Notinha de hoje nos informa que o deputado Fausto Pinato denunciará à Polícia Federal sites bolsonaristas por espalharem “fake news” a seu respeito.
Eu não assisti aos vídeos a que o nobre deputado se refere. Mas quando se dá uma notícia desse tipo, o que se espera, no mínimo, é que se descreva, da melhor maneira possível, o crime cometido. Portanto, o jornalista deve ter escolhido a coisa mais escabrosa que conseguiu encontrar nos vídeos. Ou, pelo menos, deve ter mencionado aquilo que mais contrariou o deputado, segundo o próprio.
Trabalhando com essa hipótese bastante plausível, concluímos que a fake news mais escabrosa, aquela que enfureceu o deputado, foi a insinuação de que o parlamentar estaria trabalhando para “vender o Brasil para a China”.
Bem, não precisa ser um Sherlock Holmes da internet para encontrar acusações de que o governo Bolsonaro estaria “vendendo o Brasil” ao tocar um programa de privatizações. Abaixo estão três exemplos, dois de sites da órbita petista e um do insuspeito El País, campeão da democracia. Este tipo de acusação é clássica na narrativa da esquerda e foi usada contra todos os governos quando o PT estava na oposição.
Agora, temos a novidade de que uma narrativa política pode ser alçada ao status de “fake news”. Vamos ver como isso se desenvolve. Curioso para ver o STF derrubar sites usados para propagar narrativas políticas. Não deveria sobrar um em pé.
Jornalistas da Folha de São Paulo fizeram chegar ontem aos editores do jornal um manifesto contra a publicação de artigos que, segundo estes jornalistas, estariam a minimizar o problema do racismo no Brasil. A gota d’água teria sido um artigo do antropólogo Antônio Risério, que defende a tese de que a pauta identitária estaria levando (ou, no mínimo, ignorando) o racismo de pretos em relação a outras raças.
Assim como os jornalistas fizeram questão de afirmar no início de seu manifesto, também eu não pretendo aqui entrar no mérito da questão do racismo em si, pois não tenho conhecimento suficiente sobre o assunto. Mesmo porque, o ponto fundamental do manifesto não é o racismo, mas o livre debate de ideias.
Nesse sentido, o ponto-chave do manifesto é o trecho abaixo, em que os jornalistas comparam a negação do chamado “racismo estrutural” à negação do Holocausto. Da mesma forma que a Folha não dá espaço a negacionistas do Holocausto, também não deveria dar espaço para os negacionistas do “racismo estrutural”.
Este é um tema que me é especialmente caro por motivos familiares. Sempre que alguém usa o exemplo do Holocausto para defender alguma tese, já me ponho alerta, aí vem bobagem. Não foi diferente dessa vez.
O paralelo é simplesmente descabido. O Holocausto é uma verdade histórica comprovada. Há inúmeras provas documentais de sua existência. O paralelo cabível seria um artigo que, por exemplo, negasse a escravidão. Houve escravidão, assim como houve Holocausto, ponto. Isso está no mesmo plano de conhecimento que nos diz que a Terra é redonda. Por isso, a Folha também não dá espaço para terraplanistas em suas páginas.
Por outro lado, pode-se discutir (e se discute até hoje) o papel dos alemães, dos europeus em geral e dos próprios judeus no Holocausto. O extermínio premeditado de judeus em câmaras de gás foi culpa apenas de Hitler, dos nazistas em geral, de todo o povo alemão ou de todos os europeus? Qual o grau de culpa dos próprios judeus nessa história? Cada historiador terá a sua tese, trata-se de campo aberto para o debate de ideias. Mas nenhum historiador negará a realidade do Holocausto em si.
Ao comparar as críticas a teses como “racismo estrutural” e “racismo reverso” com a negação do Holocausto, o que querem os jornalistas da Folha é a elevação da tese à categoria de verdade histórica absoluta. Aqueles que refutam a tese estariam, nada menos, sendo negacionistas.
A tese do “racismo estrutural” é uma leitura possível da realidade, e o artigo de Antônio Riserio somente chama a atenção para possíveis falhas e consequências da tese. Tenho certeza que as páginas da Folha estão abertas a qualquer um que queira refutar o ponto de vista do antropólogo. Somente em sociedades totalitárias existe apenas uma interpretação possível dos fatos históricos.
