“O número de crianças mortas por Covid é insignificante”. Com essa frase, o presidente Jair Bolsonaro procurou diminuir a importância da vacinação de crianças contra a Covid.
Há basicamente três motivos levantados por aqueles que minimizam a importância da vacinação de crianças:
- Trata-se de uma doença de velhos, não de jovens, e muito menos de crianças. É neste contexto que se encaixa a frase do presidente.
- A vacina não serviria como inibidor de transmissão, e a avalanche da ômicron provaria a tese. Portanto, o argumento da imunidade de rebanho, que poderia ser usado para justificar a vacinação de crianças, não se aplicaria.
- Trata-se de uma vacina “experimental”, em que pouco se conhece seus efeitos de longo prazo.
Neste post, vou me ater ao primeiro ponto. O terceiro ponto foi competentemente abordado pelo meu amigo Paulo Buchsbaum no post Histórias movem as pessoas. Já em relação ao segundo, até onde eu saiba, não há evidências nem para um lado, nem para o outro. E, como diz meu amigo e companheiro de blog Marcelo Porto, não parece ser muito ético usar as crianças como escudo protetor para uma doença que é mais letal em outras faixas etárias. Claro, se os pontos 1 e 3 não puderem ser contestados adequadamente. Se o forem, a vacinação de crianças se justifica por si mesma.
Fontes de dados
Eu conheço basicamente duas fontes de dados estratificados sobre óbitos: o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), mantido pelo Ministério da Saúde, e o Portal da Transparência, com dados coletados dos Cartórios de Registro Civil.
Particularmente prefiro os dados do SIM, e o gráfico abaixo mostra por quê.
O SIM disponibiliza dados desde 2009 até 2019, enquanto o Portal da Transparência começa a sua série em 2015, terminando agora em 2022. As barras representam o crescimento de ano para ano nas duas séries. Observe como o crescimento de óbitos pelo SIM é muito mais constante e próximo do crescimento populacional, que é o que se poderia esperar. Já o crescimento do número de óbitos registrados em cartório é muito mais errático e, principalmente, não guarda relação com o crescimento populacional. Em 2016, por exemplo, o número de óbitos, segundo o Portal da Transparência, aumentou cerca de 13% em relação a 2015 e, em 2018, quase 11%, números pouco confiáveis. Em 2020 e 2021 o crescimento do número de óbitos é maior por conta da Covid, mas é difícil tirar uma regra, considerando o comportamento errático anterior.
Infelizmente, os dados do SIM terminam em 2019. Portanto, não temos ainda os dados dos óbitos em 2020 e 2021 de acordo com este sistema. No entanto, há um outro sistema, específico para SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), que tem dados mais atualizados. Trata-se da Vigilância de SRAG dentro do DataSus. São bases de dados gigantes, pois agregam informações das mais diversas sobre SRAG. Com isso, podemos conferir os dados do post abaixo, publicado pelo site Poder 360:
Explorando os dados da Vigilância de SRAG, cheguei em 279 e 270 óbitos por Covid em 2020 e 2021 respectivamente, para crianças entre 5 e 11 anos de idade. Portanto, compatível com o número apresentado no post.
Já para a média de mortes de crianças entre 5 e 11 anos de idade, precisamos lançar mão do SIM. O post diz que este cálculo foi feito entre 2016 e 2020, mas o ano de 2020 não está disponível neste site. Fiz a conta com os anos de 2016 a 2019. Além disso, a estratificação do SIM é de 5 a 9 anos e 10 a 14 anos. Não há, portanto, a estratificação de 5 a 11 anos. Assumi, então, uma regra de linearidade, e considerei que os óbitos entre 10 e 11 anos representam 2/5 dos óbitos entre 10 a 14 anos. Fazendo estes cálculos, cheguei a uma média de óbitos nessa faixa etária de 5.005 por ano. Com essa base, os óbitos por Covid em 2020 representam 5,4% da média de óbitos nessa faixa etária. Um número, portanto, menor do que os 7% do post.
