Correlação não é causalidade

Tem um troço em estatística que é difícil pra diabo de detectar: causalidade. Medir a correlação entre fenômenos é relativamente fácil, coisa que qualquer estudante de colegial é capaz de fazer. O problema é definir, em uma correlação, qual fenômeno causa o outro, se é que existe alguma causalidade.

Essa dificuldade não impediu, no entanto, que o bravo pesquisador cravasse, sob o olhar bovino do repórter, a causalidade entre o desmatamento e a pobreza. Com base na correlação entre um indicador de qualidade de vida, o IPS, e os municípios que mais desmataram, o pesquisador chegou à brilhante conclusão de que o desmatamento GEROU a pobreza. Gostaria de ver os testes de Granger que permitiram essa conclusão. Acho melhor esperar sentado.

Com a mesma sem cerimônia, eu poderia propor o inverso: a pobreza gera o desmatamento. Provavelmente não conseguiria provar também, mas, pelo menos, acho que minha hipótese faz mais sentido. Na verdade, cada um pode achar qualquer coisa, há estatísticas para corroborar qualquer agenda. O que importa, no final do dia, é a narrativa. A ciência que se lasque.

Uma boa desculpa para não fazer nada

O Estadão trouxe ontem uma entrevista com uma espécie de “inspetor de direitos humanos” da União Europeia. Segundo ele, as transgressões aos direitos humanos no Brasil serão relatados e poderão dificultar o acordo comercial entre a UE e o Mercosul.

São muitas as suas preocupações: a violência em geral e a letalidade policial em particular, a violência contra indígenas, povos ribeirinhos e os representantes desses e, como lembrou o arguto repórter, a violência contra os transexuais. Enfim, o cardápio completo.

Este ultimo ponto me chamou especialmente a atenção, porque, por trás de qualquer agenda sempre tem uma estatística solta que não faz sentido. Esse é o caso. Com 50 mil assassinatos por ano, o Brasil aparecerá com o maior número de assassinatos no mundo em qualquer corte social: brancos, pretos, amarelos, heterossexuais, transexuais, os que dormem de meia, etc. Então, essa estatística em si não quer dizer absolutamente nada. Além disso, seria necessário levantar se esses assassinatos estão ligadas à condição transexual ou foram, por exemplo, fruto de um assalto. Mas aí já é pedir demais.

Mas a coisa piora. Segundo o “inspetor”, o “discurso público” tem contribuído para tornar essas pessoas alvo da violência. Nem precisa dar nomes aos bois para sacar que ele se refere ao governo Bolsonaro. Mas aí, você vai ver os números, sempre eles, os chatos de plantão. De acordo com o Atlas da Violência, do IPEA, o número de denuncias de violência e lesão corporal contra membros da comunidade LGBT em 2019, o primeiro ano do governo homofóbico, foi o menor desde 2011. Bem, algo não bate.

De qualquer forma, este é apenas um detalhe que abrilhanta uma entrevista que tem como objetivo mostrar como a agenda anti-direitos humanos deste governo estaria impedindo um acordo UE-Mercosul. Existem duas mentiras à mostra e uma verdade escondida na matéria.

A primeira mentira é a que se refere a este governo especificamente. As negociações se arrastam há 20 anos, e o governo Bolsonaro vai completar 3 anos.

Sem contar que a violência não foi invenção deste governo. Aliás, o número de assassinatos diminuiu em 2019 e 2020 em relação aos números da década passada. Não foi necessariamente mérito deste governo, claro, foi o resultado de um trabalho de anos, mas os números são esses.

A segunda mentira à mostra refere-se à violência como um entrave ao acordo. Bem, o México conta com um acordo de livre comércio com a UE desde a década de 90 e, vamos combinar, o México não é exatamente um exemplo de país não-violento. Chiapas que o diga. Portanto, essa é uma falsa questão, e que nos leva à verdade oculta.

O que o “inspetor de direitos humanos” não diz é que há uma grande oposição ao acordo de livre comércio com o Mercosul por parte dos agricultores europeus. Fosse a agenda dos direitos humanos sincera, a melhor forma de fazê-la avançar é justamente um acordo de livre comércio, em que uma parte da riqueza obtida pela agricultura europeia seria transferida para os países mais pobres do Mercosul. O protecionismo europeu contribui para a pobreza e, consequentemente, para o quadro de desrespeito aos direitos humanos em países como o Brasil.

