Em meu post de ontem, em que crítico a fala do presidente defendendo neutralidade em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia, muitos contra-argumentaram que o Brasil votou a favor da condenação do ataque no Conselho de Segurança da ONU, que é o fórum que importa. Portanto, seria uma má vontade com o presidente pinçar uma frase dita à beira da praia durante o carnaval e simplesmente esquecer o voto do Brasil na ONU.
Pode parecer algo bobo, sem importância, mas essa dicotomia diz muito sobre o presidente e sua torcida organizada. Vejamos.
O primeiro ponto importante a considerar é que estamos diante de dois fatos que pertencem ao mundo real. De fato, o presidente afirmou que o Brasil deveria buscar a neutralidade e, de fato, o Brasil votou pela condenação ao ataque no Conselho de Segurança. Devemos concordar, de início, que estes dois fatos são reais, aconteceram. O primeiro objetivo, portanto, é tentar entender porque o voto brasileiro no Conselho de Segurança não ornou com as declarações do presidente. Temos três hipóteses.
A primeira hipótese é que a diplomacia brasileira não segue a orientação do presidente. Seguisse e fosse coerente com o discurso de neutralidade, teria optado pela abstinência na votação da ONU, como fizeram China, Índia e Emirados Árabes.
A segunda hipótese é que, por algum misterioso motivo, o presidente falou uma coisa na praia, mas orientou o seu oposto para a diplomacia. Uma possível explicação para essa dicotomia é que Bolsonaro detesta entrar em conflito com grupos de interesse. Quando se trata de confrontar a esquerda ou o politicamente correto, não tem pra ninguém. Mas quando a situação exige confrontar corporações do serviço público ou lobbies, Bolsonaro sempre procura contemporizar. Vimos isso acontecer, por exemplo, durante a tramitação da reforma da Previdência, em que as declarações do presidente frequentemente iam de encontro ao projeto do próprio governo. Nesse caso, não seria mera coincidência a citação aos fertilizantes, uma pauta cara ao setor do agribusiness.
Por fim, a terceira hipótese é de que o presidente se arrependeu da posição do Brasil na ONU. As declarações se deram após a votação, e esse lapso temporal explicaria a mudança de posição.
Em qualquer das três hipóteses, o voto no Conselho de Segurança não serve como alívio para a fala do presidente. Na primeira hipótese, porque o voto não teria sido orientado pelo presidente. Na segunda, por que se trataria de uma forma de dissimular a verdadeira posição do governo no assunto, como se falar uma coisa e fazer outra passasse despercebido. E, na terceira, porque teria havido arrependimento, o que revelaria a sua posição mais atual sobre o tema.
Para terminar, um palavra final sobre a torcida organizada. Criticar o presidente da República, qualquer que seja ele, é uma prerrogativa que assiste a qualquer pessoa em regimes democráticos. Isso não significa que se vai automaticamente votar em seu oposto. Se eu deixo de escrever as minhas críticas, não significa que o comportamento criticável desaparecerá. As pessoas observam e tomam as suas posições. Há uma tentativa de inversão da culpa: o culpado pela derrota eleitoral do presidente seria aquele que escreve sobre o comportamento do presidente e não o próprio presidente, autor do comportamento.
Costuma-se dizer que o “culpado” pela eleição de Bolsonaro foi o próprio PT, com sua montanha de erros acumulados. Da mesma forma, o culpado pela eventual volta do PT serão tão somente os erros acumulados do presidente. Não culpem o mensageiro.