Os jornalistas da Folha (e não estão sozinhos) estão de tal maneira imersos em seu mundo ideológico, que confundem suas teses de estimação com verdades absolutas. Dessa forma, misturam os fatos históricos com suas interpretações. Sem perceberem, a comparação com o Holocausto, ao invés de funcionar como uma espécie de cheque-mate contra os editores da Folha, serviu para desnudar o mundo mental em que vivem os autores do manifesto.
Este post refere-se à informação, levantada no post anterior, de que a Lei Rouanet “injetou” na economia R$1,59 para cada R$1,00 investido sob os auspícios da Lei. Ou seja, segundo o estudo da FGV, valeu a pena, do ponto de vista econômico, incentivar a cultura, pois cada real investido apresentou “retorno” de 59%. Esse cálculo considera toda a cadeia produtiva da indústria cultural: montagem de palco, iluminação, agências de artistas e uma longa lista de etceteras.
Quem vê uma estatística dessas, pode legitimamente se perguntar porque só investimos R$1 bilhão por ano nisso aí. Deveríamos investir todo o orçamento disponível, e estaria resolvido o problema da pobreza do Brasil. Afinal, que outra atividade gera tamanho retorno?
Na verdade, podemos fazer a mesma conta para qualquer atividade econômica. Recentemente, engajei-me em uma discussão sobre a contribuição do agronegócio para o PIB. Existe um estudo por aí afirmando que o agronegócio geraria algo em torno de 25% do PIB. No entanto, pelos números do IBGE, a agricultura representa meros 6% do PIB. A que se deve essa diferença? Justamente a esse conceito de “cadeia de produção”. Para chegar nos 25%, o cálculo considerou toda a cadeia ligada ao agronegócio, o que inclui máquinas, logística de transporte e vários outros itens. O problema desse tipo de cálculo é a dupla contagem: como a indústria também considera a fabricação de tratores como um valor criado pelo seu próprio setor, temos duas contribuições para o PIB da mesma atividade. Se somarmos todo o PIB produzido por todas as “cadeias produtivas”, sem considerar essa dupla contagem, teríamos um PIB maior que o dos Estados Unidos.
O mesmo ocorre com a “cadeia da indústria cultural”. Esse cálculo de R$1,59 “gerados” pela cadeia inclui atividades que não tem nada a ver com a atividade cultural em si, como, por exemplo, a logística de transporte ou a montagem do palco. Alguém poderia dizer que, se não fosse a atividade cultural, essas outras atividades não existiriam. Pode ser que sim, pode ser que não, difícil dizer. Mas digamos que seja verdade. O ponto, na verdade, é outro. Para entender o problema, precisamos entender o conceito de PIB.O PIB é o conjunto de toda a produção de um país, medido na moeda local. O site do IBGE tem um exemplo simples mas elucidativo: o agricultor planta o trigo e o vende por R$100 para o moinho. O moinho moi o trigo e vende a farinha para a padaria por R$200. A padaria usa a farinha para fazer o pão e vende o pão por R$300. Neste exemplo, o PIB foi de R$300, que é o valor pago pelo pão. Cada etapa da produção criou R$100 de valor (essa é a palavra chave) e, no final, o consumidor topou pagar R$300 pelo pão. Topou pagar porque viu valor naquele pão equivalente a R$300. Este foi o PIB gerado por essa atividade econômica.
O PIB é a uma medida da riqueza de um país. Um país é tanto mais rico quanto maior é o seu PIB per capita. Por outro lado, note que só existe PIB onde há criação de valor. Se a padaria só encontrasse freguês disposto a pagar R$150 pelo pão, esse seria o PIB dessa atividade econômica. Isso significaria que os diversos agentes econômicos envolvidos na produção do pão, em conjunto, só produziram R$150 de valor. Como esse valor seria distribuído entre esses diversos agentes determinará a saúde ou a morte das empresas envolvidas. O fato é que o cliente final só está disposto a pagar R$150. Esse é o valor criado por esse processo.
Esse conceito é fundamental para entendermos o ”valor” criado pela indústria cultural. Digamos que a Lei Rouanet somente incentivasse iniciativas sem viabilidade comercial. Isso significa que o respeitável público não vê valor naquela iniciativa e não está disposto a pagar nada pelo ingresso. Sem o incentivo, portanto, aquela produção somente se viabilizaria com um mecenas, que vê valor na cultura e está disposto a pagar por isso. O governo, no caso, faz o papel de mecenas, através da Lei Rouanet. Mas, e isso é o mais importante, aquela atividade agrega zero para o PIB. Repito: zero.
