O limite entre o oportunismo e a canalhice

Ainda e novamente João Dória.

Uma vez pode ser uma desatenção, duas vezes é uma estratégia.

Pela segunda vez em menos de 24 horas, o ex-governador de São Paulo sinaliza na direção de Lula. Que Dória não queira papo com Bolsonaro se entende. Afinal, Dória foi alvo de Bolsonaro do primeiro ao último dia, que assim tratou todos aqueles que poderiam desafiá-lo em sua campanha pela reeleição. “Calça apertada” foi o apelido escolhido pelo seu moedor de reputações, mas esse foi apenas o lado jocoso de um embate que foi das vacinas à privatização da Ceagesp.

No entanto, sinalizar para Lula parece um pouco demais para alguém que construiu sua breve carreira política com base no antipetismo. A não ser que esteja querendo unir a velha guarda do PSDB em torno do seu nome e, para isso, esteja disposto a mostrar que é anti-bolsonarista acima de tudo.

Se for mesmo essa a estratégia (e não consigo pensar em outra), só tem um problema: como tudo o que Dória faz, soa tremendamente artificial. Outro dia estava abraçando Bolsonaro no meio da rua e demonizando o PT, e agora quer passar a mensagem de que o verdadeiro demônio é Bolsonaro e, para isso, está disposto a abraçar Lula no meio da rua.

Nem vou acusar Dória de “oportunismo”, porque oportunistas todos os políticos são, na medida em que aproveitam as oportunidades que surgem para auferir vantagens. Mas esse “oportunismo” precisa ter um limite. Caso contrário, começa a se transformar em canalhice. Receio que João Dória já tenha ultrapassado essa linha divisória.

Pense bem antes de responder

Ainda sobre a isenção de tarifa de bagagem aprovada ontem pela Câmara, notinha no Estadão descreve em detalhe as consequências não intencionais da medida.

Por incrível que pareça, as ações das cias aéreas subiram ontem. Os analistas apontaram dois motivos:

1) As empresas vão assumir que 50% dos passageiros despacharão bagagens para calcular os novos preços das passagens aéreas. Como esse número é conservador, pois normalmente apenas 30% dos passageiros despacham bagagens, as empresas terão lucro maior.

2) Ao incorporar o despacho de bagagem ao preço da passagem, a medida dificulta a vinda de empresas “low-cost”, garantindo o “triopólio” atualmente vigente.

A notinha peca somente por não considerar a elasticidade da demanda ao preço da passagem. Será que o número de passageiros será o mesmo com uma passagem mais cara? Pode ser que sim, mas seria necessário considerar também este fator na análise.

Agora, a pergunta que não quer calar: se essa medida é boa para os passageiros e é boa também para as empresas, os deputados fizeram bem em aprová-la? Pense bem antes de responder.

O verdadeiro herói brasileiro

Matéria de capa do Estadão nos lembra (ou informa, para quem não sabia) que o nosso tão celebrado agronegócio não sobrevive sem subsídios.

Essa história é antiga. Gustavo Franco, em seu livro A Moeda e a Lei, descreve como o sistema financeiro nacional foi moldado, há 100 anos, em torno das necessidades de financiamento da indústria cafeeira. Desde então, a “bancada do agro” sempre teve muita influência sobre o orçamento público.

Não é minha intenção aqui discutir a necessidade, ou não, de se subsidiar os juros para o financiamento agrícola. Meu único ponto é que, obviamente, os outros setores da economia que sobrevivem com os juros de mercado são mais produtivos que o agronegócio. Isso é matemática, não há discussão aqui.

O financiamento é um insumo como outro qualquer. Assim como não é possível plantar sem fertilizantes, também não é possível plantar sem investir inicialmente. Se não houvesse subsídios, somente os empresários mais produtivos conseguiriam pagar esse insumo pelo seu preço de mercado e, ainda assim, auferir lucros no final do processo. Com os subsídios, empresários menos produtivos são atraídos pelo negócio e conseguem sobreviver mesmo com produtividade menor.

