A economia brasileira na era PT. Episódio 7: Fact Checking

Neste episódio, examinaremos três políticas sociais do PT, aclamado por todos os bem-pensantes como “o partido que se preocupa com os pobres”. Nesse sentido, Lula não se cansa de dizer que vai recolocar o pobre no orçamento. Vejamos, então, quais foram os reais efeitos do FIES, do Minha Casa Minha Vida (MCMV) e da política de valorização real do salário-mínimo.

FIES

No final do ano passado, nada menos do que 50% dos estudantes que haviam contratado empréstimos pelo FIES estavam inadimplentes, o que significa mais de três meses em atraso com os pagamentos, acumulando uma dívida de R$ 6,7 bilhões. Como chegamos neste ponto?

As informações que serão expostas abaixo foram retiradas de uma auditoria do TCU, que pode ser lida na íntegra aqui, e dos dados do censo do ensino superior, aqui.

O FIES, um programa de financiamento estudantil, foi criado em 1999, no governo FHC. Mas foi em 2010, no apagar das luzes do governo Lula, que o programa sofreu as modificações que o levariam ao estado atual. Com a sua maneira pitoresca de ver a realidade, Lula assim descrevia a sua realização:

Difícil sabe de onde saiu este número de “4 milhões” em 12 anos. Entre 2003 e 2014, entraram 17,7 milhões de alunos no sistema privado de ensino superior, e o FIES concedeu, entre 2009 e 2015, 2,3 milhões de financiamentos. Como o número de financiamentos antes de 2009 é muito pequeno, não chegaremos aos 4 milhões. Muito menos aos 4 milhões “em todo o século 20”. Bem, este é o Lula mistificador que conhecemos. De qualquer forma, o efeito da mudança no Fies pode ser visto na tabela a seguir, retirado do relatório do TCU, e que mostra a evolução do número de financiamentos do FIES:

A questão é saber se funcionou. Será que valeu a pena gastar todo esse dinheiro? Vejamos.

No gráfico abaixo, mostramos o número de matrículas no sistema privado de ensino ao longo dos anos. Em azul o total de matrículas em cada ano (escala da direita) e, em laranja, a diferença de cada ano em relação ao ano anterior (escala da esquerda). Em destaque, os anos em que o governo do PT colocou o pé na tábua no programa.

Observe como o número de matrículas já vinha crescendo de maneira mais ou menos constante desde o final da década de 90, com uma pausa em 2009. Não há realmente nada de especial nos anos em que o FIES cresceu. Segundo os dados do TCU, em 2009 haviam sido concedidos 32,6 mil financiamentos, enquanto em 2014, no auge do programa, foram 732,6 mil financiamentos. Ou seja, exatos 700 mil financiamentos adicionais. Como podemos observar no gráfico acima, de fato, o número de matrículas em 2014 foi o maior da década, mas pode ser comparado a anos como 2001 e 2003, quando o FIES era bem mais tímido.

Colocando em um gráfico o total de matrículas com e sem financiamento, podemos ter uma ideia do que aconteceu:

Podemos observar que, a partir de 2011, o número de ingressantes sem financiamento permanece mais ou menos constante, até recuando em 2013 e 2014. Esse movimento não parece fazer sentido. O número de ingressantes cai em anos de recessão, e não tivemos recessão entre os anos de 2011 e 2013. Portanto, podemos inferir que houve uma espécie de “efeito substituição”: ingressantes que poderiam estar pagando do próprio bolso, optaram por tomar o financiamento. Esse efeito fica evidente entre os anos de 2014 e 2015: apesar de 2015 ter sido um ano de recessão profunda, o número de ingressantes sem financiamento aumenta em relação a 2014, o que não faz nenhum sentido.