Vamos colocar números para deixar o conceito mais concreto. Digamos que uma produção artística custe R$100 para ser montada. Um mecenas financia, e os ingressos são gratuitos, porque ninguém estaria disposto a pagar para ver aquilo. Seu prejuízo foi de R$100, o que anula a criação de valor das etapas anteriores. Seria mais ou menos como se a padaria pagasse R$200 pela farinha e ninguém quisesse comprar os pães por preço algum. Nesse caso, PARA FINS DE CÁLCULO DE PIB, a riqueza adicionada foi zero: R$100 do produtor de trigo, R$100 do produtor da farinha e -R$200 da padaria (o prejuízo do padeiro). Total: zero.
Vamos radicalizar ainda mais o argumento para tentar convencer os mais incrédulos. Imagine que, ao invés de incentivar produções culturais, o governo contratasse pessoas para cavar buracos e tampá-los, na popular imagem criada por Keynes. Trata-se também de uma atividade inútil, no sentido de que ninguém está disposto a pagar por isso. Igualmente, a atividade de cavar buracos e tampá-los também “cria valor” ao longo de toda uma cadeia: produção de pás, as roupas que os escavadores usam, sem contar que o salário dos escavadores será usado no comércio, “fazendo a economia girar”. Mas, do ponto de vista de criação de PIB, essa atividade acrescenta literalmente zero: toda a criação de valor anterior é “destruída” em uma atividade na qual ninguém vê valor e, portanto, não está disposta a pagar para comprá-la.
Na verdade, a coisa é ainda pior. Como é o governo que financia essas atividades, esse dinheiro foi retirado, via impostos, de outras atividades que poderiam estar verdadeiramente gerando riqueza. Há, literalmente, destruição de valor.
Todo esse raciocínio será refutado pelos desenvolvimentistas e pelos defensores da cultura. Os desenvolvimentistas dirão que esse raciocínio simplista não é capaz de captar a intrincada dinâmica das cadeias de produção, e que os multiplicadores demonstram, sem sombra de dúvida, que pagar pessoas para cavar buracos e enterra-los em seguida cria sim valor. Os defensores da cultura dirão que há muito mais no mundo do que dinheiro, e a arte não deveria ser medida pelo valor do ingresso.
O raciocínio que vai acima é só contábil e considera a metodologia do PIB: se uma atividade vale zero para as pessoas, essa atividade agrega zero para o PIB, qualquer que seja a “cadeia de produção” por trás ou os salários pagos. Não fosse assim, seria muito fácil “criar PIB”, e não haveria país pobre no mundo. Podemos até discutir se o PIB é uma medida adequada de riqueza. Mas, por enquanto, não foi inventada outra melhor.
O Estadão mantém uma seção de “fact checking”, em que classifica as notícias que circulam na internet em três categorias: verdadeiro, enganoso ou falso. A notícia de que os artistas estariam fulos da vida com o governo Bolsonaro porque “a mamata da Lei Rouanet” teria acabado é classificada como enganosa. Ou seja, há elementos de verdade, mas a notícia leva a conclusões falsas.
Pra não variar, o jornalista faz um trabalho bem meia boca. Até fez uma pesquisa, descobrindo que shows com Ivete Sangalo (o alvo dos posts bolsonaristas) foram patrocinados com recursos recebidos ao amparo da Lei. Mas afirma, candidamente, que os recursos não foram diretamente para a cantora, mas para a empresa de shows. Sério isso? A cantora então fez a sua performance sem receber nada? Realmente…
A checagem peca de duas formas, uma mais conceitual e outra mais prática. Do ponto de vista conceitual, esses posts são falsos porque os artistas, de maneira geral, são contra Bolsonaro no matter what. É uma questão de “lado”. Mesmo que as verbas da Lei Rouanet fossem triplicadas, Ivete Sangalo ainda assim incentivaria o coro “fora Bolsonaro” em seus shows.
A parte prática, óbvia, e que faltou no levantamento do jornalista, é comparar o financiamento cultural pela Lei Rouanet ao longo dos anos e compará-lo com o montante financiado durante o governo Bolsonaro. Houve efetiva redução? A resposta, aparentemente, é não.