Claro que o efeito colateral dos subsídios é tornar ainda mais ricos os empresários do agronegócio que, sendo mais produtivos, sobreviveriam sem os subsídios. E aqui entra a questão que ninguém está disposto a enfrentar: esses subsídios (R$ 22 bilhões para esta safra, segundo a reportagem) é o melhor investimento possível para este dinheiro? Onde estão os estudos periódicos de eficiência do gasto público que deveriam embasar esse tipo de decisão? Esta pergunta é só retórica. No caso do agronegócio, a necessidade é baseada em clichês do tipo “o agro representa 25% do PIB” (o que é uma falácia, mas não vou comentar aqui), ou “o agro sustenta a balança comercial”, ou ainda “do agro depende a alimentação do trabalhador brasileiro”. Tudo isso pode ser verdade, mas a questão é outra: tudo isso justifica, na ponta do lápis, a concessão de subsídios? O orçamento público é (cada vez mais) limitado, e esse tipo de questão precisa ser enfrentada.

Respeito o agronegócio como produtor de riqueza para o país. E respeito ainda mais o empresário de qualquer outro setor que rala dia e noite para levar para frente o seu negócio sem contar com linhas subsidiadas de financiamento. Esse é o verdadeiro herói brasileiro.

Essa gente

Entre 2009 e 2014, os governos Lula e Dilma injetaram mais de R$ 500 bilhões no BNDES. Com o dólar, em média, a R$ 2,00, isso significa algo como US$ 250 bilhões. Este dinheiro não foi utilizado para comprar comida para os pobres, garanto.

Mas não é sobre o dinheiro que quero falar aqui. Nem sobre essa idiotice de matar a fome do pobre dando dinheiro, coisa que nem o nosso “pai dos pobres” conseguiu fazer. Gostaria de focar no termo “essa gente”, usado por Lula.

Existe muita discussão sobre as origens da polarização no país. A palavra tem sido muito utilizada de 2018 para cá. Tive a oportunidade de escrever um post mostrando as estatísticas. Parece que Bolsonaro trouxe a polarização para o país, um conceito supostamente estranho até então.

O uso do termo “essa gente” é a prova acabada de que a polarização é obra de Lula e do PT. Bolsonaro foi apenas a “encarnação” “dessa gente”, que se constituía, até então, como uma massa amorfa que apanhava dia e noite dos campeões da virtude que orbitam o PT. O “eu odeio a classe média” de Marilena Chauí é o corolário natural da postura implícita na expressão “essa gente”. Ocorre que “classe média” não é Jeff Bezos, Joe Biden e Elon Musk. O cara da classe C, que se ferra dia e noite para equilibrar o orçamento, e que vê o fruto do seu trabalho sendo roubado por um assaltante ou pelo governo que usa o seu dinheiro para alimentar uma máquina de corrupção, se inclui no “essa gente”. Esse sujeito acabou nos braços de Bolsonaro.

“Essa gente” é a tradução perfeita de quem se vê acima dos outros homens, arrotando uma superioridade moral que fede a hipocrisia. É bom que Lula continue falando bastante, pois talvez tenhamos esquecido o quanto seu discurso envenenou o ambiente político do país. Já escrevi aqui, e repito: o sucesso de Bolsonaro é o resultado desse discurso.

Linha auxiliar de Lula

Entrevista do pré-candidato do PSDB, João Doria, ao Valor Econômico de hoje. Destaco dois trechos.

No primeiro, ao ser perguntado sobre qual seria o “diferencial” de uma candidato da chamada “terceira via”, Doria se sai com uma sopa insossa de “país liberal com preocupação social”, incluindo os temperos “educação e saúde de qualidade” que não podem faltar em todo prato de promessas políticas amorfas.

Já havia criticado aqui a entrevista de Simone Tebet, que trazia o mesmo coquetel de chuchu, e havia afirmado que a bandeira da terceira via tinha que ser a da pacificação nacional. O PT já tem a bandeira da “justiça social”, ao passo que Bolsonaro explora bem a bandeira dos “valores conservadores”. São bandeiras simples, fáceis de entender, e que mobilizam. Ficar falando que vai entregar “crescimento com distribuição de renda” não leva nenhum candidato a lugar algum. E se tem algo que uma parte do eleitorado anseia neste momento é um pouco de paz social, uma redução do clima beligerante que tomou conta do país. Não sei se essa parte do eleitorado é suficiente para dar a vitória a um candidato de terceira via, mas é a única chance de torná-lo competitivo. Doria, ao bater na tecla do “crescimento com justiça social” está tentando roubar a bandeira de Lula. Obviamente, não vai conseguir.

O segundo trecho está, de alguma forma, ligado ao primeiro. Depois de Doria tecer um rosário de críticas a Bolsonaro, o repórter lhe dá uma chance de fazer o mesmo com Lula.

