Há não muito tempo, a colunista Eliane Catanhede protagonizou o que talvez tenha sido o mais famoso “cala boca Magda” da história do jornalismo brasileiro, ao sugerir, em sua coluna, que Lula poderia desistir de sua candidatura, ocupando uma vaga de vice-presidente em uma “chapa de união”. Lula, com a verve que Deus lhe deu, respondeu que Catanhêde poderia dar um golpe de mestre e parar de escrever bobagem, fazendo alusão ao título da coluna, “Golpe de mestre”.
Catanhêde, dessa vez, para não levar um outro “cala boca”, toma o cuidado de não assumir a maternidade de outra ideia genial. Em sua coluna de hoje, explica como Lula deveria conduzir a sua campanha se quiser ter alguma chance contra Bolsonaro, e atribui as suas ideias a uma suposta “ala moderada” do PT, como se isso existisse.
Em resumo, segundo a colunista, Lula deveria “caminhar para o centro”, “abrir mão da reeleição” e ”prometer reconstruir o país”. Na verdade, dessas três “ideias”, duas são meio que óbvias e uma (a da reeleição) é prima-irmã de assumir uma vaga de vice, além de ser, claro, uma promessa pouco crível. “Ser o presidente da reconstrução” é o que todos, com exceção do incumbente, prometem. E “caminhar para o centro” é o que Lula já começou a fazer, ao escolher Alckmin como vice. Aliás, na verdade, esse é um movimento quase dispensável, dado que todas as falas radicais do candidato, como revogar a reforma trabalhista ou acabar com o teto de gastos, são considerados pelos “centristas doidos para votar em Lula” como “discurso de campanha” que será abandonado pelo “pragmático Lula”.
A colunista, no último parágrafo, deixa entrever o seu objetivo: aconselhar o seu candidato in pectore a como enfrentar a “intensa pancadaria” que vai sofrer durante a campanha. Como se sofrer pancadaria fosse uma exclusividade de Lula e como se a pancadaria não fosse, de alguma forma, merecida. Para não ficar parecendo que Catanhêde virou estrategista da campanha do PT, aguardamos análise semelhante para os outros candidatos.
O indiano Raghuram Rajan, ex-presidente do BC indiano e ex-economista-chefe do FMI, dá uma entrevista muito boa hoje no Valor. Destaquei o trecho abaixo porque representa uma boa parte do otimismo (ou seria melhor dizer “fio de esperança”) que nos resta: a esperança de que os oligarcas deponham Putin para preservarem as suas fortunas, alvos das sanções ocidentais.
Rajan sopra um ar gélido sobre a chama da esperança, ao dizer que Putin, assim como qualquer líder autocrata, legitima a própria existência dos oligarcas. Ou seja, ao derrubar Putin, esses oligarcas estariam dinamitando a própria estrutura que os sustenta. A entrada de outro dirigente, autocrata ou não, significaria começar o jogo do zero, o que torna o futuro imprevisível para esses oligarcas. Assim, entre perder uma parte de sua fortuna ou a sua legitimidade, a escolha é óbvia.
Mas Rajan deixa ainda uma fresta aberta na porta da esperança: os movimentos de massa, que poderiam forçar a troca do regime. Na medida em que mais soldados russos morrem em uma campanha que não faz sentido, seria cada vez mais provável uma insurreição da população, o que presumivelmente levaria à queda de Putin.
Lamento ter que eu mesmo soprar um ar gélido sobre essa outra chama de esperança de Rajan e de muita gente. Há pouco tempo, escrevi a resenha de um livro que descreve o regime de terror de Stálin, Sussurros, do historiador britânico Orlando Figes. Um dos capítulos narra a Grande Guerra Patriótica, nome pelo qual ficou conhecida a 2a Guerra na União Soviética. Neste capítulo, Figes descreve como os soldados russos tiveram contato com a chamada “civilização ocidental” na medida em que suas tropas foram avançando pela Alemanha, e como esse contato fez “cair a ficha” das mentiras contadas pelo regime a respeito de seu próprio bem-estar e da produtividade de seus campos. Em certo momento, houve a esperança de que esse seria um catalisador para a mudança do regime, pois os soldados voltavam falando sobre tudo o que viram e reclamando do governo de maneira aberta.