De fato, temos relatos de que as próprias empresas educacionais induziram esse movimento. E o motivo é óbvio: melhor o aluno ficar inadimplente com o governo do que com a própria faculdade. O FIES foi uma espécie de transferência de risco de inadimplência da iniciativa privada para o governo. E a conta vamos nós todos pagar agora, com a anistia aos devedores do programa. Como sempre.

A lógica do FIES, em si, não está errada. Trata-se de conceder financiamento para jovens pobres que, uma vez formados e inseridos no mercado de trabalho, poderão pagar a dívida com o seu salário. Faculdades renomadas, como o Insper, usam a mesma lógica: concedem bolsas de estudos que serão, depois, pagas pelos alunos formados em alguns anos. Assim, trata-se de um ganha-ganha-ganha: ganha a faculdade, que consegue aumentar o número de alunos; ganha o aluno, que consegue cursar uma faculdade que, de outra maneira, estaria fora de seu alcance; e ganha o país, que consegue qualificar uma parcela da população mais pobre para a força de trabalho.

Qual, então, a diferença entre as bolsas do Insper e o FIES? O critério. O Insper implementa a sua política de bolsas com critério técnico, de modo a fazer com que o programa se torne perene. O FIES, por outro lado, foi um programa expandido com critérios populistas e eleitorais, com o objetivo de incluir o maior número de pessoas no menor espaço de tempo possível. O resultado foi o voo de galinha característico dos programas patrocinados pelos governos do PT. No final do processo, o TCU, em sua auditoria aponta o uso indiscriminado de “créditos extraordinários” para cobrir os custos do programa. Da mesma forma que vimos em outras frentes, o FIES, em sua fase final, foi sustentado por “pedaladas” orçamentárias. É o que acontece quando critérios populistas substituem critérios técnicos.

Minha Casa, Minha Vida (MCMV)

O MCMV, programa habitacional do governo do PT, a exemplo de outros programas do partido, foi lançado com pompa e circunstância, naquele conhecido estilo “nunca antes na história desse país”.

Ao lado da então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, Lula anunciou, em 25/03/2009, o objetivo de construir 1 milhão de casas. Mas sem prazo definido.

O programa, em si, era meritório. Afinal, temos um grande déficit habitacional, e subsidiar as prestações da casa própria para os mais pobres parece ser uma forma adequada de distribuição de renda. O problema, como sempre, foi o gigantismo das pretensões, que fez colidir o desejo com a realidade.

Apesar de ter tido a prudência de não ter colocado uma meta, em dezembro de 2010 o ainda presidente Lula anunciou o cumprimento da promessa de fazer 1 milhão de casas. Na verdade, foram “contratadas” 1 milhão de casas no âmbito do programa, não construídas. Utilizando novamente a sua linguagem peculiar, Lula afirmou:

O problema é que “contratar” é diferente de “fazer”. Segundo auditoria do TCU, de setembro de 2016, o governo havia construído somente 732 mil unidades até 2015. Além disso, a CGU, em auditoria de fevereiro de 2018, apontou que 56% dos imóveis construídos apresentavam alguma falha de construção.

Isso não impediu que Lula, ainda hoje, estampe no seu site que foram entregues 2,1 milhão de casas somente na Faixa 1 do programa, cerca de 3 vezes mais que os números constatados pela auditoria do TCU.

Como todo programa grandioso do PT, o MCMV deixou um rastro de destruição de dinheiro por onde passou. Segundo reportagem do Valor de agosto de 2020, o programa vem sofrendo com inadimplência elevada, principalmente na faixa 1, aquela destinada à população de mais baixa renda:

Ou seja, nada menos do que 44% dos devedores estavam com prestações atrasadas há mais de 90 dias na época do levantamento. Isso, obviamente, acabará como custo para o Tesouro (além dos subsídios), a exemplo do que vimos com o FIES.

De qualquer forma, o grande objetivo do programa era diminuir o déficit habitacional brasileiro. Será que conseguiu? O gráfico a seguir mostra a evolução do déficit habitacional desde 2007, segundo a Fundação João Pinheiro, fonte mais confiável para este tipo de informação.

