Poucos sabem, mas tive uma meteórica carreira como planejador financeiro pessoal. Dentre minhas poucas vítimas, quer dizer, clientes, estava uma advogada que trabalhava em uma multinacional. Mesmo com um bom salário fixo, a moça era uma endividada crônica: cheque especial, cartões de crédito em atraso, empréstimos não pagos etc. Começamos, então, a destrinchar suas despesas. Não vou aqui entrar nos detalhes, mas cada enxadada era uma minhoca. O zênite da situação era uma conta que recebia, na época (o ano era 2017), R$ 400 por mês. Perguntei o que era aquilo, e a moça, candidamente, respondeu-me que era uma poupança que estava fazendo para ir à Copa do Mundo na Rússia no ano seguinte. Não fosse minha fleuma britânica, teria dado uns tabefes ali mesmo.
Quando leio matérias sobre inadimplência, não consigo deixar de pensar nessa moça. As duas histórias contadas na reportagem são a sua cara.
Obviamente, há casos particulares em que um acidente ou o desemprego fazem com que as finanças pessoais se desequilibrem. Mas, mesmo nesses casos, o que normalmente encontramos é a falta de uma poupança precaucional ou a incapacidade de adequar o orçamento às novas circunstâncias.
Permitam-me um merchã: em meu livro Finanças do Lar, descrevo a Teoria do Gás, segundo a qual, o nosso orçamento é uma especie de recipiente, e os nossos gastos sempre ocuparão todo esse recipiente, qualquer que seja seu tamanho, até forçar as suas paredes. Com base nessa teoria, é possível entender o que está acontecendo nesse momento.
Se observarmos os gráficos da reportagem, podemos notar que a inadimplência vinha crescendo há já alguns anos, sequência que foi interrompida em abril de 2020, não por coincidência, início do pagamento do auxílio emergencial.
No entanto, a inadimplência voltou a subir antes mesmo do fim do pagamento do auxílio. O que aconteceu? Teoria do Gás: as pessoas incorporaram aquele dinheiro extra no orçamento, e tiveram dificuldade de voltar atrás quando o auxílio deixou de ser pago.
Em um artigo de 5 de junho último, Luciano Huck descreve uma casa simples da periferia, mas com uma cozinha toda reformada e com eletrodomésticos novinhos, tudo comprado com o auxílio emergencial. Agora, a família enfrenta dificuldades para comprar gás e comida. Exemplo de como as pessoas levantam seu padrão de consumo sem pensar em como vão sustentá-lo ao longo do tempo. Além disso, a inflação corrói a renda sem percebermos e, quando vamos ver, estamos sem dinheiro.
Desisti da carreira de planejador financeiro pessoal quando descobri que meus muitos conhecimentos de finanças são inúteis nesse campo. Um psicólogo seria muito mais útil. Não se trata de matemática, mas de entender como funciona a mente humana. Não é minha praia.
E não, não consegui convencer minha cliente a desistir de seu sonho da Copa do Mundo. Ao invés disso, ela cortou o planejador financeiro. E não me pagou, acrescentando mais esse calote às suas dívidas.