No entanto, como sabemos, Stálin continuou a governar o país com mão de ferro até a sua morte, em 1953. E uma revisão do stalinismo somente ocorreu em 1956, quando Kruschev se sentiu suficientemente seguro para implantar o seu próprio regime. Ou seja, somente 11 anos depois do “desmascaramento” das mentiras do regime. Ocorre que um regime de força dispõe de instrumentos de terror para lidar com esse tipo de pressão. Agora mesmo, Putin está prendendo ativistas, censurando redes sociais e contando a sua própria história nos telejornais. Para quem tem curiosidade sobre como uma única pessoa pode tornar refém um país inteiro durante anos, sugiro a série documental da Netflix, Como se Tornar um Tirano.
Portanto, quem espera que Putin caia para resolver o problema da guerra na Ucrânia, talvez seja melhor puxar um banquinho e esperar sentado.
Vi Ricardo Semler uma vez. Foi em uma palestra na sede do PSDB a que um amigo meu, filiado ao partido, levou-me no final da década de 80. Semler acabara de lançar o livro que o alçaria ao seu breve estrelato, Virando a Própria Mesa, em que conta como havia feito uma revolução na empresa que havia herdado (ou iria herdar, não sei ao certo), a Semco. Foi um precursor da parte S do ESG: muito atento ao bem-estar dos funcionários e coisas do tipo. A única coisa que lembro da palestra foi ele ter contado que sua empregada doméstica recebia um salário que lhe permitia vir para o trabalho em sua casa de carro. Achei aquilo o máximo e a informação arrancou suspiros de admiração da plateia. Claro, estava terminando a faculdade, e não tinha ideia de como era sustentar uma casa de classe média com o próprio salário. Semler não tinha esse problema, aparentemente.
Esse longo preâmbulo serve para introduzir um artigo de Ricardo Semler publicado hoje na Folha. Em resumo, Semler defende que os empresários devem parar de procurar uma terceira via que não existe, e cerrar fileiras de uma vez em torno de Lula, o único que pode nos salvar das garras do troglodita que ocupa o Palácio do Planalto desde 2019.
Em primeiro lugar, é louvável assumir uma posição sem ambiguidades. Muitos por aí se dizem atrás de uma opção de terceira via, mas nenhum dos nomes que estão aí lhes agradam, de forma que vão votar em Lula ou em Bolsonaro porque “faltam opções”. Opções não faltam, o que falta é a transparência que sobra a Semler sobre a sua opção preferencial. Não fosse assim, os dois candidatos não estariam sobrando nas pesquisas sobre todos os outros rivais.
Tendo dito isso, não deixa de ser engraçado o contorcionismo mental que o empresário faz para justificar a sua opção. Não podendo dizer que não houve grossa corrupção nos governos do PT (“em medida menor”), Semler quer dar uma “segunda chance” para o partido. E se sai com uma comparação do arco da velha: assim como a Alemanha se rearmar não significa que os nazistas vão voltar, dar o poder novamente ao PT não significa que a corrupção vai voltar.
Dizem que o amor cega. Deve ser este o caso. O empresário simplesmente “esquece” que a Alemanha criminalizou o nazismo, condenou todos os oficiais nazistas que não fugiram ou se mataram, e passou, talvez, pela maior ajoealhada no milho da história da humanidade. Até hoje, os alemães sentem vergonha do que aconteceu. O PT, por outro lado, não reconheceu uma vírgula do que ocorreu. Segundo o partido, os bilhões roubados da Petrobrás sumiram como que por um passe de mágica, não houve um ladrão. Como Semler quer comparar os dois casos?
Depois lança mão do mais puro e perfumado whataboutismo. Afinal, por que a resistência dos empresários a Lula, que sequer tem ilhas secretas e contas na Suíça como Putin, quando apoiaram sem pudor nenhum os Sarneys, Malufs e Quércias da vida. Como se esses fossem candidatos hoje. Semler parou naquela palestra do final dos 80, em que Lula era o baluarte incorruptível contra a sujeira da política brasileira. O que veio depois foi apenas um acidente de percurso, que pode ser “perdoado” como fizemos com a Alemanha arrependida do nazismo. Francamente.
O que Semler ignora olimpicamente em seu artigo é que os empresários estão pouco se lixando para a corrupção de Lula, assim como estavam se lixando para a corrupção de Sarney, Maluf e Quércia. O que realmente importa é uma política econômica que faça sentido, e não um amontoado de iniciativas que beneficiam apenas os amigos do rei, associadas a ideias já testadas e reprovadas ao longo da triste história econômica brasileira. Do que os empresários se pelam de medo é da continuidade do governo Dilma, apeada do poder, entre outras coisas, por ter uma visão jurássica de economia, e que nos causou a maior recessão desde a década de 30.