Podemos observar que, com exceção de 2010, o déficit habitacional fica entre 5,5 e 6,0 milhões de residências. O dado de 2010 difere dos demais pois foi calculado com base no censo daquele ano, ao passo que os dados dos outros anos se basearam na PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios). Não é possível, portanto, determinar uma queda significativa no déficit. Se o número de 2,1 milhão de casas trombeteado por Lula fosse verdadeiro, deveria fazer alguma diferença visível neste gráfico.

Em resumo, o Minha Casa, Minha Vida, assim como vários outros programas dos governos do PT, serviram para fazer muita espuma, mas o resultado final, como sempre, foi um rastro de destruição das contas públicas sem resultados visíveis de melhoria da vida da população.

A política de valorização real do salário-mínimo

Uma narrativa que sempre vem à tona a respeito dos governos do PT é o crescimento do salário-mínimo. Segundo a narrativa, nunca houve, na história do Brasil, um governo que tivesse valorizado tanto o salário-mínimo do que os governos do PT. Será verdade? Vejamos.

Podemos observar que, de fato, o salário-mínimo cresceu, em termos reais, mais durante os governos do PT do que em outros governos. Foram 4,6% ao ano de crescimento real (acima da inflação), contra 3,8% ao ano durante os anos do governo FHC e zero nos governos Temer e Bolsonaro. O problema, no entanto, é o custo dessa política. Vejamos este outro gráfico:

Note que os gastos com Previdência aumentam 6,3% ao ano, em termos reais, nos governos do PT, contra 6,0% ao ano no 2º mandato de FHC e 2,4% ao ano nos governos Temer/Bolsonaro. Sabemos que grande parte das despesas com a Previdência estão atreladas ao valor do salário-mínimo. Aumentar o salário-mínimo significa aumentar automaticamente os gastos com Previdência, que são a maior rubrica de gastos públicos no país. Não à toa, os gastos com Previdência crescem de maneira proporcional ao aumento do salário-mínimo. A diferença de crescimento entre o salário-mínimo e o crescimento dos gastos com Previdência se deve, basicamente, a fatores demográficos (envelhecimento da população). O efeito da Reforma da Previdência, aprovada em 2017, é muito pequeno nos primeiros anos, e não deve ter influência relevante na queda da velocidade de aumento das despesas da Previdência no período analisado.

O governo Temer (assim como, depois, o governo Bolsonaro), foi obrigado a dar um basta nesses aumentos reais do salário-mínimo, simplesmente porque as contas públicas não aguentavam mais tanta generosidade. Aqui temos mais um caso em que bondades populistas têm efeito sobre o orçamento público, o que acaba espremendo o espaço para outros gastos igualmente ou até mais importantes. Poderíamos pensar, pelos menos, que essa política serviu para diminuir a desigualdade de renda no país. Será? Vejamos o seguinte gráfico:

O índice de Gini representa a desigualdade de renda em um país. Quanto mais próximo de 100, mais concentrada será a renda, quanto mais próximo de zero, mais bem distribuída é a renda. Apenas para termos uma noção, os países mais “iguais” do mundo têm índice de Gini entre 25 e 30, enquanto os países mais “desiguais” têm índice de Gini entre 55 e 60.

No gráfico acima, vemos que o índice de Gini do Brasil veio recuando desde o início do governo Lula, em 2003, quando valia 57,6, terminando o ano de 2016 valendo 53,3. Uma redução de 4,3 pontos no índice neste período. Incluo o ano de 2016 na análise porque, apesar de o governo Dilma ter terminado em abril, seus efeitos ainda seriam sentidos por algum tempo. A piora do índice de Gini em 2016 é o preço pago pelas políticas adotadas em anos anteriores.