Em reportagem de dezembro de 2018, um levantamento patrocinado pelo ministério da Cultura e realizado pela FGV comemorava o fato de que, para cada R$1,00 investido ao amparo da Lei Rouanet, R$1,59 havia voltado para a sociedade.
Essa mesma reportagem nos informa que esse montante que “retornou” para a sociedade (discutiremos esse conceito em outro post), totalizou R$49,8 bilhões entre 1991 e 2018. Fazendo uma regrinha de três, temos um montante total investido sob a Lei de R$31,3 bilhões. Considerando-se 27 anos, temos uma média anual de aproximadamente R$1,2 bilhões (valores já atualizados pela inflação do período). Pois bem, o governo Bolsonaro liberou R$4,9 bilhões desde o início do seu governo, ou R$1,6 bilhão ao ano. Acima, portanto, da média histórica. Infelizmente, não encontrei os dados ano a ano, o que poderia acrescentar detalhes interessantes a essa história.
Resumindo: Bolsonaro não só não acabou com a Lei Rouanet, como liberou mais dinheiro do que governos anteriores. Portanto, Ivete Sangalo não incentivou as vaias a Bolsonaro porque “a mamata acabou”. O post é falso nesses dois sentidos, mas nenhum deles foi levantado pela agência de checagem.
Prometo um outro post para discutir o tal “retorno” de 59% (R$1,59 para cada R$1,00 investido) dos incentivos da Lei Rouanet.
Milton Friedman, em sua obra Capitalismo e Liberdade, defende a ideia de que o Estado não deveria limitar, de forma alguma, o exercício de nenhuma profissão. O motivo é simples: qualquer limitação significa a criação de um monopólio de profissionais às expensas do resto da sociedade. A ideia é de que os próprios consumidores dos serviços fariam o papel de expulsar os maus profissionais do mercado, não sendo necessário uma espécie de “carimbo” estatal.
Friedman leva ao extremo essa ideia, defendendo que médicos não precisariam de uma licença estatal para exercer sua profissão. Até podemos entender a inutilidade, por exemplo, de um diploma de jornalista para atuar na imprensa, ou de economista para fazer previsões econômicas. Mas, quem confiaria sua saúde a um médico que não foi aprovado pelo CRM?
De maneira geral, acreditamos que, sem um CRM, o profissional não está apto a exercer a medicina. O carimbo estatal funciona como uma espécie de “selo de qualidade”, apesar de não garantir qualidade alguma. O mesmo ocorre com profissões como advogado e engenheiro.
Quando ocorre um acidente aéreo, o primeiro que se verifica é se aquela aeronave estava certificada pela ANAC e se o piloto tinha as licenças necessárias. São estes os “selos de qualidade” que a sociedade, de maneira geral, busca nos serviços que consome. Quando ocorre um golpe no mercado financeiro, pergunta-se onde estava a CVM ou o Banco Central, que não evitaram aquele desastre. A sociedade, de maneira geral, confia ao Estado o “filtro de qualidade” que Friedman dizia ser de competência exclusiva dos indivíduos.
Este longo preâmbulo serve para introduzir a discussão sobre a questão do passaporte das vacinas. Há dois campos bem definidos aqui: as pessoas que defendem o certificado, baseiam seu ponto de vista na ideia da cobertura vacinal, que seria tão mais eficaz quanto maior for o número de pessoas vacinadas. Os que são contra, baseiam o seu ponto de vista na preservação da liberdade das pessoas, que não deveriam ter os seus movimentos tolhidos em função de uma escolha pessoal. Além disso, a vacinação seria útil do ponto de vista individual, mas inútil do ponto de vista do comunidade, pois os vacinados continuam transmitindo a doença. Mas este último ponto é irrelevante para o que vai a seguir. Vamos nos concentrar na questão da liberdade individual.
Antes de mais nada, é claro que certas atitudes merecem o tolhimento dos movimentos do indivíduo. O cometimento de crimes, por exemplo. Ou o comportamento doentio antissocial. Nesses casos, parece não haver dúvida de que o Estado, em nome da sociedade, não só tem o direito, como tem o dever de isolar esses indivíduos do convívio social. Aqui, já não se trata de escolhas livres pessoais, mas de crime ou doença que ameaçam a vida em sociedade.
No caso da vacinação, escolher não se vacinar não é crime nem tampouco doença. Certa ou errada, trata-se de uma escolha livre individual. Neste caso, estaria o Estado autorizado a tolher os movimentos dessas pessoas?
