Ainda escutaremos muito sobre essa estatística até as eleições: 33 milhões de brasileiros passam fome, um crescimento de 57% em um ano.
Como em toda estatística, os números são frios, mas as conclusões são quentes. São dois os aspectos a serem analisados, para quem quer ir um pouco além da manchete: a comparabilidade e a busca das causas.
Antes de começar, convém verificar os autores do levantamento. Trata-se da Rede PENSSAN, uma associação de acadêmicos vindos principalmente das universidades federais. Sem querer criticar o trabalho ad hominem, convém ter isso presente quando falarmos da análise das causas.
O primeiro aspecto é a comparabilidade. 57% é um aumento expressivo, sem dúvida, e mais à frente exploraremos as causas. O problema é ter apenas dois pontos em uma série para se tirar alguma conclusão. O número atual é pior ou melhor do que em outras épocas? Qual a tendência? Sem isso, fica difícil fazer qualquer análise. Espertamente, o estudo apresenta um gráfico (figura 19) em que liga os dados de levantamentos da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE) com os dados da própria pesquisa da PENSSAN, como se fossem pesquisas comparáveis.
Por mais ajustes que se façam, fica difícil garantir a compatibilidade entre pesquisas tão distantes no tempo e feitas por entidades completamente diferentes. Mas serve para a narrativa, pois mostra que estamos no pior ponto da fome desde 2004, coincidentemente o início do governo Lula. Ou seja, a mensagem é de que “perdemos” todos os avanços alcançados durante os governos do PT.
Aliás, ainda sobre esse ponto da comparabilidade, o relatório não deixa de lembrar que o Brasil foi retirado do “mapa da fome” pela ONU em 2014, o que seria o coroamento de uma política bem-sucedida adivinha de qual governo. O que não encaixa na narrativa é que o país, até hoje, não foi recolocado no mapa da fome. Em reportagem do blog esquerdista Brasil de Fato, o coordenador do PENSSAN tenta dizer que os critérios mudaram, que não dá pra comparar o levantamento da ONU feito hoje com o que era feito em 2014, etc.
O fato objetivo é que a ONU indicava que 2,5% dos brasileiros passavam fome em 2021, enquanto o levantamento da PENSSAN estimava este número em 9% para o mesmo ano. Ou seja, a ONU é usada quando interessa.
Agora vamos analisar as causas. O coordenador da PENSSAN indica três causas para o aumento brutal do número de famintos no país: 1) empobrecimento da população; 2) desmonte de políticas públicas e 3) tratamento dado ao meio ambiente.
Dessas 3 “causas”, apenas a primeira faz sentido. Vejamos.
O presente inquérito foi feito entre os meses de novembro de 2021 e abril de 2022, enquanto o anterior foi feito um ano antes. Ocorre que, um ano antes, ainda estávamos em plena vigência do auxílio emergencial, uma ajuda bem acima do montante normalmente distribuído pelos programas sociais, principalmente o Bolsa Família. No final de 2020 e início de 2021, estávamos começando a reabrir a economia e o auxílio emergencial ainda estava sendo distribuído. Ou seja, a renda das pessoas era maior. Então, é natural que tenha havido aumento da insegurança alimentar de 2020 para 2021. Além disso, a inflação galopante certamente tem um papel aqui também, diminuindo a renda disponível.
Este primeiro ponto bastaria para “culpar” o atual governo, ainda que a variação de 57% seja mais fruto de uma base artificialmente inflada pelo auxílio emergencial (o que, em tese, é mérito do governo), do que propriamente uma piora geral das condições de vida. Mas isso não basta. É preciso carimbar a fome no atual governo de maneira mais específica. Aqui entram o “desmonte de políticas públicas” e o “tratamento dado ao meio ambiente”.
Desmonte do quê? O Bolsa Família (agora Auxílio Brasil) deixou de ser pago? Aposentadoria? BPC? Que política foi desmontada? Li o relatório em busca dessa informação e não encontrei. Está na declaração do coordenador da PENSSAN e reproduzido pela matéria somente para carimbar o atual governo.
E “mudanças climáticas” vão eventualmente afetar a produção de alimentos ao longo das próximas décadas, não de um ano para o outro. Também aqui, procurei referências no relatório e não encontrei, a não ser uma menção à “insegurança hídrica” (acesso à água potável), o que não deixa de ser irônico, pois a esquerda é quem normalmente é contra qualquer mudança no setor de saneamento. Enfim, o “meio-ambiente” aparece como “causa” somente para carimbar o atual governo, conhecido como “inimigo do meio-ambiente”, e não tem nada a ver com o relatório em si.
Em resumo, este levantamento, por mais sério e relevante que seja, será usado politicamente para fortalecer um candidato em detrimento de outro. Não que isso esteja intrinsecamente errado, dado que a solução da fome no Brasil somente se dará no campo político, arena em que se discutirão as condições para a retomada do crescimento econômico sem truques. Como bem mostra o relatório, existe uma correlação clara entre (falta de) renda e fome, por mais que existam auxílios. Mas a solução sugerida pelo relatório é a de um governo que “olha para o pobre”, com “soluções” de curto prazo que duram tanto quanto dura o dinheiro. 13 anos de governo do PT já deveriam ter sido suficientes para demonstrar isso.
PS.: a invasão do Shopping Iguatemi por membros do MTST empunhando bandeiras “contra a fome” já é um reflexo desse relatório, que será usado ad nauseam até as eleições. Provavelmente não fizeram o mesmo no casamento de Lula e Janja porque todos os presentes à festa estão do lado do povo. Neste caso, a ostentação está liberada.