O prêmio Nobel da Paz foi dividido entre dois jornalistas, uma das Filipinas e o outro da Rússia. Ambos representam o jornalismo livre, que enfrenta o governo de plantão, revelando sem medo seus podres.
Imprensa livre costuma ser considerada uma das características basilares de democracias saudáveis, sendo chamada, algumas vezes, de “o quarto poder”. Mas o que é, afinal, “imprensa livre”?
Talvez seja útil começarmos pelos exemplos extremos. Por exemplo, em Cuba ou na Coreia do Norte existe somente a imprensa oficial, do regime. Neste caso, não há que se falar em imprensa livre, por definição.
O problema na definição do conceito começa a complicar quando temos imprensa não governamental. Como medir a liberdade dessa imprensa? Foi com o objetivo de responder a essa questão que o Repórteres Sem Fronteiras elaborou o World Press Freedom Index, que tem a pretensão de medir o quanto um país respeita a liberdade de imprensa.
Os critérios do índice são os seguintes:
- Pluralismo: mede o grau de diversidade de opiniões na mídia
- Independência da mídia: mede o quanto a imprensa consegue trabalhar longe de influências governamentais, empresariais ou religiosas
- Ambiente e autocensura: mede o ambiente geral de liberdade de imprensa
- Legislação: impacto das leis do país sobre a produção jornalística
- Transparência: mede a transparência das instituições das quais depende a produção de notícias
- Infraestrutura: refere-se ao apoio físico para a produção de notícias.
- Abusos: mede a violência contra jornalistas
Os seis primeiros critérios são ponderados em um score geral, sendo que o primeiro (pluralidade) tem peso de 33,5%, os critérios 2 a 4 têm peso 16,5% e os critérios 5 e 6 têm peso 8,25%. O critério 7 (abusos) é usado para construir um segundo score, pois é possível que a violência mascare as respostas obtidas para os outros critérios. O score final é o pior dos dois.
As notas para esses critérios são obtidas através de um questionário respondido por jornalistas, sociólogos e advogados.
Bem, até aqui, os critérios do índice. Agora vamos aos resultados. O Brasil está mal colocado. Sua pontuação classifica o país como um lugar “difícil” para a imprensa, a um degrau apenas de países como Cuba e Coreia do Norte. E é aqui que começa a discussão sobre o que significa “liberdade de imprensa”.
A página do Repórteres sem Fronteiras dedicada ao Brasil gasta mais ou menos metade do seu texto desancando o governo Bolsonaro.
Quem chegasse de Marte ontem poderia ter a impressão de que, antes do atual governo, o Brasil era um exemplo de liberdade de imprensa. Nada mais longe da realidade. O gráfico abaixo mostra a evolução de nossa posição e pontuação desde 2014.
Sim, temos hoje a pior pontuação desde 2014, mas a mesma colocação que no ranking daquele ano. E a pontuação, apesar de alta (quanto maior a pontuação, pior a liberdade de imprensa), não mudou de maneira relevante nos últimos anos. Ou seja, a Repórteres sem Fronteira está fazendo proselitismo político, o que, em tese, não coaduna com a postura de jornalistas independentes. Não que tudo o que está escrito não seja verdade, mas quem não perde tempo explorando o índice sai com a impressão de que este governo é o responsável pela nota ruim do país. Jornalismo é informação e contexto, e se a pessoa sai com a impressão errada depois de ler um texto, então o jornalista falhou em sua missão.
Outro ponto que me chamou a atenção foi o trecho em que a entidade critica a concentração da mídia em mãos de poucas famílias. Essa crítica aparece na página da entidade nas edições de todos os rankings. Esse é o discurso dos petistas: a “regulação da mídia”, um tema caro ao partido, nada mais é do que retirar o “monopólio” da informação das mãos de “meia dúzia de famílias”. A “ley de medios” na Argentina, patrocinada pelo governo Cristina Kirshner, nada mais foi do que isso. Esse é o modelo. Curiosamente, mesmo com essa violenta intervenção na imprensa, a Argentina tem uma nota melhor do que o Brasil. Lembre-se de que quem preenche os questionários são jornalistas e sociólogos.
É claro que o domínio econômico sobre os “meios de produção” jornalísticos poderia levar, em tese, a um jornalismo manietado por interesses econômicos ou políticos. Mas essa não é uma realidade necessária. Se fosse, imprensa confiável seria somente aquela de fundo de quintal. E não se faz jornalismo de qualidade sem os meios materiais que somente uma grande empresa de jornalismo é capaz de proporcionar. Ao apontar a “concentração” dos meios como um mal em si, a Repórteres sem Fronteira faz um juízo que denigre a própria profissão jornalística.
A direita autoritária também não gosta da mídia, mas por outro motivo: as redações estariam “coalhadas de comunistas”. A solução para isso não é intervir no domínio da mídia, mas construir uma mídia alternativa, onde uma verdade própria é construída. De qualquer forma, isso parece ser menos invasivo do que intervir nas empresas de jornalismo profissional. Apesar de Bolsonaro não ser exatamente simpático ao jornalismo profissional, não parece ter intervindo indevidamente neste espaço. Nossa nota é ruim há muitos anos porque os jornalistas de pequenas e médias cidades são constantemente perseguidos pelo poder local sob o olhar complacente da justiça (isso está no texto também). A grande imprensa nacional é sim livre, podendo fazer crítica aos governantes de plantão sem problemas.
O prêmio Nobel foi designado a dois jornalistas que verdadeiramente sofrem perseguição em seus países. A nota da Repórteres sem Fronteira para Filipinas e Rússia são, respectivamente, 45,64 e 48,71, contra 36,25 do Brasil. Segundo a Repórteres sem Fronteiras, não estamos tão mal quanto esses dois países, mas estamos chegando lá. Quem sabe com a “regulação da mídia” proposta pelo PT não melhoremos o nosso ranking.