A ca-aga-ção de regras por parte do “inspetor de direitos humanos” não orna com as práticas protecionistas da UE. Sem dúvida, temos muitos problemas de proteção a direitos humanos no Brasil, isso não se discute. O ponto é que a UE ajudaria mais se agisse para estabelecer logo um acordo. O resto é discurso diversionista.

A solução milagrosa para os nossos problemas

O ministro Guedes, tendo já resolvido questões prementes, como a reforma tributária (que finalmente livrou os empresários do nightmare tributário brasileiro) e a reforma administrativa (que colocou uma certa ordem na máquina estatal), lançou no ar mais uma ideia que, essa sim, vai resolver os problemas dos pobres brasileiros: a criação do Ministério do Patrimônio da União.

Segundo o ministro, o governo brasileiro tem “uns” R$ 2 trilhões, R$ 3 trilhões em imóveis e estatais, fora “uns” R$ 2 trilhões em “recebíveis”, o que quer que isso signifique.

Durante a campanha, o então candidato a ministro encantou plateias ao afirmar que o Brasil poderia arrecadar R$ 1 trilhão com a privatização de estatais. Com Guedes é assim, nada de pensar pequeno, a coisa é sempre na casa do trilhão. Tá certo que, três anos depois, não privatizamos uma estatalzinha sequer e criamos duas adicionais, a NAV e a ANSN. Mas, como qualquer boleiro experiente sabe, 2 x 0 é um placar perigoso pra quem está ganhando o jogo, e a torcida continua com fé que vamos virar essa partida.

Mas o mais legal é que a solução da pobreza brasileira está aí na esquina. Basta vender esse patrimônio, arrecadar esses trilhões e distribuir tudo. Como ninguém pensou nisso antes!

Não sei porque, isso me fez lembrar da fala da Dilma no dia do leilão do pré-sal. Fui recuperar esse discurso:

O pré-sal era o “passaporte para o futuro”, o dinheiro arrecadado seria investido em educação e saúde do povo. Oito anos depois, o pré-sal está aí, gerando royalties para o governo. Mas deu algum problema com o “passaporte para o futuro”, a PF ainda não conseguiu emitir.

E assim vamos, de trilhão em trilhão, enquanto os pobres brasileiros continuam a sonhar com dias melhores. Que certamente virão, quando, na próxima eleição, elegerem o presidente “certo”, que vai tirar da cartola outra dessas soluções milagrosas para todos os nossos problemas.

Sussurros – A Vida Privada na Rússia de Stálin

O livro Sussuros – A vida privada na Rússia de Stálin (Editora Record, 824 páginas) é um alentado apanhado de como pessoas comuns viviam na União Soviética dominada por Josep Stálin. Tendo como base centenas de documentos, entre cartas e diários, além de entrevistas com os sobreviventes da época, o autor, Orlando Figes, professor de história da Universidade de Londres, traça um quadro inédito de uma história já conhecida. A Revolução Bolchevique, o Terror Stalinista, o Gulag e a participação da URSS na 2ª Guerra são descritos não do ponto de vista do grande enquadramento que estes eventos tiveram na história das nações, mas como cidadãos comuns os viam.

Muitas vezes tendemos a simplificar a história dentro de esquemas mentais que nos ajudam a entender problemas complexos. O stalinismo é um desses casos: um ditador sanguinário que dominava, através do terror, todo um povo. Este é o resumo. Mas há nuances importantes, que, se ignoradas, podem abrir caminho para a repetição da experiência, com outros nomes e em outro contexto. Pois se é óbvio que um ditador totalitário seria rechaçado por qualquer pessoa de bom senso, também é verdade que Stalin dominou a URSS com o beneplácito da maior parte do povo. Como? Por quê? O foco na vida privada das pessoas comuns traz a vantagem de observar como o homem comum absorvia e, até certo ponto, aderia a essa realidade. É este, na minha visão, o ponto mais interessante do livro.

