Nos últimos dias, vimos o bolsonarismo virando suas baterias para o mercado financeiro. Desde o próprio presidente, que chamou o mercado de “nervosinho”, passando pelo ministro da Economia, que afirmou que prefere não tirar 10 no fiscal para ajudar os “mais necessitados”, até as redes sociais, que estão acusando os que são contra o auxílio de serem os mesmos “liberais” que disseram para o povo ficar em casa.
O problema para os bolsonaristas é que, ao contrário das pessoas, não tem como cancelar o mercado. Pode xingar à vontade, o mercado estará lá, no dia seguinte, precificando as ações do governo. Trata-se de um “inimigo” de natureza diferente.
A maior parte dos brasileiros (o que inclui petistas e bolsonaristas, mas não só) acha que o mercado financeiro é um bando de meia dúzia de especuladores que ganham dinheiro às custas do sofrimento do restante dos brasileiros, incluído aí o presidente da república. Vou aqui procurar fazer um serviço de utilidade pública. Sabemos que o primeiro passo para resolver qualquer problema é diagnostica-lo corretamente. Vou procurar, neste post, definir a natureza do mercado financeiro. Dessa forma, o presidente e seus fãs poderão melhor enfrentar esse novo inimigo da pátria.
Para explicar o mercado, vou tomar como exemplo o dólar, mas o que vou explicar vale também para os juros e a bolsa. Como qualquer outro ativo, a cotação do dólar é fruto das negociações entre compradores e vendedores da moeda. Se há mais compradores do que vendedores, a cotação do dólar sobe, e vice-versa. Resta saber quem são esses compradores e vendedores e as suas motivações.
O senso comum atribui esse papel exclusivamente aos tais “especuladores”, seres das trevas que se reúnem em salas elegantes para manipular as cotações do dólar em seu próprio proveito. Os especuladores, de fato, existem, e abordaremos suas motivações por último. Antes disso, vamos discutir o papel de outros agentes na formação do preço do dólar, e que são muito mais importantes na tendência de longo prazo.
O primeiro agente são as empresas que dependem, de alguma maneira, do câmbio. Podem ser exportadores, importadores, multinacionais que recebem investimentos ou remetem dividendos. Há uma gama enorme de grandes empresas que se enquadram em alguma dessas categorias. Seus administradores estão o tempo inteiro avaliando o cenário para decidir se compram ou vendem dólares. Agora mesmo, por exemplo, as empresas exportadoras brasileiras não estão internalizando as suas vendas no exterior, preferindo manter os dólares lá fora. Ao fazer isso, não vendem dólares para comprar reais, o que ajuda a desvalorizar o real.
Um segundo agente são os próprios bancos que financiam as empresas que têm operações no exterior. Ao financiar essas empresas em dólar, os bancos podem tomar decisões sobre proteger ou não seus balanços da variação cambial.
Um terceiro agente são as pessoas físicas. Seja por motivo de viagem internacional, seja por quererem diversificar seu patrimônio em outras moedas, as pessoas físicas também compram dólares. O ministro da Economia, com sua offshore, é somente um exemplo. Uma outra forma de comprar dólares é aplicar em fundos com variação cambial no Brasil. Neste caso, o gestor desses fundos é obrigado a comprar ativos dolarizados, pressionando a cotação do dólar para cima.
E por falar em gestores de fundos, chegamos ao quarto agente, os especuladores propriamente ditos. Existem dois tipos de gestores de fundos: aqueles que fazem a gestão de fundos que têm necessariamente exposição ao dólar, e aqueles que usam o dólar somente para atividades especulativas, ou seja, procuram simplesmente lucrar com a variação da moeda.
O primeiro tipo é escravo do investidor: se o investidor escolheu um fundo cambial, cabe ao gestor somente comprar os dólares, sem discussão. Esse é o objetivo do fundo, e foi por isso que o investidor colocou seu dinheiro ali. Mas é o segundo tipo o de maior interesse aqui.
O gestor de patrimônio que usa o câmbio para tentar ganhar algum dinheiro é agnóstico. Isso quer dizer que tanto faz se o dólar sobe ou cai, o que interessa é estar na ponta certa quando uma dessas duas coisas acontecer. Esse gestor (que é o tal “especulador”) sabe que seu tamanho é minúsculo perto dos outros agentes (empresas, bancos e pessoas físicas em seu conjunto). Portanto, em um mercado gigantesco como o cambial, não há como sonhar em manipulação. O sonho do especulador é poder surfar a onda correta, seja de valorização ou desvalorização do dólar.
Para tomar suas decisões, o especulador procura antecipar o que os outros agentes vão fazer. Para isso, analisa os fundamentos que guiam as decisões de empresas, bancos e indivíduos. Sabemos que esses agentes, em países subdesenvolvidos, não costumam confiar muito em suas moedas. A desvalorização cambial nada mais é do que a desconfiança de que, no futuro, a moeda local estará depreciada, pela inflação, em relação à moeda estrangeira. Quando essa desconfiança aumenta, o real se desvaloriza.
Foi o que vimos na semana que passou. Mudar a regra fiscal de maneira casuística passa a mensagem de que o governo vai rodar a maquininha de imprimir dinheiro sempre que “imperativos políticos” prevalecerem. Assim, os tais “especuladores” somente estão procurando antecipar o que os outros agentes econômicos vão descobrir somente mais tarde. E pretendem lucrar com isso.
O governo quer acabar com a farra dos especuladores? Basta fazer a coisa certa. Assim, a inflação cai e o dólar também, punindo quem apostou no caos. E, para deixar claro, fazer a coisa certa não é demonizar o mercado nas redes sociais. O tal mercado não costuma se sensibilizar com isso.