Eugênio Bucci escreve hoje um artigo de comover o mais duro dos corações revolucionários. Eu ia destacar um trecho ou outro, mas resolvi reproduzi-lo por inteiro, pois se trata de uma peça única, sem costura.
O artigo trata da população de rua de São Paulo e aborda três aspectos: a glamourização de quem mora na rua, a eleição de culpados e a omissão dos “bons”.
A glamourização ocupa a maior parte do artigo. É de uma poesia que nos faz pensar se realmente aquelas pessoas necessitam de ajuda. São muito ordeiros, conversam como se estivessem em uma cidadezinha do interior e a moça é uma Cleópatra perdida na cidade grande. Temos muito a aprender com eles. Quase chegamos a pensar que a sua felicidade não merece ser interrompida.
No entanto, esse quadro idílico é abruptamente comparado com o gueto de Varsóvia. Sim, porque as situações são realmente muito comparáveis: lá, como aqui, temos um ditador que ordena arbitrariamente que famílias inteiras se mudem de suas casas para um determinado bairro. Reductio ad hitlerum detectado.
E quem seria esse ditador malévolo, que condena famílias inteiras à felicidade de morar na rua ou ao indizível sofrimento de viver em um gueto? (Eu realmente fiquei confuso com esse paradoxo). O suspeito de sempre: o sistema financeiro, que é o suco concentrado do capitalismo. Ah, esses hitlerizinhos que só pensam em seus lucros, gerando os sem-teto por algum processo não explicitado no texto. Nem precisa, porque está claro que o capitalismo é o mal.
O texto foi construído pelo articulista para arrancar suspiros dos seus pares em saraus regados por um bom vinho ao calor de uma lareira em uma casa alugada através do Airbnb em Campos do Jordão ou em um bar transado na Vila Madalena, onde, como sabemos, se tem a fórmula para acabar com todos os problemas do mundo: substituir o capitalismo selvagem por um outro mundo possível.
Aqui termina minha análise do texto e começa minha análise da situação. Como não sou poeta, a análise irá vazada em bullet points, como todo bom financista da Faria Lima faria:
– A população pobre vive nas periferias e nas favelas. O problema da população de rua extrapola a questão da pobreza, envolve drogas e doenças mentais. Está longe, muito longe, da glamourização que a esquerda faz da pobreza.
– A última informação que eu tenho, em conversa com uma assistente social da prefeitura, é que sobram vagas nos abrigos. Há uma relutância de dormir nesses abrigos por vários motivos. Não há como forçar as pessoas a deixarem as ruas. Qualquer iniciativa nesse sentido seria taxada pelos Buccis da vida como “higienização”. Já vejo um artigo comparando os abrigos a câmaras de gás.
– A esquerda normalmente torce o nariz para iniciativas, geralmente de cunho religioso, visando a mitigação dessa situação. Qualquer ação nesse sentido esconde a chaga do capitalismo e adia a verdadeira transformação da sociedade em um outro mundo possível. É preciso que essas pessoas continuem onde estão, de modo a lembrar a todos, o tempo inteiro, o quão cruel é o sistema em que vivemos.
– Por fim, meu usual suspeito para essa situação: pessoas como Bucci, que vivem do salário pago com o imposto cobrado dos descamisados, e que subsidia uma universidade para os filhos da classe média, para que estes aprendam como o sistema capitalista é perverso e, depois, escrevam artigos que arranquem suspiros do mais empedernido revolucionário.
Termino com uma música da Rita Lee que sempre me vem à mente quando leio artigos desse tipo:
“Me cansei de lero-lero / dá licença mas eu vou sair do sério / quero mais saúde / me cansei de escutar opiniões / de como ter um mundo melhor / mas ninguém sai de cima / desse chove-não-molha / eu sei que agora / eu vou é cuidar mais de mim”