Figes faz um levantamento cronológico dos anos da Revolução Soviética, desde 1917 até os dias atuais. Mas a sua narrativa não é linear: os aspectos importantes se repetem ao longo da obra em diferentes contextos. Neste resumo, procurarei destacar os temas mais relacionados com a dominação ideológica da revolução e, posteriormente, do partido, sobre os cidadãos soviéticos. Para ilustrar, copio trechos do livro que ilustram as ideias. Todos os trechos copiados estarão em itálico.

O Novo Homem

Comecemos pelo grande conceito por trás da revolução bolchevique: a construção do Novo Homem, aquele purificado dos vícios trazidos pelo capitalismo. Como escreveu Máximo Gorki na primavera de 1917, “a nova estrutura da vida política exige de nós uma nova estrutura da alma”

Vê-se que a ambição não era pequena. Tratava-se de mudar a alma humana. Para isso, foram muitos os instrumentos utilizados. O compartilhamento de apartamentos comunais, por exemplo, para além do seu objetivo econômico, serviria também para moldar o “novo homem”: “forçando as pessoas a compartilhar apartamentos comunais, os bolcheviques acreditavam que poderiam transformá-las em comunistas em seus pensamentos e comportamentos básicos”.

O próprio Gulag, além de servir como punição para “traidores do regime”, era visto como um campo de “remodelação” (prekovka, em russo) de seres humanos: “está ocorrendo uma reformulação maravilhosa (prekovka) de pessoas aqui: todos os prisioneiros retornam ao continente como trabalhadores qualificados, alfabetizados e conscientes”.

Nesta tarefa de remodelar o Homem, o comunismo substituía a fé religiosa. Um depoimento, nesse sentido, chamou-me a atenção: “o que mais temíamos”, lembra-se Kopelev, “era perder a cabeça, ter dúvidas ou pensamentos heréticos e perder nossa fé sem limites.”

Claro que uma remodelagem do ser humano deveria começar nas escolas, com as crianças e jovens. Para isso, havia duas organizações para os mais jovens. As crianças entravam nos Pioneiros, enquanto os adolescentes e jovens ingressavam na Komsomol. O juramento dos pioneiros deixava bem claro o objetivo: “Eu, um Jovem Pioneiro da União Soviética, diante de meus camaradas, juro solenemente ser verdadeiro aos princípios de Lenin, defender com firmeza a causa de nosso Partido Comunista e a causa do Comunismo”

No Komsomol, organização para adolescentes e jovens, a doutrinação era mais pesada, com os jovens tendo que, eventualmente, renunciar a seus pais “traidores”. O seguinte trecho ilustra o ponto: “Ela ingressou na Komsomol, apesar de ter sido avisada de que seria forçada a renunciar aos pais antes de ser aceita, passando a participar de suas atividades, que consistiam basicamente em fazer delações estridentes contra “inimigos do povo” e em cantar músicas de gratidão a Stalin e ao partido em grandes reuniões e marchas”.

Claro que o “novo homem”, sendo puro, deveria ser separado dos impuros. Esta divisão do mundo está presente em muitas passagens do livro.

“Nós, comunistas, somos especiais”, disse Stalin em 1924. “Somos feitos de matéria-prima melhor…”

Nesta linha, um depoimento resume o ponto: “Vivíamos por acreditarmos na felicidade futura de nossa sociedade, não pela satisfação de nossas próprias necessidades. Havia uma pureza moral em nosso estilo de vida”

Essa busca pelo “homem perfeito” forçosamente desembocaria na purificação forçada da sociedade. Dois eram os inimigos a serem eliminados: do ponto de vista econômico, os “kulaks” (fazendeiros) e, do ponto de vista político, os “inimigos do povo”.

Uma passagem chamou-me a atenção por me lembrar de um episódio de Black Mirror, em que soldados usavam capacetes que os faziam enxergar pessoas comuns como monstros a serem eliminados. Essas pessoas eram chamadas de “baratas”, e os soldados as eliminavam com prazer. O trecho é o seguinte: “Fomos treinados para ver os kulaks não como seres humanos, mas sim como vermes, piolhos, que precisavam ser destruídos”.

Em “A Lista de Schindler”, um oficial nazista conversa com uma prisioneira por quem sente atração sexual. Em determinado momento, diz algo assim: “eu sei que você não é uma pessoa, você é uma coisa”. O primeiro passo de um sistema totalitário é desumanizar o inimigo. Nós somos o povo puro, a raça pura, o resto simplesmente não é humano.

