regra fiscal vigente, o credor fica pendurado na brocha.
O Brasil é um país com imensas necessidades. Quanto o governo deveria gastar para atendê-las, se R$ 1,6 trilhão não é suficiente? R$ 2 trilhões? R$ 3 trilhões? Podemos eliminar logo de uma vez essa regra do teto e satisfazer essas necessidades. Claro que os credores da dívida cobrariam um preço por isso. Teríamos juros altos, câmbio desvalorizado e, no final da linha, inflação. Basta dar uma olhada na Venezuela para entender onde essa estrada termina.
Alguns dirão que estou exagerando. Ninguém está propondo o fim da regra do teto, é só uma adequação de uma despesa inesperada. Sim, essa é a desculpa da família que vive no limite da responsabilidade. O desabamento de edifícios normalmente não ocorre por causa de terremotos. Os edifícios desabam porque, durante anos, se negligenciou a sua manutenção. A estrada que leva ao desastre é longa, mas, com perseverança, um dia se chega lá.