Entra aqui o paralelo com a autorização para o exercício da medicina. Assim como no caso do certificado de vacinação, a exigência do CRM tolhe o movimento de profissionais que, de outro modo, poderiam exercer livremente a medicina. Assim como o CRM serve como um sinalizador externo de competência, o certificado de vacinação serve como um sinalizador externo de imunidade. Por outro lado, tanto um como o outro não representam, em absoluto, garantia de qualidade. O médico pode ser ruim e o vacinado pode pegar a doença e continuar a transmiti-la. Mas, assim como a sociedade exige que o Estado controle a qualidade dos médicos, também pode exigir que controle a qualidade da imunização dos indivíduos.
Claro que podemos pensar que um médico com CRM tem maior PROBABILIDADE de ser um bom médico, assim como uma pessoa vacinada tem maior PROBABILIDADE de não se contaminar e de transmitir a doença. Deste ponto de vista, o CRM e o certificado de vacinação não são indiferentes, ainda que não garantam 100% de eficácia. O contra-argumento é de que, ao confiar no CRM e no certificado de vacinação, podemos assumir mais riscos do que o que assumiríamos sem estes “selos de qualidade”, o que poderia não ser desejável.
Não quero e não vou entrar aqui no mérito da pertinência do certificado de vacinação. Meu objetivo era somente estabelecer a natureza do problema: tem o Estado, em nome da sociedade, o direito de restringir escolhas livres dos indivíduos com base em certos predicados? Friedman teve o mérito de radicalizar essa escolha, levando-a às suas últimas consequências, e permanecendo firme em sua tese. No entanto, no caso do certificado das vacinas, não vemos a mesma discussão sendo levada para vários outros âmbitos em que o Estado determina quem pode ou quem não pode exercer a sua liberdade. De maneira geral, aceitamos bem o fato de ser necessário um CRM para exercer a medicina ou uma carteira de motorista para dirigir um carro, e não percebemos que se trata de problemas de mesma natureza. Os defensores da liberdade não deveriam ir além em suas reivindicações?
No fim das contas, a vida em sociedade supõe um poder central que regula o que pode e o que não pode ser feito. A linha que separa a liberdade individual do poder estatal é borrada, sendo mais parecida com uma grande zona cinzenta do que com uma linha bem definida. O certificado de vacinação tornou-se o grande campo de batalha entre os defensores do poder do Estado e os defensores da liberdade individual. Acho que Friedman diria que este é apenas mais um detalhe, quase irrelevante, dado o atual nível de interferência do poder estatal nas escolhes livres das pessoas, que nem sequer notamos.
Documentários sobre a mãe natureza costumam nos brindar com cenas de tirar o fôlego. A aranha que ataca o inseto enredado em sua teia, por exemplo. Mas para se ter uma ideia exata do fenômeno, é preciso diminuir a velocidade do filme, mostrar a cena em câmera bem lenta. Vemos então, em detalhe, a fúria assassina da aranha em todo o seu esplendor.
Essa é a experiência sensorial que estamos vivendo neste momento no Brasil. A hiperinflação das décadas de 80 e 90 não nos permitia observar como o Estado brasileiro se financiava com base na inflação. A coisa era de tal maneira rápida e recorrente, que se tornava difícil distinguir os movimentos, tal como o ataque da aranha em velocidade normal.
O ano de 2021 nos permitiu ter a mesma experiência, mas em câmera lenta. A inflação foi bem acima da esperada pelos agentes econômicos e, por outro lado, os salários dos servidores públicos estão congelados. Ou seja, na prática, os salários do funcionalismo público foram reduzidos em termos reais. Por outro lado, a arrecadação acompanhou o aumento dos preços. Afinal, como já aprendemos no caso do ICMS dos combustíveis, a alíquota dos impostos é a mesma, mas a base de arrecadação é bem maior. Resultado: salários em dia e caixa em ordem.
O mesmo se pode dizer do governo federal, que vai produzir um déficit primário muito menor este ano e vai mostrar uma dívida pública bem menor do que as previsões mais catastrofistas. O segredo é o mesmo: inflação maior bombando a arrecadação e gastos com funcionalismo congelados.