É óbvio que um resto de humanidade restava e se revoltava por dentro. No entanto, a ideia de estar fazendo a história era mais forte, como podemos observar no depoimento abaixo, de um funcionário do partido responsável por confiscar grãos e propriedades dos kulaks:

“Era excruciante ver e ouvir tudo aquilo. E era ainda pior estar participando… E eu me persuadia, explicava a mim mesmo. Eu não deveria ceder à piedade debilitante. Estávamos realizando uma necessidade histórica. Estávamos desempenhando nosso dever revolucionário. Estávamos obtendo grãos para a pátria socialista, para o Plano Quinquenal”.

A perseguição aos “inimigos do povo”, por outro lado, teve uma característica diferente: enquanto os “kulaks” eram uma espécie de “inimigo externo”, os inimigos do povo eram o “inimigo interno”. Literalmente qualquer cidadão poderia ser considerado um “inimigo do povo”. Isso levou a números realmente espantosos, no que se convencionou de chamar de Terror, que merece um capítulo à parte.

O Terror

116.885 membros do Partido foram executados ou presos entre 1937 e 1938.

O sistema Gulag se expandiu num vasto império industrial, com 67 complexos de campos, 10 mil campos individuais e 1.700 colônias, empregando uma força de trabalho escravo de 2,4 milhões de pessoas em 1949 (comparada a 1,7 milhão antes da guerra)

A partir de abril de 1935, quando foi aprovada uma lei reduzindo a idade de responsabilidade criminal para 12 anos, o número de crianças no sistema do Gulag começou a aumentar constantemente, com mais de 100 mil crianças entre 12 e 16 anos condenadas pelas cortes e pelos tribunais por ofensas criminosas nos cinco anos seguintes.

Estes três trechos do livro resumem a grandiosidade do Terror da União Soviética de Stálin. Mas este não é, nem de longe, o principal aspecto desse período. O aspecto mais chocante, e que inspirou o título do livro, é o estado de espírito da sociedade soviética. Qualquer um poderia ser um “inimigo do povo”, e a forma de provar a fidelidade ao partido era denunciar um “inimigo do povo”, mesmo que este fosse um parente ou amigo próximo. Qualquer palavra mal colocada poderia ser interpretada como uma falta de fidelidade. Assim, as pessoas evitavam conversar em voz alta e falavam aos sussurros.

São vários os depoimentos nesse sentido ao longo do livro. Mas uma das mais chocantes foi a história de Pavlik, um garoto dos Pioneiros que denunciou o próprio pai. Criou-se uma espécie de culto em torno do menino, um exemplo a ser seguido. Figes descreve o episódio da seguinte forma:

“O culto estava em todos os lugares. Histórias, filmes, poemas, peças, biografias e canções retratavam Pavlik como o Pioneiro perfeito, um leal vigilante do partido dentro de casa. Sua coragem abnegada, a qual demonstrara ao sacrificar o próprio pai, foi promovida como um exemplo para todas as crianças nas escolas soviéticas. O culto teve um impacto enorme nas normas e sensibilidades de toda uma geração de crianças, que aprendeu com Pavlik que lealdade ao Estado era uma virtude maior do que amor familiar e outros laços pessoais. Por meio do culto, foi semeada em milhões de mentes a ideia de que acusar os próprios amigos ou parentes não era vergonhosa, mas sim uma questão de espírito público. Esperava-se realmente que o cidadão soviético agisse assim.”

Claro que este clima não poderia deixar de influenciar muito negativamente as relações sociais. Segundo Figes, “as pessoas deixaram completamente de confiar umas nas outras”, pois “… estavam ficando tão habituadas a ocultar o sentido do que diziam que corriam o risco de perderem totalmente a capacidade de dizer a verdade”. Portanto, “com o final da comunicação genuína, a desconfiança espalhou-se pela sociedade”.

Isso teve implicações, obviamente, também no campo familiar. Segundo Figes, “a grande ruptura gerou uma nova sociedade na qual as pessoas eram definidas pela relação que mantinham com o Estado”. Nessa linha, já em 1927, Anatoly Lunacharsky, um dos teóricos do partido, escreveu: “A dita esfera da vida privada não pode nos escapar, porque é precisamente nela que o objetivo final da Revolução deve ser alcançado.” Isso vai em linha com a construção do “novo homem soviético”.

