Bolsonaro, Jango e as esferas de poder

“Ou o chefe desse Poder enquadra o seu, ou esse Poder vai sofrer o que não queremos”.

Kissinger, em sua obra Diplomacia, distingue duas formas de exercício do poder: as “esferas de poder” e o que ele chama de “wilsonianismo”, em referência ao presidente americano Woodrow Wilson no tempo da 1a guerra mundial. O wilsonianismo, em resumo, é uma doutrina que prega a superioridade moral da paz e, segundo a qual, as nações deveriam conviver sob certos princípios moralmente superiores. A Liga das Nações foi fundada sob o signo do wilsonianismo. Já as esferas de poder são o bom e velho “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Kissinger descreve a relação de forças europeia até a eclosão da 2a guerra com base nas “esferas de poder”. Não precisa dizer qual dessas duas abordagens funcionou melhor para explicar o desenrolar dos acontecimentos.

Lembro dessa obra de Kissinger porque estamos diante de uma luta entre “esferas de poder”. Cada lado da contenda reivindicará superioridade moral sobre o outro, no melhor estilo wilsoniano. Mas o resultado final será dado pelas velhas esferas de poder. Como diz o velho refrão futebolístico, chegou a hora de ver quem tem mais garrafa vazia pra vender.

Voltemos à frase que abre este post. Só a profere quem está bem posicionado na mesa com um zap (linguagem de jogador de truco, que significa posição superior para ganhar a mão). Para o bem de Bolsonaro é bom que ele não esteja blefando, porque o outro lado está se organizando para gritar um seis (que significa desafiar o adversário a mostrar suas cartas).

Há uma contradição em termos nas manifestações pró governo. Os apoiadores do presidente se gabam de formarem um exército pacifico, incapaz de matar uma mosca. São famílias, idosos e cachorros que só querem um mundo melhor. Isso funciona em um mundo wilsoniano. No mundo das esferas de poder, é preciso ter instrumentos de dissuasão. É preciso ficar claro para o outro lado qual o passo seguinte possível e quanta dor esse passo pode causar. Manifestações pacíficas de famílias, idosos e cachorros podem ser tudo, menos instrumento de dissuasão. Não em um mundo em que prevalece a lógica das esferas de poder.

A contradição das manifestações está justamente nisso: para que a ameaça de Bolsonaro seja crível, é preciso que haja o emprego da força, com as forças armadas ao seu lado. Um golpe. São manifestações pacíficas a favor de uma tomada de poder não pacífica. E aqui, pouco importa a filigrana de se classificar o golpe como um autogolpe ou um contragolpe. Essas discussões podem servir para dar um bom pretexto moral para uma ação de força, no melhor estilo das “esferas de poder”. Mas o que vai definir o resultado final do jogo é o lado que tem o zap na mão.

E o zap não são as forças armadas, ou só as forças armadas. Nem tampouco centenas de milhares de famílias, idosos e cachorros nas ruas. No golpe de 64 havia forças armadas e famílias nas ruas. Mas, além disso, havia o apoio de todo o establishment político, econômico e midiático à deposição de Goulart. O então presidente encontrava-se isolado e lançava mão de comícios e eventos em clubes militares para mostrar força. Neste momento, Bolsonaro me lembra Jango.

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