Parece, então, que a política de valorização do salário-mínimo, e outras políticas sociais, como o Bolsa Família, de fato ajudaram a distribuir renda. No entanto, observemos o gráfico a seguir:

Neste gráfico, temos a queda do índice de Gini em países emergentes ao longo do mesmo período. Podemos observar que, com exceção de Indonésia e Turquia, houve uma melhora da distribuição de renda generalizada no mundo em desenvolvimento, sugerindo que houve um fator comum a todos esses países, que impulsionou este movimento. Ou seja, a não ser que todos esses países tenham implementado uma política de valorização do salário-mínimo e de distribuição de bolsa-família, deve ter havido algum fator macroeconômico que levou a este resultado tão generalizado. De qualquer forma, não parece ser um mérito exclusivo das políticas do PT.

O gráfico a seguir mostra a real:

A triste realidade é que o Brasil continuava a ser, em 2016, um dos países mais desiguais do mundo, mesmo com todas as “bondades” do PT. A propaganda não substitui a realidade.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

Quando o cientista faz política

Gosto de ler o Fernando Reinach. Suas colunas sempre trazem descobertas interessantes em vários campos da ciência e, durante a pandemia, era uma referência serena e objetiva para entender a dinâmica da doença.

No entanto, a coluna de hoje está inexplicavelmente enviesada. Comecei a ler com interesse, pois chamou-me a atenção a chamada, que afirmava que um estudo indicava que mais de 50 mil mortes poderiam ser colocadas nas costas do governo Bolsonaro. “Como será que chegaram nesse numero?”, pensei.

Reinach começa anunciando que um estudo estimou de maneira mais fidedigna o número de óbitos por Covid. Até aí, tudo bem, sabemos que os números publicados pelos diversos órgãos de saúde ao redor do mundo são inexatos, e é sempre bom tentar chegar a uma estimativa mais próxima da realidade.

O problema é que você vai lendo, e a única informação é que, no Brasil, houve 332 óbitos/100 mil, contra a média mundial de 194 e, na Nova Zelândia, apenas 0,8. Só isso. Daí, o colunista conclui que, pelo menos, 50 mil óbitos se devem ao governo Bolsonaro, sem esclarecer de onde vem esse número.

Para tentar uma explicação, a primeira coisa que fiz foi estimar o número de óbitos no Brasil se o nosso número de óbitos per capita fosse igual à média global. Se tivéssemos 194 óbitos/100 mil ao invés de 332, teríamos tido 300 mil óbitos a menos. Ou seja, essa conta não explica os 50 mil óbitos de Reinach. Continuava o mistério da origem desse número.

Fui atrás do estudo, para ver se lá encontrava alguma explicação. Saí frustrado. O estudo é meramente descritivo, não entrando no mérito das causas das diferenças entre óbitos dos diferentes países e regiões. Portanto, concluí que Reinach tirou este número cientificamente da sua própria cabeça.

O estudo trás alguns fatos interessantes, e que podem, eventualmente, colocar em dúvida a correlação que o colunista faz entre as mortes por Covid e o governo brasileiro.

1) Em primeiro lugar, não existe somente a Nova Zelândia no mundo. Com a menção ao país da Oceania, com apenas 0,8 óbitos/100 mil, o colunista quer mostrar o incrível sucesso que outros países tiveram no combate à pandemia, em contraste com o traste que temos aqui no palácio do Planalto. No entanto, poderia mencionar também países como a Itália (376 óbitos/100 mil), Portugal (336), Espanha (314), Colômbia (327), México (543), Venezuela (478), África do Sul (462), Rep. Tcheca (361), Polônia (397), Romênia (493), entre outros. Será que todos esses países são comandados por homicidas?

2) A média global de 194 óbitos/100 mil está bem puxada para baixo pelos números da China, que apresenta apenas 1,0 óbitos/100 mil. Se desconsiderarmos a China, a média global sobe para 240 óbitos/100 mil, um número um pouco mais próximo do nosso.