A captura da esfera privada não seria completa se o mais recôndito do ser humano também não fosse capturado: a sua própria consciência.

O Partido e Stálin acima de tudo

O aspecto mais impressionante de 1984 não era o Estado onipresente ou a manipulação da verdade. O mais chocante foi a transformação da consciência do protagonista. Não bastava que o sistema eliminasse o inimigo. Não bastava a obediência ao Partido. Isso era necessário, mas era pouco. O sistema buscava a adesão total. Assim, o protagonista, antes de ser fuzilado, reconhece que “amava o Grande Irmão”. Estava completa a captura da consciência.

O livro Sussurros está cheio dessas passagens, em que as vítimas do Terror, por mais inocentes que fossem (e a grande maioria o era), acreditavam, de alguma forma, que o Partido tinha razão. Vou citar alguns trechos que traduzem a ideia:

“Defender-se era acrescentar mais um crime à lista: discordância com a vontade do Partido. Isso explica por que tantos bolcheviques se rendiam aos seus destinos nos expurgos, mesmo quando eram inocentes dos crimes pelos quais eram acusados”.

“Era até possível convencer essas pessoas que, para o bem da Revolução, precisavam confessar que eram espiões. E muitos foram convencidos e morreram creditando na necessidade revolucionária de fazê-lo”.

Os membros da elite bolchevique eram particularmente passivos diante da possibilidade de serem presos. A maioria fora tão doutrinada pela ideologia do Partido que a ideia de resistir era facilmente superada pela necessidade mais profunda de provar sua inocência diante do Partido”.

“… a maioria dos comunistas convictos precisava preservar a qualquer custo sua fé na União Soviética. Renunciar a ela estava além de suas capacidades”.

As prisões de Stalin estavam repletas de bolcheviques que continuavam acreditando que o Partido era a fonte de toda a justiça. Alguns confessaram ter cometido os crimes pelos quais eram acusados simplesmente para preservar essa fé”.

E, como um eco do final de 1984, Figes conta as últimas palavras de um membro do Partido antes de ser fuzilado: “Vida longa ao Partido! Vida longa a Stalin!

Não à toa, a morte de Stálin causou comoção em toda a Rússia. “Multidões enormes foram prestar suas homenagens. O centro da capital foi tomado por pessoas de luto, que haviam viajado até Moscou de todos os cantos da União Soviética; centenas delas morreram esmagadas”.

Até hoje, a era stalinista é vista com nostalgia.

Um paradoxo semelhante permeia a nostalgia popular por Stalin, que, mais de meio século após a morte do ditador, continua a ser sentida por milhões de pessoas, inclusive muitas de suas vítimas. […] em janeiro de 2004, 42% das pessoas queriam ver o retorno de um “líder como Stalin” (60% dos entrevistados com mais de 60 anos eram a favor de um “novo Stalin”)”.

Figes recolhe um depoimento que resume esse sentimento: “Sim, meu pai sofreu, como tantos outros também, mas Stalin ainda foi melhor que qualquer um dos líderes que temos hoje. Ele era um homem honesto, mesmo que as pessoas em volta dele não fossem”.

Concluindo

O livro cobre vários outros tópicos interessantíssimos, como os impactos econômicos da coletivização, o papel da guerra no moral do povo soviético, o papel da arte engajada e muitos outros. Um resumo completo mereceria outro livro.

Concluo no mesmo ponto em que iniciei este resumo: a ditadura de Stálin só foi possível porque grande parte do povo aderiu ao projeto da Revolução Bolchevique. Tudo era função de um grande projeto de um mundo novo, melhor e mais justo. Como Stálin costumava dizer, não se faz omelete sem quebrar os ovos.

Alguns dirão que Stálin desvirtuou o verdadeiro sentido da revolução bolchevique. Eu direi que Stálin foi a consequência necessária de um sistema que pretendia criar o mundo perfeito. O simples fato de que o meu mundo perfeito não é igual ao seu mundo perfeito faz com que seja impossível a criação de tal mundo. Portanto, qualquer projeto nesse sentido resultará necessariamente em um sistema totalitário. Stálin não foi um acidente de percurso.