Semler intui este problema, ao propor que os empresários “negociem” com Lula que este junte ao seu time economistas como Armínio Fraga, Pedro Malan e Pérsio Arida. Seria uma forma de garantir que Lula fosse, na verdade, um FHC na economia. Só tem um problema: Lula foi FHC somente nos primeiros três anos de seu governo. No resto, incluindo o governo Dilma, Lula foi Lula. E deu no que deu. Lula aprendeu com seus erros? Que erros, ele vai perguntar, a mesma resposta que daria para os casos de corrupção. Lula e o PT nunca erram.
Não, Lula não vai topar que Armínio, Malan e Pérsio façam parte de sua equipe, pois não comunga de seus pontos de vista. E tampouco Armínio, Malan e Pérsio topariam fazer parte de um governo Lula. Não estamos mais em 2002, em que economistas como Marcos Lisboa, Alexandre Schwartsman e Joaquim Levy toparam fazer parte do governo. Passaram-se 20 anos, e o filme que passou neste período não foi nada bonito. Talvez Geraldo Alckmin seja o único que topa emprestar o seu nome para que Lula pose de social democrata para Semler ver.
A notícia da aprovação, por parte da Rede, da composição de uma federação com o PSOL, é o fio da meada que nos permitirá entender a natureza da política partidária brasileira.
Comecemos por Marina Silva. Marina apareceu no cenário nacional nas eleições presidenciais de 2010, quando obteve um surpreendente terceiro lugar sendo filiada ao pequenino PV. Chegou a ser chamada de “Lula de saias” pela sua origem humilde. Empoderada pela sua performance, quis tomar conta do partido, mas não contava com a astúcia do dono do PV, José Luis Penna, que lhe fechou a porta. Assim, Marina Silva deixou o PV em 2011 e se lançou à aventura de formar o próprio partido. Descobriu, a duras penas, que é mais fácil obter 20 milhões de votos em uma eleição do que 500 mil assinaturas para formar um partido. Mas o ponto a que eu queria chamar a atenção é outro: Marina privilegiou seu projeto pessoal em detrimento da fidelidade a um partido.
Marina não está sozinha. A Rede elegeu 5 senadores em 2018. Hoje só resta um, Randolfe Rodrigues. Um desses senadores, Alessandro Vieira, migrou para o Cidadania, certamente de olho em voos mais altos. Com o anúncio da federação entre PSDB e Cidadania, e a óbvia dificuldade de tirar Doria do posto de candidato do agrupamento, Alessandro anunciou a saída da legenda. Seu projeto pessoal foi mais forte do que a fidelidade a um partido.
Fabiano Contarato foi outro senador eleito pela Rede que acabou de anunciar a desfiliação para tocar o seu projeto pessoal de se candidatar ao governo do Espírito Santo. Lula, que de bobo não tem nada, lhe dará a legenda.
Mas projetos pessoais não são monopólio da Rede. O governador Eduardo Leite, derrotado nas prévias do PSDB, deve se desfiliar para tocar o seu projeto pessoal de ser candidato à presidência. Alckmin também se desfiliou do PSDB para tocar o seu projeto pessoal. Bolsonaro, não tendo conseguido fundar um partido para chamar de seu e tendo perdido a briga com Luciano Bivar pelo controle do PSL, migrou para o PL para continuar tocando o seu projeto pessoal. Mesmo o PT não passa de um grande projeto pessoal de Luís Inácio Lula da Silva. No dia em que Lula desaparecer do cenário político nacional, o PT será apenas mais um par de letras na sopa de letrinhas que forma a política partidária brasileira.
Obviamente, o elemento pessoal conta muito em eleições, aqui no Brasil e em qualquer lugar do mundo. Isso é uma coisa. Outra coisa é subordinar os interesses do partido a projetos pessoais. Em democracias consolidadas, por mais carismático que seja um político, ele não sai do lugar se não conquistar corações e mentes de um grande partido, o que lhe dá sustentação para governar depois. Aqui, os partidos são meras fachadas para projetos pessoais. Não à toa, a governabilidade somente é possível na base de mensalões, petrolões e emendas secretas.