3) Trata-se de um estudo estatístico e, como todo estudo dessa natureza, os autores estabelecem intervalos de confiança para as estimativas. No caso do Brasil, temos um intervalo de 293 a 419, com valor esperado de 332 óbitos/100 mil. Considerando que a média global ex-China estaria no intervalo de 190 a 306, podemos dizer, estatisticamente, que é possível que o Brasil esteja na média global ex-China, dentro do intervalo de confiança de 95% do estudo. É pouco provável, mas é possível.

4) São Paulo, estado liderado por um político que costumava encher a boca para dizer que estava “seguindo a ciência”, teve, segundo o estudo, 362 óbitos/100 mil, acima, portanto, da média nacional. Seria Doria também um homicida?

Enfim, como disse acima, pode até ser que o governo Bolsonaro tenha influenciado no número de óbitos no Brasil por Covid. Mas não é esse estudo que prova a hipótese, como afirmou o colunista.

Trata-se, portanto, de um artigo político com roupagem científica. O próprio uso da palavra “genocídio” denuncia a sua politização. Podemos até discutir se houve ou não homicídio por omissão. Mas genocídio é algo diferente, é o assassinato em massa de um minoria étnica. Usar essa palavra para fechar o artigo serve somente de panfletagem. Uma pena que Fernando Reinach tenha abandonado a ciência para se dedicar à política rasteira.

PS.: prepare-se para ouvir esse número sendo repetido por aí como se fosse uma verdade científica. Afinal, foi um cientista que afirmou, “com base” em um estudo publicado na Lancet.

A politização do crime

Nesta semana, Gilmar Mendes e Gleisi Hoffmann acusaram a Lava-Jato e a Lei das Estatais de “criminalizar a política”.

O decano do Supremo, em um convescote para comemorar 20 anos de STF, diante de todos os representantes da República (incluindo o presidente da República, os presidentes do Câmara e de Senado, vários parlamentares e ministros do Supremo), afirmou que o tribunal havia devolvido a política aos políticos, que havia sido “expropriada” por juízes.

A presidente do PT, por sua vez, acusou a Lei das Estatais de “criminalizar” a política, ao vetar a presença de políticos nos Conselhos de Administração e diretorias das estatais, além de exigir experiência no ramo para ocupar algum desses cargos. Este entendimento é seguido por caciques do Centrão.

Esta, digamos, visão de mundo, foi comprada a valor de face por Bolsonaro na campanha eleitoral de 2018. Seu discurso, em linha com o pensamento de muitos de seus seguidores, é de que a política estava podre de alto a baixo e, portanto, era necessário que um outsider imaculado inaugurasse uma nova era na política brasileira, onde o bem venceria por gravidade, com a força das ruas. Essa visão ingênua da política (na verdade, a negação da política) inundava a minha timeline em 2019 sempre que eu criticava a falta de diálogo de Bolsonaro com o Congresso. Essa postura corroborava, pelo avesso, os discursos de Gilmar Mendes e Gleisi Hoffmann, ao, de fato, identificar toda e qualquer negociação política com corrupção.

Política, cansei de escrever aqui, é divisão de poder para alcançar consensos. Indicar ministros faz parte dessa divisão de poder com a base de apoio no Congresso. Cada partido e cada político fica à frente de uma parte da máquina pública para imprimir a sua visão de mundo nas políticas públicas. Isso é política. Outra coisa, bem diferente, é o recebimento de vantagens por meio de conluio com fornecedores do poder público. Isso não é política, isso é polícia.

A distinção entre política e polícia nos permite entender onde Gilmar Mendes e Gleisi Hoffmann erram. A Lava-Jato e a Lei das Estatais têm como objetivo justamente não deixar que a política vire caso de polícia. No caso da Lava-Jato, o sistema judiciário identificou o uso da atividade política para outros fins que não fazer política. E a Lei das Estatais, nascida das conclusões da Lava-Jato, veio justamente para tornar mais difícil usar uma parte da máquina do governo para outros fins que não fazer política.