Terrivelmente evangélico

André Mendonça foi, finalmente, sabatinado e aprovado para o STF. Sua indicação foi cercada de polêmica, dado que se trata de um pastor da Igreja Presbiteriana. Sendo o Estado brasileiro laico, ou seja, não tendo uma religião oficial, fica a dúvida: o mais novo ministro do STF pautará suas decisões pela Bíblia, em claro confronto com a laicidade do Estado?

Essa parece-me uma falsa questão e explicarei porquê.

Em primeiro lugar, não é porque uma norma moral foi acolhida por uma religião que, automaticamente, torna-se uma norma religiosa. Na verdade, é justo o oposto: as religiões, de maneira geral, acolhem normas morais universais. Por exemplo: “não matarás” ou “não roubarás” estão entre os 10 mandamentos da lei de Moisés, acolhidos também pelo cristianismo. Seria, no entanto, uma sandice dizer que condenar o assassinato ou o roubo torna-se uma decisão de cunho religioso somente porque fazem parte dos mandamentos recebidos no Monte Sinai. Portanto, decidir de acordo com a Bíblia não necessariamente fere o Estado laico. Aliás, não custa lembrar que a Constituição brasileira, em seu preâmbulo, invoca a proteção de Deus, o que não implica em uma religião oficial, o quê, portanto, está de acordo com a laicidade do Estado. Laicidade não implica ateísmo, o que o preâmbulo da constituição nos lembra a todo momento.

Em segundo lugar, todos os ministros do STF têm suas convicções religiosas, no sentido de como nos relacionamos com o transcendental. Mesmo os ateus, se houver, têm uma convicção de que não existe o transcendental, o que não deixa de informar as suas decisões. Cada ministro tem a sua história pessoal e as suas convicções. Não são robôs dotados de inteligência artificial, com algoritmos completamente independentes de suas convicções mais profundas. O fato de André Mendonça ser pastor presbiteriano apenas explicita qual é a sua estrutura de valores morais. Os outros ministros, pode ter certeza, também contam com sua própria valoração moral. Neste sentido, Mendonça leva uma vantagem sobre os outros, pois os seus valores são conhecidos de antemão, gostemos deles ou não, ao passo que os valores dos outros são explicitados apenas em suas decisões.

O problema se complica quando se trata de temas que, de alguma maneira, colocam o código religioso contra a moral dos tempos. Temos basicamente dois casos atualmente: aborto e preferências sexuais.

No caso do aborto, o mandamento “não matarás”, que é, em si, pacífico, carece da definição do que é um feto. Afinal, “não matarás” não se refere a plantas ou animais, somente a seres humanos. Seria o feto um ser humano? Além disso, matar é justificado, pelas religiões, em certas circunstâncias. A guerra justa ou a defesa da própria vida são alguns exemplos. Poderia o aborto ser classificado em alguma exceção desse tipo? Enfim, este é um assunto em que a estrutura de valores morais dos ministros conta muito em suas decisões. De TODOS os ministros, não somente do evangélico.

Chegamos, finalmente, ao caso que é o foco da reportagem em destaque.

Houve empate na votação sobre o direito de transgêneros escolherem o presídio onde querem cumprir pena, masculino ou feminino. A matéria coloca o voto do novo ministro, que desempatará a questão, como um “teste de fogo” para medir o grau de sua “laicidade”. Não está escrito, mas certamente considera-se que um voto contra o direito dos transexuais indicará uma interferência de suas convicções religiosas em uma decisão que deveria ser, em princípio, laica.

O que salta aos olhos, em primeiro lugar, é que a questão está empatada. Ou seja, cinco ministros, que não são pastores presbiterianos, votaram contra o direito dos transexuais. Não, você não verá nenhuma análise sobre como a convicção religiosa desses ministros influenciou os seus votos. Foram votos técnicos, baseados na Constituição. Assim como o foram os votos a favor. O que isso significa? Que a mesma Constituição permite diferentes interpretações, não necessariamente alinhadas com o zeitgeist. Fica, então, a pergunta: por que raios um voto contra de André Mendonça será necessariamente função de suas convicções religiosas?

