Brasília está em transe. Executivo (incluindo os pretendentes ao cargo), Legislativo e Judiciário juntaram-se para atacar a diretoria da Petrobras, após a decisão de mais um aumento de combustíveis.
Já escrevi aqui que a existência de uma empresa estatal somente se justifica por cinco razões:
1) Atuação em área estratégica para o país, em que a atuação privada poderia colocar em risco a segurança nacional;
2) Instrumento de fomento para o desenvolvimento do país;
3) Interesses políticos, em que a atividade da empresa pode render dividendos eleitorais;
4) Interesses corporativos dos funcionários e
5) Instrumento para acobertar esquemas de corrupção.
Desse objetivos, os dois primeiros são explícitos e os três últimos, implícitos. De qualquer forma, observe que, dentre esses cinco objetivos, não se encontra “gerar dividendos para os acionistas”.
Lembro de uma ocasião em que estive na Secretaria da Desestatização para uma reunião. Notei que o descanso de tela dos computadores exibia o artigo 173 da Constituição, que reza o seguinte: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Não está escrito “quando a atividade for lucrativa”.
Acho graça quando defendem que esta ou aquela empresa não precisa ser privatizada “porque dá lucro”. Na ausência de qualquer outro motivo, este é um motivo pelo qual a empresa deveria ser privatizada. Afinal, o governo tem mais o que fazer com nosso dinheiro além de especular na bolsa.
Diante dessa realidade, uma estatal de economia mista não faz o mínimo sentido, pois junta acionistas com objetivos completamente diferentes. A Petrobras, o Banco do Brasil, a Sabesp e uma lista cada vez menor de empresas de economia mista sofrem de uma esquizofrenia insolúvel: precisam atender os cinco objetivos acima e, além disso, gerar dividendos para os acionistas, objetivos insanavelmente conflitantes.
Por que, então, acionistas minoritários aceitam ser sócios de estatais? Preço. Normalmente essas empresas são negociadas a preços mais baixos em relação aos seus pares privados, preço descontado pelo custo dos cinco objetivos acima. O problema, como sempre, é avaliar corretamente esse desconto. Ontem, as ações de Petrobras chegaram a cair quase 10%, em um sinal de que os acionistas minoritários reavaliaram o peso que o primeiro objetivo acima tem na matriz de decisão da empresa.
Como todo estudante do 1o ano de administração sabe, quanto mais valorizadas as ações de uma empresa, mais barato é o seu custo de capital. Em outras palavras, a empresa precisa emitir menos ações para obter o mesmo capital, e consegue se alavancar mais com dívidas por um custo menor. Para uma estatal, no entanto, esta não é uma preocupação, dado que seu acionista majoritário, em tese, sempre pode capitalizar a empresa a custo zero, via captação de impostos.
Claro que essa é uma possibilidade apenas em tese. Sabemos que a capacidade financeira do Estado é limitada por condicionalidades políticas. Todos gostam de ter uma empresa que subsidie combustíveis, mas ninguém gosta de pensar que pode ter seus impostos aumentados para bancar essa política. O resultado é que o custo para bancar o objetivo 1 acima torna-se igual ao de emitir dívida, que é bem maior que zero.
Alguns dirão que o governo não precisa capitalizar a empresa, afinal a empresa dá lucro, trata-se apenas de moderar o lucro em uma situação excepcional. Esse raciocínio tem dois problemas. O primeiro é a definição de “situação excepcional”. Uma vez aberta a porta, fica sempre a possibilidade de alguém achar que estamos em uma “situação excepcional”. Os acionistas minoritários sabem disso. Aliás, a única “situação excepcional” no momento é a coincidência de um preço alto de petróleo com um ano eleitoral.
O segundo e principal problema tem a ver com o natural ciclo das commodities. Os preços das commodities têm exatamente esse tipo de comportamento: sobem e caem ao sabor dos ciclos econômicos e dos choques de oferta. O que está acontecendo hoje não difere de tantos outros momentos “excepcionais” da história. Se tem uma coisa da qual podemos estar certos é de que os preços das commodities atravessarão “situações excepcionais”, tanto na alta quanto na baixa. As empresas que exploram commodities precisam aproveitar os pontos altos do ciclo para juntar reservas e para pagar dividendos excepcionais aos seus acionistas, de modo a compensar os períodos de baixa, que sempre ocorrem. Caso haja um teto para o lucro, a empresa e os acionistas terão somente o ônus do ciclo negativo, deixando de ter o bônus do ciclo positivo.
Um exemplo caricato mas real dos efeitos desse tipo de política é a PDVSA, petrolífera do estado venezuelano. Ao ser usada exclusivamente para atingir os cinco objetivos listados acima, e sem que o governo venezuelano tivesse condições financeiras para capitalizar a empresa, temos hoje a triste situação de as maiores reservas petrolíferas do mundo permanecerem deitadas em berço esplêndido por falta de capacidade de investimento em exploração.
É verdade que o preço alto dos combustíveis é um problema no mundo inteiro. Mas, para amenizar o problema, vemos países cortando impostos sobre combustíveis ou subsidiando-os com verbas orçamentárias, e não usando o balanço de uma estatal, ainda mais com sócios privados!
Voltando ao artigo 173 da Constituição e aos cinco motivos para a existência de uma estatal listados acima, entre os quais não se inclui “dar lucro”. A meu ver, a existência de uma estatal somente se justifica pelo fato de dar prejuízo. Esse prejuízo é a tradução financeira do atendimento de objetivos que, por construção, não são lucrativos para a iniciativa privada. Neste caso, o orçamento da estatal é usado como uma espécie de extensão do orçamento público para a implementação de políticas para o bem comum. Eu particularmente não gosto desse arranjo, pois tende a esconder o real custo das políticas públicas, mas, pelo menos, o uso da estatal está de acordo com os objetivos que justificam sua existência.