Doria, ao invés de agarrar essa chance para mostrar que é verdadeiramente um candidato de terceira via, a joga pela janela, ao dizer que “respeita” Lula e “não respeita Bolsonaro”. A resposta óbvia para quem está disputando um lugar ao sol seria “sim, e continuamos sendo críticos de Lula e do PT. Não acreditamos que o PT tenha um projeto de país moderno, ainda mais liderado por um condenado da justiça”. Pronto, resposta simples e que o coloca simetricamente entre os dois polos. Afinal, terceira via não pode ser linha auxiliar de nenhum dos dois polos, senão o eleitor vota no polo, por óbvio. No caso, além de defender uma bandeira que pouco se diferencia daquela que já tem o PT como dono, Doria coloca Lula acima de Bolsonaro. Assim, será visto com desconfiança por quem prefere Bolsonaro e não ganhará um voto sequer de quem vai votar em Lula.

Um esclarecimento final: aqui não vai nenhum julgamento do que é certo ou errado, se Lula é superior a Bolsonaro ou vice-versa sob qualquer critério. Trata-se apenas de uma análise de estratégia eleitoral, tirada, obviamente, somente da minha cabeça. Posso estar equivocado, claro, mas acredito que a polarização presente é muito função dessa incompetência dos políticos da “terceira via” de fazer a leitura correta do cenário eleitoral. Coisa, aliás, que já vêm fazendo desde 2018, quando se “surpreenderam” com a vitória de Bolsonaro.

Passageiros da classe econômica, uni-vos!

A Câmara dos Deputados já se debruçou sobre os principais problemas do país e resolveu-os todos. Assim, sobrou um tempo para que uma deputada do PCdoB, partido sempre cioso dos problemas que afligem os mais pobres, propusesse uma lei que interfere no livre contrato privado entre empresas e consumidores de classe média, e fosse acompanhada pela maioria de seus companheiros, preocupados com a “falta de lanche” nos voos e pelo “enriquecimento” das companhias aéreas.

No intuito de ajudar os nobres deputados em sua missão de introduzir um “capitalismo justo”, proponho uma lei que obrigue as companhias aéreas a oferecerem experiência de 1a classe a todos os seus passageiros. Essa discriminação odiosa entre “classes” de voo precisa acabar. O tratamento desumano aos passageiros da chamada classe econômica é uma afronta aos direitos fundamentais do ser humano. Enquanto negam um mínimo de conforto para seus clientes nessa “economia de palitinhos”, as empresas aéreas nadam em dinheiro.

Passageiros da classe econômica do mundo, uni-vos!

A falácia do poder moderador

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Este é o artigo da Constituição que introduz a organização das Forças Armadas. Alguns têm se apegado ao trecho “à garantia dos poderes constitucionais” para defender que as Forças Armadas poderiam intervir em um desequilíbrio entre os poderes, servindo como uma espécie de “poder moderador” da República, arbitrando conflitos insanáveis entre os Poderes da República.

Não sou jurista e, portanto, não vou me aventurar a interpretar o texto acima. No entanto, quatro coisas me saltam aos olhos.

Em primeiro lugar, parece-me pouquíssimo provável que os deputados constituintes, recém-saídos de uma ditadura militar de mais de 20 anos, tenham querido atribuir justamente aos militares uma espécie de “poder moderador”, com ascendência sobre os três Poderes, abrindo mão de suas prerrogativas justamente para uma instituição que os políticos da época queriam ver pelas costas. A incongruência é gritante.

Em segundo lugar, na remotíssima hipótese de que tenha sido esse mesmo o espírito que guiou os constituintes, faltou então baixar do abstrato para o concreto. Como se daria essa moderação? Onde está a regulamentação da atuação das Forças Armadas neste caso? Quem efetivamente assume o poder? Por quanto tempo?

Vamos ao caso concreto do indulto presidencial, que parece ser o último ponto de atrito entre o presidente e o STF, ainda que não o único. Como se daria a intervenção? O chefe das Forças Armadas (nem sei o nome) entraria no STF um belo dia e diria algo como “de acordo com o artigo 142, estou aqui para arbitrar a questão do indulto”? Onde está a lei que regulamenta essa intervenção, com todos os seus passos e regras? Até onde sei, não existe tal lei. Parece mais com uma “invasão ao Capitólio” do que algo organizado de acordo com um processo civilizado.