O que nos leva ao cerne da questão: no caso do novo ministro, o problema não é que ele seja religioso em um estado laico. O problema é que sua agenda é conservadora, o que é um pecado mortal para a inteligentzia tupiniquim. O fato de ser pastor presbiteriano somente explicita essa agenda. Fosse um leigo com a mesmíssima agenda, a oposição seria a mesma. Afinal, o problema não está na religião em si, mas nas convicções profundas das pessoas.

Mendonça vai desempatar o caso dos transexuais presidiários. Seu voto será considerado, pela intelectualidade, uma concessão às suas convicções religiosas ou uma posição a favor da condição laica do Estado brasileiro. Não será nem uma coisa nem outra. Assim como cinco ministros votaram a favor e cinco votaram contra, Mendonça votará igualmente de acordo com a Constituição e de acordo com a sua consciência. Exatamente da mesma forma como fizeram os outros 10 ministros.

A moralidade da inteligência artificial

Reportagem do NYT, reproduzida pelo Estadão, descreve os últimos avanços da inteligência artificial no campo das decisões morais. Um software batizado Delphi (em homenagem ao oráculo de Delfos) está sendo “treinado” com milhões de decisões de seres humanos reais, que envolvem algum julgamento moral. A questão que se coloca, claro, é se um algoritmo, por mais poderoso que seja, será um dia capaz de tomar decisões morais.

Em primeiro lugar, o que é moral? Não sou filósofo, então vou responder “leigamente”: moral é tudo aquilo que regula o comportamento dos seres humanos em relação aos seus pares e a si mesmo. Os seres humanos são seres morais, então todos as suas decisões carregam uma carga moral. Mesmo a decisão de escovar ou não os dentes de manhã tem implicações morais: se eu não escovar estarei dando bom exemplo ao meu filho? Estarei atentando contra a minha própria saúde? Esta pasta foi fabricada com elementos tóxicos que estão prejudicando populações indefesas? Enfim, as mais simples decisões carregam implicações morais, pelo simples fato de serem decisões humanas. Temos uma bússola interna que aponta o “certo” e o “errado” em tudo o que fazemos, o tempo inteiro.

Como tomamos decisões? Temos, internamente, um código moral, fruto de nossa formação e do nosso livre arbítrio. Quem tem filhos sabe que nem tudo é formação, nossos filhos estão constantemente tomando decisões “erradas” de acordo com o nosso próprio código moral. Há uma parcela de livre arbítrio, que é a formação recebida modulada pelas experiências pessoais.

Esse nosso código moral interno é muito claro em algumas coisas (são as nossas convicções mais profundas) e nebuloso em outras, quando ficamos em dúvida de como agir em determinadas situações. Procuramos (os mais sensatos pelo menos) conselho com pessoas em que confiamos. E confiar significa duas coisas: a pessoa não tem conflito de interesses no conselho que vai nos dar e tem um código moral com o qual, em geral, concordamos.

O pressuposto de um algoritmo que tome decisões morais é de que existe um campo comum de decisões morais “certas”. Como chegar nesse algoritmo?

Uma primeira ideia seria programar o computador com ideias simples e gerais, com as quais todos concordam. Regras como “não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem com você” ou “o seu direito termina onde começa o meu”, arrisco dizer que são de aceitação universal. O diabo, no entanto e como sempre, mora nos detalhes. Na discussão sobre o aborto, por exemplo, quem são “os outros”? No “direito” de não se vacinar, onde começa o “direito” do outro? Regras muito gerais não resolvem o problema.

Uma outra possibilidade é confiar em um código moral externo mais detalhado. As religiões proveem esse código. Os 10 mandamentos talvez sejam o mais antigo código moral organizado que a humanidade conheceu. Muitas pessoas vivem de acordo com esses códigos, pero no mucho. As religiões hoje são encaradas mais como supermercados morais, em que as pessoas pegam nas prateleiras as regras que mais lhes convém. Muitas vezes é a vida que determina o código, e não vice-versa. E as religiões acabam se adaptando ao que as pessoas, com seus próprios códigos morais, preferem.

Eis aí o desafio de uma inteligência artificial que toma decisões morais: qual o código moral a utilizar. “Cada cabeça, uma sentença”, diz o dito popular. Fazendo a “média” dos códigos morais de milhões de pessoas, espera-se que este algoritmo se torne a “consciência moral” da humanidade. O fato é que, provavelmente, será apenas mais uma cabeça ditando regras, como todos nós fazemos. A média terá o condão de desagradar a todos, uns mais, outros menos.