Mas este não é o ponto principal do post. 7% ou 5,4% são números igualmente pequenos, não chamam muito a atenção. O que realmente chama a atenção no post é a Covid estar em 2º lugar como a principal causa mortis nessa faixa etária.
Usando a base de dados do SIM entre 2016 e 2019, e fazendo o cálculo descrito acima para inferir os óbitos na faixa de 5-11 anos, eu chego no seguinte ranking:
Para fazer esse ranking, usei como critério as CIDs (código internacional de doenças). Ou seja, o óbito precisa ter uma CID concreta. No post do Poder360, por exemplo, é incluído “doença circulatória”, que engloba vários CIDs. Por isso, não entra no meu ranking.
Agora, a interpretação.
Podemos ler este gráfico de duas maneiras: maximizando ou minimizando o problema da Covid. A leitura que maximiza o problema da Covid vai dizer que a doença já se encontra entre as principais causas de morte de crianças. Podemos dizer que é a segunda causa, estatisticamente empatada com agressões, afogamento e leucemia. A leitura que minimiza a importância da doença vai nos dizer que a Covid se perde no meio de uma série de outras causas, representando apenas 5,4% dos óbitos nessa faixa etária.
Antes de passar para a parte opinativa do post, apenas um adendo metodológico, envolvendo os dados dos cartórios. Infelizmente, o Portal da Transparência estratifica os óbitos somente em menores de 9 anos. Essa estratificação inclui a mortalidade infantil dos bebês até 1 ano de idade, que representaram, em 2019, segundo o SIM, 79,7% das mortes de crianças menores de 9 anos. Por outro lado, segundo os dados da Vigilância SRAG, os óbitos por Covid de bebês de menores de 1 ano totalizaram cerca de 11% dos óbitos nessa faixa etária nos anos de 2020 e 2021. Portanto, a estratificação do Portal da Transparência é inútil para inferir qualquer informação sobre a incidência da Covid nessa faixa etária, pois os óbitos de bebês menores de 1 ano distorcem os dados.
A ilusão da objetividade
A figura abaixo é clássica na ilusão de ótica: o que você vê, uma moça ou uma velha? O desenho é único, mas está sujeito à interpretação de quem vê.
A matemática tem uma aura de objetividade. Números são números, não há como argumentar que 2 + 2 = 5. No entanto, como vimos acima, os mesmíssimos números podem ser usados para se construir a narrativa que se queira. Afinal, a Covid é uma doença importante ou insignificante na faixa etária de 5 a 11 anos de idade? Estamos vendo uma moça ou uma velha?
Esta discussão, na verdade, somente seria relevante se a vacinação fosse obrigatória. Neste caso, haveria uma interpretação única, imposta, a de que a letalidade da Covid em crianças merece uma resposta dura das autoridades sanitárias. Mas não é o caso, pelo menos por enquanto. O que se tem, como sempre se teve, são campanhas de vacinação.
A interpretação fica a cargo dos pais. Se os pais entendem que este número é “insignificante”, podem optar por não vacinar, assumindo o mesmo risco de óbito por leucemia, por exemplo, conforme vimos no gráfico acima. Imagine que houvesse uma vacina que diminuísse a probabilidade de se desenvolver leucemia: será que esses mesmos pais jogariam com a sorte?
Por outro lado, pais que interpretam esses números de maneira alarmante, gostariam de poder contar com a vacina para os seus filhos. E é neste ponto que o governo Bolsonaro pisou na bola. Ao propositalmente postergar o início da vacinação nessa faixa etária, o governo atrasou a opção que muitos pais queriam para os seus filhos. Para um político que gosta de dizer que respeita a liberdade das pessoas, neste caso Bolsonaro não respeitou a liberdade dos pais de vacinarem seus filhos, ao adotar chicanas que atrasaram o processo.
Infelizmente não tenho mais filhos nessa faixa etária (que saudades!). Se eu tivesse, entendo que a probabilidade joga pela vacinação. Portanto, eu iria vaciná-los. Afinal, cresci em um mundo em que as vacinas, assim como os remédios de maneira geral, eram consideradas um grande avanço da humanidade, e que permitiram uma vida mais longa e saudável. Não mudei de ideia.