Tem jeito? Não. Mesmo políticos com ares modernos, como Eduardo Leite ou Alessandro Vieira, não escapam dessa lógica. É da nossa natureza, está em nosso DNA. Conforme-se, é o que temos para hoje.
Um governo autoritário se lança em uma aventura militar para galvanizar o sentimento patriótico da população e, assim, desviar a atenção de seus problemas internos. Não, não estamos nos referindo à invasão da Ucrânia pela Russia. Essa é a descrição da invasão das Malvinas pela Argentina em 1982.
Claro que todo paralelo histórico tem seus defeitos. No caso, a Ucrânia é um país soberano, ao passo que as Falklands (vou usar os dois nomes das ilhas para não parecer que estou tomando partido rsrsrs) são uma possessão do Reino Unido. Assim, a marinha da rainha veio em defesa do território invadido, ao passo que a Ucrânia precisa se virar sozinha, pois nem a OTAN pode lhe vir em socorro nessa hora. No entanto, os países do ocidente determinaram sanções que, no dizer de Putin, equivalem a uma declaração de guerra. Portanto, na prática, mesmo sendo um país soberano e não uma possessão, a Ucrânia pode contar, em certa medida, com o esforço de guerra do ocidente.
Outra característica que aparentemente enfraquece o paralelo são as motivações. Enquanto os generais argentinos enfrentavam crescente descontentamento interno e usaram a guerra para prolongar a sua sobrevida, Putin, em tese, contava com razoável apoio interno e, segundo uma parcela significativa dos analistas ocidentais, teria feito esse movimento para proteger seu território contra o avanço da OTAN. O curioso, no entanto, é que o discurso de Putin não tem sido esse. Naquela longa aparição na semana da invasão, o líder russo gasta a sua saliva para contar a história da grande Mãe Rússia, e de como a Ucrânia faz parte inseparável dessa história. Longe, portanto, de uma posição defensiva. Assim como Galtieri não levantou a possibilidade de uma invasão da Argentina pelo Reino Unido para justificar a operação, da mesma forma Putin não usou a carta da defesa como justificativa para a invasão da Ucrânia. Mesmo porque, a possibilidade de uma invasão da Rússia pela OTAN é tão alta como a possibilidade de uma invasão da Argentina pelo Reino Unido. O contrário, como se viu, não é verdadeiro.
Mas, apesar dessas possíveis falhas no paralelo (e que, como vimos, com um pouco de esforço podem ser superadas), há uma semelhança entre os dois eventos a que seria bom estarmos todos atentos: um dos dois lados necessariamente sairá derrotado e humilhado deste evento. A não ser que a Ucrânia seja um país de schrödinger, ao final da guerra os ucranianos terão um país soberano ou um país submetido às regras de Moscou. No primeiro caso, Putin, assim como ocorreu com Galtieri, cairá e, com ele, o seu sistema de governo. No segundo caso, os governos ocidentais observarão, constrangidos e sem margem de manobra, a Rússia com o domínio sobre um país antes soberano.
Claro que há nuances. A hipotética vitória russa não será tão clara em um primeiro momento. As tropas de Putin podem tomar Kiev e instalar um governo fantoche sem que os governos ocidentais reconheçam a sua vitória. Neste caso, as sanções econômicas poderiam perdurar por anos, sem que nenhum dos dois lados cedesse (vide os casos de Venezuela e Irã). Não se trata de uma perspectiva muito boa para a economia global, mas é uma possibilidade real.
Outra nuance importante é que, hipoteticamente, pode se chegar a uma solução de compromisso, com a Ucrânia cedendo os territórios do sudeste mais a Crimeia para a Rússia, além do compromisso de não aderir à OTAN, em troca de sua soberania para aderir à União Europeia. No entanto, neste caso, a aparente saída honrosa, na verdade, seria uma vitória superlativa da Rússia. Com a força das armas, arrancou territórios e o compromisso de um país soberano sobre o seu próprio destino. Antes da guerra, a Ucrânia poderia fazer o que bem entendesse. Depois da guerra, a Ucrânia não pode aderir à OTAN e, ainda mais, perdeu territórios. Gostaria de ver algum país ocidental defendendo que essa solução não significa uma derrota humilhante. Além disso, existe uma fila de países no mundo com vontade de aumentar os seus territórios pela força das armas, a começar pela China.
