Pegadinha do malandro

Caí na “pegadinha” de João Doria. Segundo ele, foi uma “estratégia” para angariar apoio de seu partido. Bruno Araújo, vendo naufragar o barco do PSDB na joia da coroa do partido, o estado de São Paulo, assinou uma carta reiterando o apoio do partido, do qual é presidente, à candidatura Doria. No entanto, quem é um pouco alfabetizado em política sabe que essa carta vale tanto quanto uma nota de 3 reais.

Em primeiro lugar, o esforço foi no sentido de o atual governador deixar o governo de SP para o seu vice, não necessariamente o de Doria assumir a candidatura presidencial. Não faltam bons nomes ao PSDB, pelo contrário. Doria renunciando ao governo de SP e à candidatura presidencial era o melhor cenário. Doria permanecendo no governo sem concorrer à reeleição, o pior. O arranjo possível foi “convencer” Doria com uma cartinha de amor. Segue o jogo, até a convenção do PSDB, onde tudo pode acontecer.

Não satisfeito com a lambança, Doria adicionou o insulto à injúria, ao dizer em entrevista que tudo não passava de um plano para testar o apoio do partido à sua candidatura. Uma espécie de Jânio de calça apertada. E, como cereja do bolo, chamou de “golpistas” os que não querem a sua candidatura. Doria está seguindo metodicamente o manual “Como Fazer Inimigos e Não Influenciar Pessoas”. Depois do dia de ontem, o PSDB tem o dever moral de não lhe dar a legenda para disputar a presidência.

Como nota final, se a saída de Doria da disputa não representava muita coisa, como defendi em meu comentário de ontem, o mesmo não se pode dizer da saída de Sergio Moro do páreo. Sem experiência política e tendo chegado 4 anos atrasado para empunhar a bandeira da Lava-Jato que Bolsonaro empunhou em 2018, Moro foi vítima de sua própria ilusão, a de ser o justiceiro universal do Brasil. Foi engolido pelo sistema político, que tem suas próprias regras. Se for humilde, concorrerá a uma vaga de deputado federal, onde terá a oportunidade de começar o jogo da planície, desenvolvendo suas habilidades políticas para depois, se for o caso, tentar voos mais altos.

Ao contrário da eventual desistência de Doria, a saída de Moro do páreo embaralha as cartas da “terceira via”. Lula e Bolsonaro certamente não gostaram desse movimento.

A data errada

Ontem foi 31 de março, dia da Revolução, nome pelo qual a mudança de regime de 64 era chamada quando eu estava no primário, e a data era comemorada em todas as escolas.

Note que evitei o nome “golpe” para fazer referência ao que aconteceu naqueles dias. Revendo jornais da época, você não vai encontrar essa palavra, por mais que procure. O Estadão, periódico acima de qualquer suspeita quando se trata de defender os valores democráticos, estampa em sua edição de 3 de abril a manchete: “Democratas dominam tôda a Nação”. A palavra “golpe” foi usada somente muitos anos depois, quando o evento sofreu a releitura comandada pelos ventos da história.

Ao chamar de “golpe” a deposição de Jango, a oposição a Bolsonaro perde o “big picture” e se apega a detalhes de fácil refutação histórica. E Bolsonaro, fincando pé nos acontecimentos de 31 de março e ”esquecendo-se” dos mais de 20 anos que se seguiram, perde a chance de se mostrar o democrata que afirma ser.

O verdadeiro golpe não se deu em 31 de março. Aquele movimento foi amplamente apoiado por todas as forças democráticas do país e, como diz Bolsonaro, Castelo Branco foi empossado pelo Congresso Nacional com o apoio de toda a mídia liberal. O golpe veio depois, quando Castelo não cumpriu a sua promessa de chamar novas eleições em 1965. O problema é que, como todo processo político, não há uma data a ser lembrada para esse golpe. Aos poucos, como dizia Magalhães Pinto, as nuvens da política se modificam lentamente e, quando você vai ver, a correlação de forças é outra.

A oposição a Bolsonaro deveria lhe confrontar não a respeito de 31 de março, com a fake news de que Jango foi derrubado fora da lei pelos militares, mas com o que se seguiu após 1965, quando os civis deveriam ter retomado o poder, de acordo com os princípios democráticos que nortearam a deposição de Jango. Ao confundirem as duas coisas, dá espaço a Bolsonaro para rebater facilmente com fatos históricos.

E Bolsonaro, se de fato tivesse a intenção de se mostrar um democrata, deveria condenar o regime que se seguiu ao não cumprimento da promessa de novas eleições em 1965. Ao não fazer isso e se apegar aos acontecimentos de 31 de março como representativos dos 20 anos seguintes, dá amplo espaço aos que duvidam de suas convicções democráticas. O fato de, até hoje, não ter atentado contra as instituições, não lhe serve de álibi, pois sabemos que atos são a combinação de convicção, instrumentos e oportunidade. Não ter dado o golpe não diz nada sobre a sua falta de convicção, mas somente sobre a falta de instrumentos e oportunidade. A sua convicção pode ser medida pela ausência de condenação aos 20 anos da ditadura militar.

Enfim, os dois lados dessa disputa erram ao se fixar na data de ontem. Apesar de marcar a queda de Jango, o início do novo regime somente se dá em algum momento de 1965. É neste ponto que ambos os lados deveriam focar seu embate.