Um terceiro ponto é o seguinte: na hipótese de que os constituintes, de fato, estivessem preocupados em estabelecer um “poder moderador”, parece-me mais lógico que estipulassem regras para a escolha de uma espécie de “comitê de notáveis” que pudesse arbitrar o equilíbrio entre os Poderes. Por que cargas d’água os militares teriam mais bom senso ou conhecimento jurídico ou boa fé do que os atores políticos envolvidos? A sua atuação seria somente pelo fato de portarem armas e, portanto, terem o poder da força? Ou seriam uma espécie de “seres humanos diferenciados”, anjos portadores da mensagem divina? Como em qualquer instituição humana, as Forças Armadas contam com elementos valorosos e outros nem tanto. Achar que, pelo simples fato de se auto-intitularem “patriotas”, os militares teriam o condão de trazer a paz e a concórdia entre os homens parece-me um pouco ingênuo.

Por fim, talvez o aspecto mais importante dessa discussão toda. Parece-me que nós, latino-americanos, sofremos de um incurável sebastianismo, sempre à espera de um “messias” que vai nos salvar de todos os nossos males e nos levar a uma terra onde corre leite e mel. Nesse aspecto, estou com o deputado Marcel van Hattem, que, em um post por mim aqui compartilhado, afirma que essas desinteligências entre os Poderes se resolvem no campo da POLÍTICA (ele coloca a palavra em maiúsculas).

Todo problema complexo tem uma solução simples e errada. A intervenção militar para “arbitrar” entre os poderes é essa solução, no caso. Trata-se de uma espécie de renúncia à vida adulta, em que abrimos mão de resolver nossos próprios problemas do jeito que dá, para chamar o “papai” que vai resolver o problema por nós. Já passamos desse tempo. Vamos olhar para frente e enfrentar os nossos problemas nós mesmos. Não será abrindo mão do poder político para um grupo estranho a esse mesmo poder que chegaremos em algum lugar.

O culpado é o retuíte

O colunista Pedro Doria repercute um artigo que, segundo ele, joga luz sobre o problema da divisão aparentemente irreversível que a sociedade atual vem sofrendo.

O “retuíte” do Twitter e o “like” do Facebook seriam os culpados pelo auto-isolamento dos grupos com opiniões diferentes e, consequentemente, pela erosão dos fundamentos da democracia. Uau!

Se não me engano, em 1860, quando estourou a Guerra de Secessão, em que morreram mais de 600 mil americanos em uma batalha de ideias que chegou às vias de fato, não havia nem o “retuíte” e nem o “like”. Estes recursos também não existiam, salvo engano, durante a implantação das mais sanguinárias ditaduras do século XX.

Li em algum lugar que o problema de nossa sociedade é a falta de problemas realmente sérios. Na falta destes, passamos a nos preocupar com “microagressões”, “vocabulário não discriminatório”, “retuítes” e “likes”. Essa “descoberta” do artigo citado por Pedro Doria encaixa-se à perfeição no caso.

Se é para ter uma teoria, tenho a minha própria: as redes sociais nos permitiram extravasar toda a nossa ira e revolta sentados confortavelmente no sofá de casa, dispensando o derramamento de sangue típico das vias de fato. Diria que é graças às redes sociais que não temos mais guerras civis no mundo, a não ser naqueles países onde a internet não conta com uma boa cobertura. A diferença dessa minha teoria para a dos “retuítes” e dos “likes” é que eu não a levo a sério.

Um verdadeiro democrata

Não deixa de ser paradoxal este post de Marcel Van Hattem. O deputado usa de sua liberdade de expressão e de sua imunidade parlamentar para tecer pesadas críticas ao STF, afirmando que os magistrados supremos não respeitaram a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar de um colega. Bem, se fosse essa a conduta, Van Hattem poderia esperar a mesma reação do STF com relação a si mesmo.

Mas Marcel Van Hattem sabe bem a diferença entre o que vai escrito neste post e o que disse o deputado Daniel Silveira. Aqui, temos uma crítica democrática e republicana. Lá, uma ameaça de agressão física e incitação à violência.

Cansei de tecer críticas ao STF nesta página. Não preciso de imunidade parlamentar para isso. Vivo em uma sociedade democrática, em que o exercício da livre opinião não é criminalizado. O STF, no entanto, entendeu que a manifestação de Daniel Silveira extrapolou o direito à crítica, tão bem exercido por Marcel Van Hattem. Entenderam os juízes (10 de 11) que as falas de Daniel Silveira foram mais que “desprezíveis”. Foram criminosas. E acho que aqui está o busilis da questão.