Dadas as consequências, o melhor resultado é a derrota da Rússia e a queda do regime. No entanto, é difícil saber como se comportará um país derrotado de forma humilhante pela segunda vez em 30 anos. Não seria um problema, não fosse a presença do segundo maior arsenal nuclear do planeta.
Ha alguns anos, tive um problema com uma compra na internet. Não lembro exatamente com o quê, porque faz muito tempo. Decidi procurar o PROCON para tentar resolver. Lembro que, a muito custo, consegui registrar a minha reclamação, em um site pouco amigável.
Foi quando descobri o site do Reclame Aqui. A diferença era brutal: fácil de usar, consegui registrar minha reclamação em uma fração do tempo que havia gasto no site do PROCON. Em poucos dias, havia resolvido a minha situação. Algum tempo depois, recebi um e-mail do PROCON, solicitando o envio de uma série de documentos para dar andamento à reclamação! Ali ficava clara a inutilidade do órgão.
O diretor do PROCON-SP, Fernando Capez, quando aparece no jornal, é para ameacar empresários de praticarem “preços abusivos”. Enquanto o papel do PROCON, que é proteger consumidores de práticas abusivas de empresas, é feito por uma empresa privada, a autarquia se preocupa em “controlar preços”, algo sem amparo algum na lei. No Brasil, os preços são livres. Se um dono de posto quiser colocar a gasolina a R$ 20 o litro, não há lei nenhuma que o impeça. A única lei que regula o impulso do dono do posto é a lei da oferta e da demanda.
A preocupação do PROCON deveria ser evitar a formação de cartel. Mas, nesse caso, a fala do diretor do órgão deveria ser “o PROCON vai combater a cartelização”, e não a “especulação”. Como, de resto, deveria ser papel permanente do órgão, e não somente quando a Petrobras aumenta seus preços.
Com essa fala, o diretor do PROCON sanciona o potencial comportamento abusivo de seus fiscais. O dono do posto, depois de investir o seu bom dinheiro no estabelecimento de um negócio, pagar seus funcionários, recolher impostos e, depois disso, ainda tentar dar lucro, precisa lidar com os pequenos xerifes da justiça social, que sabem qual o preço “justo” do combustível. O espírito do cruzado, que, em 1986, prendeu donos de supermercado por praticarem “preços abusivos”, continua vivo e alerta. O brasileiro médio concorda com Fernando Capez, é preciso tratar esses empresários com rédea curta.
O curioso é que Fernando Capez foi nomeado pelo governador João Doria, o champion da iniciativa privada. Doria, depois de uma fala desse tipo, para ser coerente com suas convicções liberais, deveria demitir o diretor do PROCON sumariamente. Mas coerência não é artigo em abundância no mercado hoje em dia.
Essa história de que o governo russo agora admite não derrubar Zelensky é tão crível quanto as promessas de que não haveria invasão, mesmo acumulando tropas nas fronteiras. Putin realmente estaria satisfeito com um pedaço de papel assinado por Zelensky abrindo mão da adesão à OTAN? E, se fosse somente pelas províncias russas orientais, não precisaria ter ocorrido uma invasão de grandes proporções, vide Crimeia.
E falta um ator na mesa de negociações: os EUA. Estariam Biden e seus aliados dispostos a abrirem mão das sanções na hipótese de Zelensky topar abrir mão da OTAN sob a mira de uma baioneta? A Rússia voltaria normalmente ao convívio das nações depois de ter conseguido o seu objetivo usando a sua máquina de guerra contra uma nação soberana? No momento em que os países ocidentais assumiram um lado no conflito, amarraram o seu destino a esse lado e fazem parte da guerra. Não à toa, Putin considerou as sanções como um ato de guerra.
Posso estar enganado, mas acho que estamos em uma situação em que não há saída não humilhante para nenhum dos lados. Putin não consegue voltar ao status quo anterior somente com uma promessa nas mãos, assim como é difícil que Biden e seus aliados levantem as sanções sem que Putin volte ao status quo anterior. Por outro lado, não há guerra sem vitoriosos e derrotados. Portanto, um dos lados vai ceder no final. Ainda não está claro quem vai ceder e quando, e as consequências do novo arranjo para o futuro.