Se a inflação não se acelerar em 2022, o truque se esgota. A arrecadação não cresce tanto e os funcionários públicos começam a fazer pressão por reajustes. Afinal, os caixas dos estados e da União estão em ordem. O que ainda não contaram para os funcionários é que aquele salário do passado é impossível de ser pago, o que vale e que pode ser pago em dia (por enquanto) é esse salário desidratado.
Em 2021, tivemos o privilégio de poder observar em detalhe como a inflação ataca os insetos que caem em sua teia, coisa que as pessoas das décadas de 80 e 90 não conseguiam observar a olho nu. A inflação é aliada do governo, a única forma de fazer caber suas promessas em um orçamento limitado. Pena que seja um truque que não possa ser usado de maneira recorrente.
O PT está convicto da viabilidade eleitoral de Fernando Haddad na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes neste ano. Será que dessa vez o partido de Lula finalmente conquistará a última fortaleza antipetista do país, o estado de São Paulo? Vejamos.
Em 2002, quando o PT ainda era o partido da esperança e Lula estava destinado a tomar o leme do país, o candidato do PSDB naquele ano, Geraldo Alckmin, deu uma lavada no candidato do PT, José Genoíno, no 2o turno: 59% a 41%. Isso porque Lula deu uma escovada em Serra no plano nacional, vencendo o 2o turno por 61% a 39%. A campanha de Lula foi tão espetacular naquele ano que o ex-metalúrgico conseguiu a façanha de ganhar a eleição em São Paulo, por 55% a 45%, a primeira e única vez em que isso aconteceu.
Daí em diante foi só ladeira abaixo para o PT em São Paulo. Em 2006, pós mensalão mas tendo bons resultados econômicos para mostrar, Lula conseguiu se reeleger com o mesmo percentual de 2002, 61% a 39%, contra Alckmin. No plano estadual, no entanto, ao contrário de 2002, Alckmin venceu Lula por 52% a 48%. E, para governador, Serra simplesmente atropelou Aloísio Mercadante, o candidato do PT, vencendo no 1o turno com 58% dos votos contra 32% do petista.
Em 2010, com o mensalão já perdido nas brumas da história e no auge de sua popularidade, Lula conseguiu emplacar o seu poste nas eleições presidenciais: Dilma venceu Serra por 56% a 44%. No entanto, em São Paulo, Serra venceu Dilma por 54% a 46%. E, para governador, Alckmin venceu as eleições no 1o turno, com 51% dos votos, novamente contra Mercadante.
Em 2014, com a economia já cambaleante e as nuvens negras do petrolão começando a cobrir o céu petista, Dilma conseguiu se reeleger em uma eleição bastante disputada contra Aécio Neves, 52% a 48%. No estado de São Paulo, no entanto, Aécio passou por cima de Dilma, com 64% a 36%, a maior votação estadual do mineiro. Para governador, Alckmin novamente se elegeu no 1o turno, com 57% dos votos. Alexandre Padilha, o candidato do PT, chegou apenas em terceiro lugar, com meros 18% dos votos, perdendo o segundo lugar para Paulo Skaf. Foi a pior votação do PT no estado desde 1994, quando José Dirceu também chegou em terceiro lugar, com 15% dos votos.
Finalmente, em 2018, com Lula preso, Bolsonaro vence Fernando Haddad no 2o turno por 55% a 45%. Em São Paulo, Bolsonaro ganhou por uma margem muito mais larga, 68% a 31%. E, nas eleições estaduais, o PT novamente não consegue chegar ao 2o turno: seu candidato, Luiz Marinho, conseguiu apenas 13% dos votos no 1o turno, chegando em 4o lugar, piorando ainda mais a marca alcançada por Padilha nas eleições anteriores.
Apenas para recapitular, vamos listar a seguir a votação do PT nas eleições de São Paulo desde a redemocratização:
1982: Lula – 11% (4o lugar)
1986: Eduardo Suplicy – 11% (4o lugar)
1990: Plinio de Arruda Sampaio – 12% (4o lugar)
1994: José Dirceu – 15% (3o lugar)
1998: Marta Suplicy – 22% (3o lugar)
2002: José Genoíno -32% (2o lugar) – 41% no 2o turno
2006: Aloísio Mercadante – 32% (2o lugar)
2010: Aloísio Mercadante – 35% (2o lugar)
2014: Alexandre Padilha – 18% (3o lugar)
2018: Luiz Marinho – 13% (4o lugar)
Chegamos em 2022. Os petistas plantam na imprensa a informação de que o partido está convicto da viabilidade eleitoral de Fernando Haddad. Só de observar a lista acima, podemos intuir o embuste. O PT, no auge de sua glória eleitoral em São Paulo, conseguiu chegar ao 2o turno (a única vez em que isso se deu) e perdeu de lavada. O PT que saiu das eleições de 2018 é do mesmo tamanho e relevância daquele das décadas de 80 e 90. Não é impossível que o PT melhore a sua performance em 2022 em relação a 2018. Mas daí a achar que “tem viabilidade eleitoral” em São Paulo, vai uma distância amazônica.