Segundo a reportagem, as máquinas “ainda” têm dificuldade em lidar com temas que extrapolam a lógica matemática. Bem, se pensarmos bem, a humanidade tem exatamente a mesma dificuldade. E olha que nosso algoritmo está sendo treinado há milhares de anos.

A questão que sempre restará, tanto para a inteligência artificial quanto para a inteligência natural, é se existem um “certo” e um “errado” universais. A resposta é sim, quando tratamos da coisa genericamente (“não faça aos outros o que você não gostaria que fizessem a você”), mas tudo se complica quando descemos ao detalhe. Uma coisa é, no entanto, certa: se e quando chegarmos a um mundo onde há um consenso geral sobre o “certo” e o “errado”, pode ter certeza que este mundo será totalitário.

No filme Eu, Robô, uma inteligência artificial central chega à conclusão, muito lógica, de que, para “consertar” a humanidade, seria preciso escravizá-la e deixá-la sob o comando dos robôs, esses sim, donos de uma moral perfeita. Afinal, o mundo é bom, é o ser humano, com suas ambiguidades morais, que o estraga.

A hipoteca reversa

Uma nova modalidade de hipoteca começará a ser testada pelo BC e uma fintech: a hipoteca reversa.

Na hipoteca normal, a instituição financeira empresta dinheiro tendo como garantia o imóvel do tomador do empréstimo. Já na hipoteca reversa, a instituição financeira empresta dinheiro tendo como garantia o imóvel do tomador do empréstimo.

Não notou nenhum diferença? É porque, do ponto de vista estritamente financeiro, não há diferença nenhuma entre as duas modalidades. Em ambas as modalidades, há um empréstimo, com cobrança de juros, tendo um bem como garantia. Então, qual a vantagem da hipoteca reversa sobre a hipoteca normal? A embalagem.

Na hipoteca normal, o tomador precisa começar a pagar de volta o empréstimo já a partir do primeiro mês em que recebeu o dinheiro. O empréstimo (mais os juros) são pagos no número de meses pactuado no empréstimo. Caso ocorra inadimplência, a garantia é executada. Tchau, imóvel.

Já na hipoteca reversa, o proprietário do imóvel não paga nada. Nadinha. Ele recebe o dinheiro do empréstimo (que pode ser o total ou em forma de renda vitalícia) e não precisa pagar nada de volta. Qual a mágica?

A mágica está em um empréstimo intergeracional. São os descendentes que pagarão todo o juro acumulado do empréstimo após a morte do proprietário. Caso contrário, a garantia é executada, e o imóvel passa a pertencer à instituição financeira. Ou seja, na hipoteca reversa, são os descendentes que pagam o empréstimo, na forma de diminuição de sua potencial riqueza, pois o seu direito à herança do imóvel estará condicionado a que paguem o empréstimo feito.

Claro que essa embalagem é muito mais atraente. Afinal, aparece, do nada, uma renda extra. E, o que é melhor, o idoso não precisa se desfazer do imóvel em vida (um bem “de raiz”) e não precisa mudar de casa. Além disso, no Brasil, muitos idosos ajudam seus filhós financeiramente. Essa renda extra pode ser usada, inclusive, para ajudar os filhos. Neste caso, os filhos estão tomando emprestado de um imóvel que iria a eles pertencer no futuro para gastar hoje.

Apesar da embalagem mais atraente, a hipoteca reversa não passa de um empréstimo. O proprietário e seus descendentes estão tomando dinheiro a juros no mercado para manter o seu padrão de vida. Uma outra alternativa, mais barata, seria simplesmente vender o imóvel, viver de aluguel e gastar o dinheiro para manter o mesmo padrão de vida. Essa alternativa certamente resultaria em mais dinheiro, pois os juros trabalham a favor (investimento), não contra (empréstimo). O custo de manter o imóvel é justamente a diferença entre os juros cobrados pelo empréstimo e os juros pagos pelas aplicações financeiras.

Claro que nem tudo se resume a uma equação financeira. As pessoas não gostam de viver de aluguel e nem de se preocupar em investir dinheiro. Mas é sempre bom ter em conta o custo que as escolhas carregam.