Em meu último artigo sobre a guerra, desenvolvi a hipótese de que os países do leste europeu poderiam ter o mesmo destino da Ucrânia se não tivessem se aliado à OTAN. A evidência, para mim, foi justamente o fato de esses países QUEREREM se aliar à OTAN, mesmo conhecendo o risco de serem mal-entendidos pela Rússia. Supus que ninguém conhece melhor a “alma russa” do que os seus vizinhos.
Pois bem, fui inundado de artigos de respeitados especialistas afirmando o contrário (como se eu já não tivesse lido todos eles): que a Rússia estava quieta no seu canto, e foi provocada pela OTAN. Hoje, o Estadão traz uma entrevista com um especialista em Rússia, que nao não é um zé mané palpiteiro como eu, e que tem o mesmo ponto de vista do meu artigo.
Significa que ele está certo? Não. Significa apenas que essa é uma discussão em aberto. A história é uma ciência em que o contrafactual é impossível. Portanto, quem afirma com certeza que “teria acontecido isso se aquilo”, ou “não teria acontecido isso se não aquilo” está apenas chutando, por mais especialista que seja.
Historiador é como economista: é muito bom para explicar o passado, mas péssimo para desenhar o futuro. Existe um viés bem conhecido em investimentos chamado “hindsight”. Esse viés nos leva a acreditar que eventos que ocorreram eram óbvios, dava para prever com relativa facilidade. Como sempre vai haver um historiador ou um economista que “previu” aquele cenário (tem sempre um monte de gente falando um monte de coisa), o que foi dito é recuperado e toma ares de profecia, com a ilusão da previsibilidade se estabelecendo. Falta, obviamente, o contrafactual: o que teria acontecido se as premissas da previsão não tivessem se concretizado.
Portanto, é preciso tomar cuidado ao concluir rapidamente sobre a direção da causalidade em eventos históricos. É possível que Putin estivesse agora em seu canto se a OTAN limitasse a sua presença às fronteiras da Alemanha? Sim. Assim como é possível que estivesse agora bombardeando Varsóvia, como está fazendo em Kiev. Tudo é possível. E, como tudo é possível, os países do leste europeu não quiseram jogar com a sorte. Não acho uma atitude condenável.
Em reportagem investigativa, o Estadão nos revela que grande parte das minas de potássio na Amazônia não estão em terras indígenas. Portanto, o projeto de permissão de exploração mineral em terras indígenas, defendido por Bolsonaro, estaria usando a desculpa do potássio para fazer passar um projeto que seria uma ameaça existencial aos índios.
Bem, como algumas verificações burras de fact checking às vezes fazem, a reportagem acerta no literal mas perde o big picture conceitual. De fato, strictu sensu, as minas não estão em reservas indígenas, não há como negar olhando o mapa que acompanha a reportagem. Mas, conceitualmente, é como se estivessem, como mostra artigo de Antônio Caberera, ex-ministro da agricultura de Collor, publicado apenas duas páginas antes.
A única mina citada nominalmente pela reportagem é a de Autazes, pertencente à empresa canadense Potássio do Brasil. Coincidentemente, é a única mina também citada pelo ex-ministro em seu artigo, o que nos leva a crer que este é, de longe, o projeto mais importante da região. E o que está acontecendo? Para saber, precisamos juntar informações da matéria e do artigo.
A reportagem afirma apenas que a mina está a 8 km de distância de uma reserva indígena, e que, por isso, é necessário consultar os índios para obter a licença de exploração. Por outro lado, no artigo, ficamos sabendo que a empresa vem tentando obter essa licença desde 2015!
Observe a situação: o principal projeto de exploração de potássio na região amazônica está parado desde 2015 porque a justiça exige consulta aos índios MESMO A MINA NÃO ESTANDO EM TERRAS INDÍGENAS. Então, como afirma a matéria, de fato não há minas em reservas indígenas. Mas isso não impediu que a justiça exigisse a consulta aos índios, que moram no Tatuapé, se uma obra na Praça da Sé iria atrapalhar sua tranquilidade.
É digno de nota a redação usada pela reportagem: “busca de um acordo em relação ao impacto na região, mas não de inviabilidade do projeto”. Quem leu meu artigo sobre o linhão Manaus-Boa Vista vai reconhecer essa linguagem. Naquele projeto, aprovado em 2011 e que, até hoje, não saiu do papel, os índios também não tinham como impedir o projeto, mas precisavam ser consultados. Essa “consulta”, na verdade, é uma desculpa para impedir o projeto, como demonstra mais de 10 anos de história. O caso da mina de potássio parece seguir pelo mesmo caminho, pois lá já se vão 7 anos de “consultas”.