A cereja do bolo da notinha é a tentativa de convencer Boulos a desistir de sua candidatura em favor do candidato do PT, com a promessa de apoio para a prefeitura de São Paulo em 2024. Como se promessa de petista não fosse escrita na areia. Boulos, que de bobo não deve ter nada, vai sugerir o mesmo para o PT: apoio a Haddad na disputa pela prefeitura em 2024. Afinal, viabilidade eleitoral por viabilidade eleitoral, Boulos também tem.
No final, em São Paulo deve dar a lógica. Não sei quem vai ganhar a eleição, mas sei quem não vai ganhar: Haddad. Aqui o PT não se cria.
A manchete de hoje é o “esvaziamento” da pasta da economia, com o ministro Paulo Guedes supostamente se tornando um mero subordinado de Ciro Nogueira, o ministro da Casa Civil e um dos chefões do famigerado Centrão. O que dizer?
Parece-me, na verdade, um ganho para o ministro da Economia, não uma perda, na medida em que o livra do desgaste de ser, sozinho, o guarda mau da praça, aquele que sempre diz não.
Para entender isso, é preciso ter em conta, em primeiro lugar, que a regra do teto de gastos ainda existe. Foi modificada em uma manobra pra lá de oportunística, mas ainda existe um limite formal para os gastos, inscrito na Constituição. Portanto, não estamos discutindo aumento de gastos, mas o seu remanejamento. Qualquer aumento de gastos por fora do teto precisa necessariamente passar por votação no Congresso, que tem a última palavra sobre o orçamento público.
Além disso, estamos falando de aproximadamente 5% do orçamento, que são os gastos não obrigatórios. 95% do orçamento já foi carimbado pelo Congresso, nessa e em todas as legislaturas anteriores, desde a proclamação da República. Por isso, acho graça de especialistas dizendo que a execução do orçamento será “politizada”, como se o ministério da Economia fosse uma espécie de ilha imune à política.
A execução do orçamento é sempre política, por definição. O ministério da Economia apenas executa o que os outros ministérios (ou, no caso de emendas parlamentares, os próprios congressistas) definem, tendo como guia a lei orçamentária. É o cara chato que tem como missão avisar que o dinheiro acabou, mas só isso.
Como a lei do teto não foi revogada, foi apenas modificada, o ministério da Economia faz apenas o papel da tia do refeitório, que enche o prato dos alunos com uma quantidade limitada de comida. A indicação do ministro da Casa Civil para dar anuência aos gastos é sinal de que a fila dos alunos virou uma zona, todo mundo querendo passar na frente e pegar mais comida. A tia da cantina não tem condições de avaliar quem tem ou não razão, por isso foi preciso chamar o bedel pra colocar ordem na escola. Só isso.
Essa decisão diz mais sobre o governo Bolsonaro do que sobre o ministro Guedes. Ao chamar o ministro da Casa Civil para organizar a fila, Bolsonaro demonstra que efetivamente perdeu a capacidade de arbitrar as prioridades políticas de seu governo, delegando esse poder ao Centrão de Ciro Nogueira. Tendo sido convencido de que a “nova política” não tinha futuro e não tendo vocação para a “velha política”, Bolsonaro abriu mão da política para dedicar-se às pautas que verdadeiramente lhe interessam, como agradar o baixo clero dos militares e cultivar as franjas do conservadorismo. O Centrão agradece.
A jornalista Adriana Fernandes dá a sua contribuição para o debate eleitoral do ponto de vista do modelo de controle fiscal a ser adotado pelo país. Pena que seja a contribuição de alguém que ouviu o galo cantar mas não sabe bem onde.
