Confesso que não entendo muito de serviço público, dado que passei minha vida toda na iniciativa privada e não tenho parentes próximos que sejam funcionários do governo. Portanto, convido qualquer funcionário público que seja leitor dessa humilde página a corrigir qualquer eventual erro deste post.
Em primeiro lugar, não entendo o que significa “entregar o cargo”. Até onde eu sei, cargos de chefia são conquistados via concursos internos. “Entregar os cargos” significa que esses servidores terão que prestar novos concursos públicos para obterem seus cargos de volta? Ou os cargos estarão lá, intactos, à espera de seus donos, quando estes decidirem retoma-los? Pergunto isso porque, se os cargos permanecem disponíveis, essa “entrega de cargos” nada mais é do que uma greve sem risco. Aliás, greve de funcionário público, por definição, é sem risco. Não há o risco de corte de ponto e, muito menos, demissão. E o pior: normalmente, o prejudicado é o cidadão, que é tomado como refém para obter o resgate. Em uma greve na iniciativa privada, o prejudicado é o patrão, que deixa de produzir e lucrar. Na greve do funcionalismo público, o patrão é o cidadão, que não recebe o serviço pago pelos seus impostos.
Não vou aqui discutir a “justeza” das reivindicações. Mesmo porque, em um país com milhões de pessoas que não conseguem um emprego formal, o “justo” é muito relativo. O fato é que, por mais justo que seja reajustar os salários do funcionalismo, o cobertor está curto, acabou o dinheiro. Quer coisa mais injusta do que não receber uma dívida do governo já transitada em julgado, como é o caso dos precatórios?
Os funcionários públicos federais têm o privilégio de ter seus salários depositados em dia, dado que o governo federal é o único que tem o poder de se endividar sem limites. Funcionários de estados e municípios pelo país não têm a mesma sorte, vários estão recebendo seus salários com atraso. Reajuste parece ser uma palavra de luxo, nesse caso.
Encerro contando um causo. Sou engenheiro pela Poli-USP. Engenheiros formados na Poli não costumam encontrar dificuldade de serem contratados e, normalmente, têm carreiras de sucesso. Qual não foi o meu choque ao saber que o melhor aluno da minha turma havia prestado um concurso para auditor fiscal da receita. Sua conta, no entanto, foi simples: seu salário começava muito acima do que ganhava um engenheiro júnior no mercado, tinha estabilidade e se aposentava com salário integral (era final da década de 80). Na integral da curva de salários (desculpem-me a linguagem de engenheiro), a sua esperança de renda ao longo das décadas seguintes era maior do que o que poderia esperar, na média, na iniciativa privada. Ou poderia ser até menor, mas a sua aversão ao risco fez com que preferisse o certo ao duvidoso. Meu colega de Poli fez uma escolha, com tudo o que essa escolha acarreta. Inclusive, a ausência de reajuste por falta de dinheiro.
Em um mundo ideal, o Estado arrecada o suficiente para pagar bons salários para os seus funcionários, de forma a prover os serviços que a sociedade delegou ao Estado. No mundo real, a sociedade quer o máximo do Estado pagando o mínimo de impostos e os financiadores desse gap cobram juros extorsivos. A conta só fecha com inflação, calote da dívida, serviços públicos ruins e baixos salários do funcionalismo. Normalmente, uma combinação dessas coisas todas.
PS1: não adianta colocar a culpa no “fundão eleitoral” ou nas “demandas do Centrão” ou, genericamente, na “corrupção”. Esse dinheiro é peanuts perto das necessidades de uma sociedade que exige cada vez mais do Estado.
PS2: o fato de Bolsonaro ter privilegiado um determinado segmento do funcionalismo seguiu a lógica dos “eleitos”, a mesma que escolheu os “campeões nacionais” da Dilma ou os “setores que mais empregam” para receber a desoneração da folha. Como não tem dinheiro pra todo mundo, o governo escolhe discricionariamente aqueles que serão beneficiados. Não acha justo? Encontre seu instrumento de pressão e arranque o seu benefício de Brasília. É assim que a coisa funciona.