Nenhum direito é absoluto. Ninguém tem o direito, por exemplo, de cometer crime. Portanto, a questão envolvida aqui não é o “direito à liberdade de expressão”, tão bem exercido por Marcel Van Hattem, mas se a fala de Daniel Silveira constitui ou não crime. Se constitui crime, o deputado não tem o direito de exercer a sua liberdade de expressão. É exatamente a mesma discussão quando se debate sobre o “direito” ao aborto. A questão principal é se o feto é ou não um ser humano. As questões de “liberdade sobre o próprio corpo” ou “problema de saúde pública” são secundárias quando está em jogo o principal, o direito à vida de um ser humano. Do mesmo modo, o “direito à liberdade de expressão” se torna secundário quando se trata de usar esse direito para cometer um crime. Portanto, é isso que deve ser debatido, e não uma pretensa “agressão à livre manifestação”, assim como o direito ao aborto não se resume a um pretenso “direito da mulher ao próprio corpo”.

E aqui chegamos ao julgamento de anteontem. Eu, particularmente, acho que a fala do deputado Daniel Silveira extrapolou o simplesmente “desprezível”, incorrendo em crime. Tenho amigos que, ouvindo a mesma fala, acharam que foi só bravata. No entanto, o que eu ou você achamos é irrelevante. Na democracia, quem julga é o juíz constitucionalmente constituído. É como em um jogo de futebol: podemos ficar debatendo horas sobre um determinado lance, mas a decisão do juíz é soberana. Por ocasião do impeachment, os petistas chamaram de “golpe” todo o processo, desrespeitando a decisão dos juízes constitucionalmente constituídos para julgar a ex-presidente. No caso, os parlamentares.

Aliás, há questionamento, inclusive, sobre se o STF poderia estar julgando um caso em que o próprio STF foi o agredido. No caso, como há foro privilegiado, não há outra Corte possível. E, se não for o STF a julgar, os deputados ficariam completamente inimputáveis. Imagine a seguinte situação: um deputado entra no STF e atira em um ministro. Segundo essa tese, o STF ficaria de mãos atadas pelo simples fato de ter sido o agredido. E, ademais, quem apresentou a denúncia foi a PGR, a Câmara (como bem lembrou Van Hattem) permitiu que o deputado continuasse preso e 10 de 11 ministros, inclusive André Mendonça, avaliaram que houve crime na fala de Daniel Silveira. Portanto, estamos longe de uma decisão arbitrária.

O deputado Marcel Van Hattem, combativo como é, inicia seu post dizendo que o STF usou a democracia para golpear a democracia. Bem, o entendimento do STF foi o justo inverso: o deputado Daniel Silveira teria usado a democracia para golpear a democracia. Independentemente de quem esteja com a razão, Van Hattem se mostra um verdadeiro democrata, ao reconhecer que é na arena política que se resolvem essas questões. Muito diferente da fala de Daniel Silveira.


Aqui, o post de Marcel Van Hattem

NÃO SE DEFENDE A DEMOCRACIA E O ESTADO DE DIREITO ATACANDO A PRÓPRIA DEMOCRACIA E O ESTADO DE DIREITO

Não se trata apenas da condenação inconstitucional de um parlamentar: é uma decisão do STF que afronta a própria democracia e as instituições sob o pretexto de defendê-las. Temos agora um preso político no país em plena democracia: não há maior contradição e injustiça possível.

As falas gravadas em vídeo por Daniel Silveira no ano passado foram reprováveis. A perseguição desproporcional e ilegal que ele tem sofrido, porém, tem obliterado até mesmo o conteúdo de sua manifestação, transformando o suposto algoz em vítima.

Ser julgado por seus acusadores é autoritarismo que não cabe no Estado de Direito. É bom lembrar que tudo começou com o torto inquérito fake contra a apuração sobre Toffoli da Revista Crusoé, num claro atentado da mais alta Corte do Judiciário contra a liberdade de imprensa.

O corporativismo do STF foi se sobrepondo às garantias constitucionais e a defesa das liberdades no país à medida que foi centrando fogo em inimigos rejeitados pelo establishment. Quando foi contra a imprensa livre ainda houve alguma reação. Agora, grande apatia.