Bolsonaro quer aprovar legislação que permita a exploração mineral em terras indígenas, como se isso fosse resolver alguma coisa. Como vimos no caso em tela, a mina sequer está em terra indígena. Mas isso não foi barreira para que a nossa brava justiça defendesse os interesses indígenas. No caso do linhão, assim como neste, a questão passou por governos de diferentes cores e tendências ideológicas. Mas, entra governo, sai governo, o que manda mesmo é a justiça federal, juízes e promotores, em sua missão de fazer justiça social às custas do bem-estar da população.
Moisés Naim, colunista do Estadão, sugere que o modelo de união entre os governos ocidentais seja também usado para ações de combate às mudanças climáticas. Afinal, segundo o colunista, o mundo está provando que é possível reagir a uma ameaça comum com união e assertividade.
Bem, é realmente difícil entender de onde o escriba tirou o paralelo entre as duas situações. Na superfície há alguma semelhança. Mas basta um pouco de análise para verificar que as situações são completamente diferentes, quando não opostas. Vejamos.
Grosso modo, ações de combate às mudanças climáticas significam colocar algum preço na emissão de carbono, o que, por sua vez, significa aumentar o preço da energia com origem em combustíveis fósseis de maneira permanente. Ou, até que novas tecnologias possam baratear novamente o preço da energia, o que pode levar décadas. Nesse sentido, as sanções econômicas contra a Rússia tiveram o mesmo efeito: aumento do preço do petróleo. Mas as semelhanças param por aí.
A primeira grande diferença é o período de tempo do sacrifício exigido. Os sacrifícios impostos por uma guerra são tanto mais toleráveis quanto mais fica claro que são transitórios. Em algum momento a guerra vai terminar, e vai se voltar ao status anterior. Nas mudanças climáticas não há esse horizonte. A energia ficará cara “para sempre”, porque é difícil estabelecer prazos para mudanças tecnológicas. Claro, os governos poderiam vender a ideia de uma guerra longa mas que terá um fim. As pessoas aguentariam as privações, se vissem sentido naquilo. Mas aí é que entra a segunda e principal diferença.
Para que as pessoas aceitem fazer sacrifícios são necessários símbolos fortes. No caso, a Rússia, liderada por uma figura que nos acostumamos a ver associada nos filmes ao inimigo, atacando famílias indefesas que poderiam ser nossas vizinhas de bairro, é um símbolo muito poderoso.
Por outro lado, o que acontece com as mudanças climáticas? Em um passado muito remoto, enchentes, furacões, incêndios, secas eram vistos como uma punição dos deuses pelos pecados dos homens. Na medida em que a humanidade foi dominando a ciência, aprendemos que esses fenômenos têm uma explicação natural. Agora, essa mesma ciência quer voltar a nos convencer de que esses fenômenos são devidos a nossos pecados, principalmente o hedonismo de querermos ar-condicionado no verão e calefação no inverno. Isso está longe, muito longe, de servir como símbolo. Estamos acostumados a ver secas e dilúvios desde que nascemos e a encarar isso como fenômenos naturais. Convencer as pessoas de que se trata de uma punição de Gaia vai ser difícil.
Assim, os governos precisariam convencer os eleitores de que nós somos os culpados pelas desgraças que estão caindo sobre nossas cabeças e, se não fizermos nada, o Armagedom nos aguarda (notem que até a narrativa do Juízo Final foi apropriada pelo discurso das mudanças climáticas). E, depois desse convencimento, precisariam prometer que a guerra terá um fim, que as privações serão temporárias, até que nossos bravos cientistas encontrem formas de produzir energia barata e confiável, que não signifique inundar terra de índios (o povo eleito de Gaia) ou produzir detritos nucleares tóxicos. Haja simbologia!
Não é à toa que os governos em todo o mundo estão tentando desesperadamente encontrar soluções para os preços altos dos combustíveis fósseis. Eles sabem que os seus eleitores não têm muita paciência para energia cara. Até topam um sacrifício rápido, se for para enfrentar o inimigo número 1 da humanidade, Putin. Mas a coisa muda completamente de figura quando se trata de combater as mudanças climáticas porque, neste caso, o inimigo somos nós mesmos.