A tese central da jornalista é de que a regra do teto de gastos, da forma como está hoje, é inexequível, e dá margem a “pedaladas fiscais”, como foi o caso dos superávits primários. Portanto, seria necessária uma regra mais “flexível”, mais “moderna”, que fosse passível de ser cumprida e, ao mesmo tempo, contasse com a confiança dos credores da dívida pública. O que dizer?
Bem, em primeiro lugar, a regra dos superávits primários (que nunca foi escrita!) durou nada menos do que 15 anos! Portanto, não era tão inexequível assim. Na verdade, foi possível cumprir a regra enquanto as receitas do governo aumentavam 5% reais ao ano, cavalgando no crescimento global puxado pela China. Quando o mundo desacelerou, o governo Dilma até que tentou segurar o crescimento das despesas, mas sabe como é… Desse, modo, a regra dos superávits primários tornou-se “inexequível”, dando origem às pedaladas.
Portanto, essa história de uma regra ser ”exequível” ou “inexequível” é apenas uma outra forma de dizer que o Estado brasileiro tem pouquíssima flexibilidade para reduzir a velocidade de aumento das despesas e depende do cenário externo para se financiar. Nesse sentido, entende-se o adjetivo “pró cíclico” que a jornalista usa para a regra do superávit primário: quando as coisas vão bem, o governo tem espaço para aumentar as despesas, quando vão mal, precisa diminuir despesas ou aumentar impostos, o que piora o ciclo recessivo.
A regra do teto de gastos, por outro lado, é anticíclica: quando as coisas vão bem, a arrecadação aumenta, mas não pode ser usada para ampliar gastos. Trata-se de uma poupança forçada. Por outro lado, quando as coisas vão mal, as despesas podem continuar crescendo junto com a inflação e não é necessário aumentar impostos. Essa é a virtude principal da regra do teto, superior, nesse sentido, à regra dos superávits.
Mas mesmo tendo esse componente anticíclico reclamado pela jornalista, ainda assim a regra do teto não está boa, é “inexequível”. A proposta (e aqui entra o componente do galo cantando não se sabe onde) é uma tal “meta de resultado estrutural ajustada ao ciclo econômico”. Por trás do economês temos o bom e velho superávit primário (“resultado”), sem contar com receitas ou despesas não recorrentes, como privatizações (“estrutural”), e retirando o caráter pró cíclico (“ajustada ao ciclo econômico”). A proposta parece realmente excelente, flexível e moderna. Inclusive, tem o selo de qualidade “a exemplo do modelo europeu”. Há, no entanto, dois problemas com essa proposta, que esbarram nessa coisa chata chamada realidade.
A primeira é mais técnica: como definir o que é despesa recorrente? E, principalmente, como definir o “ciclo econômico”? A discussão dos precatórios demonstra quão difícil é definir a natureza das despesas. Auxílio emergencial por 3 anos, é recorrente ou passou a ser normal? Mas é na definição de ”ciclo econômico” que a tese encontra sua maior armadilha: qual o crescimento “normal” do país? Crescer a 1%, como tem sido a regra desde 2017, é normal ou estamos no ponto baixo do ciclo econômico? Essa é A questão relevante, pois, a depender da resposta, a regra poderá permitir a produção de déficits primários. Afinal, é preciso “estimular” a economia quando estamos na baixa do ciclo econômico.
Enfim, a coisa parece que funciona na Europa. Sim, porque lá é a Alemanha que dá as cartas. E, para os alemães, não há regras “inexequíveis”. Se há uma regra, se cumpre. Sem jeitinhos. No Brasil, e esse é o segundo problema, o tal “resultado estrutural ajustado ao ciclo econômico” somente daria mais graus de liberdade para os jeitinhos, deixando ainda mais distante a perspectiva de redução da dívida pública. O resultado serão taxas de juros mais altas, pois se os credores já desconfiam do cumprimento de uma regra rígida, imagine em relação a uma regra mais “flexível”, que praticamente institucionaliza o jeitinho.
No fundo, toda essa discussão só existe porque a sociedade brasileira quer que o Estado gaste mais. Qualquer limite sempre será “inexequível”. A única regra “exequível” será aquela que permitirá “flexibilidade” suficiente para tornar o processo indolor. É um pouco como acreditar em emagrecimento sem sacrifício. Acho que vou lançar um “método de emagrecimento com resultados estruturais ajustados ao ciclo psíquico”, em que não contam os períodos de festas e os momentos em que a pessoa está triste e precisa descontar na comida. Vai fazer um baita sucesso!