Pior: a própria Câmara dos Deputados errou ao manter Daniel preso, com meu voto e manifestação contrária, abrindo o precedente perigosíssimo da cassação e prisão inconstituiconal de parlamentares por manifestação verbal. O foro é a Comissão de Ética da Câmara, jamais o STF.

Na prática o que temos é um STF condenando a prisão por 8 anos um parlamentar por uma manifestação repugnante enquanto atos e ações repugnantes e até mesmo hediondos como estupros, homicídios e assassinatos seguem em larga escala impunes no Brasil.

Infelizmente a Suprema Corte não fez Justiça. Fez política. Agiu de forma vingativa, não com a serenidade e imparcialidade requerida de magistrados. Quis dar resposta à fala de um parlamentar mas a desproporção e ilegalidade ferem a própria democracia e o Estado de Direito.

Muitos perguntam: o que fazer? Pois bem: assim como defendo que não se pode justificar defesa da democracia sendo autoritário nem a defesa da Constituição com atos ilegais, também digo claramente que a resposta está na ação POLÍTICA contundente mas equilibrada de cada um.

Você pode não gostar dos deputados e senadores com mandato, mas não pode ignorar o fato de que chegaram em Brasília com o voto do povo. Se Câmara e Senado permanecem apáticos com raras exceções é porque seus membros refletem a qualidade dos votos dados a eles na eleição passada.

Você pode optar por não resistir e não reagir. Pode optar por desgostar de política e não se envolver para melhorar a qualidade dos seus representantes. Pode. O que você não pode é depois achar que tem o direito de só reclamar.

Dar opinião tem ficado cada vez mais perigoso no país, especialmente a depender sobre quem você está falando. É claro que de forma nenhuma subscrevo a fala de Silveira – a repudio. Mas repito: não é sobre ele. Lembrem-se da Crusoé: é sobre a quem a crítica é dirigida.

Não importa o quão elegante e politicamente correto seu argumento seja: o recado da votação de do STF de ontem é um “cala-boca” a quem ousar contrariar os neoiluministas do STF, que se arrogam o direito de estarem acima de quaisquer suspeitas.

Não estou na política, porém, para me calar ou submeter-me a ameaças de me calarem. Continuarei sempre na trincheira da defesa das liberdades contra a tirania de quem quer que seja, de onde quer que venha. Minha maior missão é atrair à política mais pessoas com esta determinação.

A despeito do que tem feito de forma autoritária o STF, é apenas com mais democracia, mais liberdade e mais defesa do Estado de Direito e correta aplicação das leis que se defende verdadeiramente a democracia, garantem-se as liberdades, e solidifica-se o Estado de Direito.

Os limites da imunidade parlamentar

“Daniel Silveira usou o seu mandato como escudo protetivo. Ele usou o Parlamento como esconderijo”. Estas foram as palavras que Alexandre de Morais usou para afastar a hipótese da imunidade parlamentar na defesa do deputado.

De fato, a imunidade parlamentar não cobre a possibilidade de que o titular de mandato parlamentar cometa crime. Parece-me que esta premissa pode ser razoavelmente aceita por todos. Se um parlamentar, por exemplo, assassina um colega em plenário, trata-se de um crime. Portanto, o titular do mandato não está imune ao longo braço da lei neste caso.

O caso do deputado Daniel Silveira, portanto, deve ser analisado do ponto de vista do suposto crime cometido. Se crime houve, sua imunidade parlamentar não pode ser usada para protegê-lo de seus atos.

Uma segunda questão que se coloca é a seguinte: pode-se cometer crime através do uso da palavra? Com certeza. Há crimes tipificados no Código Penal que envolvem somente o uso da palavra: calúnia, difamação e ameaça de violência física. O próprio ato de falar, neste caso, constitui crime.

É neste ponto que as pontas do caso Daniel Silveira se unem: a atividade parlamentar se desenvolve principalmente pelo uso da palavra. Pode um parlamentar ser condenado pelo uso do que caracteriza o seu mandato, ou seja, o uso da palavra? Estariam aqueles crimes mencionados acima suspensos pela imunidade parlamentar? Pode um parlamentar caluniar, difamar ou ameaçar com violência física pelo simples fato de ser parlamentar?

O caput do artigo 53 da Constituição é claro como a luz do dia: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Os parágrafos deste artigo apenas estabelecem as condições nas quais os parlamentares podem ser julgados e condenados: fórum privilegiado, regras para a prisão em flagrante, licença da respectiva Casa Legislativa para o processo etc. Em nenhum dos parágrafos se diz que o uso da palavra pode ser fonte de processo criminal, hipótese afastada pelo caput.

O ministro Alexandre de Morais, na Petição 9456 DF, de abril/2021, deixava clara a sua interpretação deste artigo: “A jurisprudência da CORTE é pacífica no sentido de que a garantia constitucional da imunidade parlamentar material somente incide no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta, não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”. Ou seja, já haveria jurisprudência no STF de condenações em virtude de manifestações no âmbito parlamentar. Realmente, não lembro de outro deputado que tenha sido condenado pelo fato de ter falado que cometeria um crime ou incitado a outros a cometerem crimes. Parece-me que foi estabelecida uma nova jurisprudência.

Óbvio, estou longe de ser especialista em interpretação de leis. Sou apenas uma pessoa letrada, que entende razoavelmente bem o que lê. E a Constituição é um conjunto de palavras inteligíveis, assim como o discurso do deputado Daniel Silveira. Se a frase “o povo entre dentro do STF, agarre o Alexandre de Moraes pelo colarinho dele e sacuda a cabeça de ovo dele e o jogue dentro de uma lixeira” significa claramente uma instigação à violência física contra membro de outro Poder (temos aqui ao menos dois crimes), a frase “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” significa claramente que quaisquer palavras, mesmo que configurem crime, como é o caso, não deveriam servir de base para a condenação civil ou penal do parlamentar.

O constituinte, quando elaborou este artigo, tinha em mente justamente a proteção das garantias democráticas fundamentais, entre as quais, a liberdade de discurso e de voto por parte do parlamentar. Não custa lembrar que o Congresso Nacional foi fechado em dezembro de 1968 justamente porque a Câmara dos Deputados recusou-se a permitir o processo do deputado Marcio Moreira Alves, que havia chamado o exército de “valhacouto de torturadores” e instigado os brasileiros a boicotarem os desfiles de 7 de setembro e às mulheres que se recusassem a se relacionar com militares. Diríamos que, guardadas as devidas proporções, Marcio Moreira Alves era o Daniel Silveira da época, instigando a subversão através de palavras. Claro, os dois casos não são simétricos e nem comparáveis, um estava defendendo valores democráticos, o outro defende o uso da força para impor suas ideias. A semelhança está apena na arma utilizada: a palavra.

Daniel Silveira usou palavras chulas, fez ameaças e instigou a violência contra os membros de outro Poder da República. São crimes, sem sombra de dúvida. O diabo é que o artigo 53 da Constituição não abre exceção à imunidade parlamentar. Se houvesse um parágrafo dizendo algo do tipo “a imunidade estabelecida no caput será suspensa caso as opiniões, palavras e votos atentem contra os artigos x, y e z desta Constituição”, então teríamos base legal para a sua condenação. Mas o constituinte não quis prever tal situação, justamente porque qualquer limitação à palavra do parlamentar cheira a arbítrio.

Por outro lado, e talvez seja este o ponto, legítimo por sinal, a que se apegam os que concordam com a decisão quase unânime do Supremo, o deputado Daniel Silveira usou da palavra que o regime democrático lhe garante para atacar um dos Poderes que constituem a base material do regime. Não estou aqui afirmando que o STF que temos seja um exemplo de valorização dos ideais democráticos, mas a ideia de uma Corte Suprema imune à influência dos outros poderes é central nos regimes democráticos. Há formas, dentro das regras democráticas, de garantir a isenção do STF. Por exemplo, através da cassação de juízes. Ao defender que o “povo” invada o STF e expulse os ministros na base da força, o deputado está dando razão aos que pensam estar defendendo a democracia ao prendê-lo. A ideia de atuar fora da lei para fazer prevalecer a lei não parece ser muito coerente. Apesar de o artigo 53 lhe garantir o direito de falar o que bem entender, parece ser contraditório usar este direito justamente contra o regime que lhe garante este direito.

Então, por um lado, a letra da lei garante o direito de manifestação do parlamentar. Por outro lado, este direito é garantido justamente pelo tipo de regime atacado pelo parlamentar. E qualquer regime atuará no sentido de defender os seus pilares, como foi o caso. Por isso, entendo quem ache um absurdo a decisão do STF, e entendo também quem concorde. Cada um olha a realidade de um determinado ponto de vista. E poucos admitem que sua opinião, muitas vezes, é influenciada e antecedida pelas suas opções políticas.