Ao atacar a Lava-Jato e a Lei das Estatais, acusando uma suposta “criminalização da política”, Gilmar Mendes e Gleisi Hoffmann, na verdade, estão politizando o crime.

Ranking da performance climática

O Climate Change Performance Index (CCPI) é um índice que compara um conjunto de 60 países em 4 categorias: 1) emissões de gases de efeito estufa; 2) energia renovável; 3) uso de energia em geral e 4) políticas climáticas. Com exceção deste último, que é medido através de questionários respondidos por especialistas, os 3 primeiros itens são medidas objetivas. O primeiro item vale 40%, enquanto os 3 outros valem 20% cada um.

O Brasil até que não se sai tão mal. No ranking geral, o país aparece em 30o lugar (exatamente no meio), com 55,17 pontos em 100 possíveis. O primeiro lugar é da Dinamarca, com 76,92 pontos, enquanto o último lugar é do Casaquistão, com 19,81 pontos. Apenas como referência, o Canadá tem 26,73 pontos (57o lugar), a Austrália tem 30,41 pontos (54o lugar) e os EUA têm 37,90 pontos (51o lugar).

O Brasil se sai melhor nas características objetivas. Em termos de emissão de gases de efeito estufa, mesmo tendo um dos maiores rebanhos do mundo, estamos em 27o lugar, com 24,69 pontos de 40 possíveis. Em termos de energia renovável, estamos em 7o lugar, com 12,70 pontos de 20 possíveis, e em termos de uso de energia, estamos em 5o lugar, com 15,67 pontos de 20 possíveis. O que nos puxa para baixo é o critério de “políticas ambientais”, em que estamos em 58o lugar, com apenas 2,11 pontos de 20 possíveis.

Achei interessante este ranking porque corrobora os discursos de ambos os lados do espectro político. Sempre que se critica o Brasil em termos de políticas ambientais, aparece alguém (normalmente apoiador do governo) para lembrar que somos um país que tem uma matriz energética renovável e não temos toda essa culpa pela emissão de gases de efeito estufa. E isso é verdade, segundo o ranking. Por outro lado, quem critica o governo também tem razão, porque, em termos de políticas ambientais, somos um fiasco, segundo este ranking.

Em outras palavras, como em toda discussão política, cada um puxa a sardinha para o seu lado, e defende a realidade conforme a vê do seu próprio ponto de vista, de acordo com suas convicções políticas formadas anteriormente. Este ranking mostra que ambos os lados têm razão.

Provaram e não gostaram

Os dois gráficos abaixo são de um relatório do JPMorgan.

O primeiro mostra a adesão ao “Sim” ou ao “Não” com relação ao referendo que deve sacramentar a nova constituição do Chile. Como sabemos, o Chile estabeleceu uma Assembleia Constituinte, que está elaborando uma nova constituição que tem como objetivo varrer o “entulho autoritário” da ditadura Pinochet e estabelecer um novo pacto social, em que os chilenos poderão, enfim, ser felizes, com mais igualdade e direitos sociais. Esta nova constituição deve ser aprovada por um referendo popular, e o gráfico mostra o apoio ou desaprovação à nova constituição.

O segundo gráfico mostra a popularidade líquida (avaliação positiva menos avaliação negativa) do recém-eleito presidente Gabriel Boric. Podemos observar como a sua popularidade despencou de 30% positivos para algo próximo de 20% negativos em pouco mais de um mês de governo. Confesso que não acompanho de perto a política chilena, então não sei porque isso aconteceu.

De qualquer modo, o interessante é que o apoio à nova constituição caiu na exata medida da queda da popularidade do recém-eleito. Foi como se a população chilena estabelecesse uma correlação entre o desempenho do presidente e os resultados esperados da constituição. É possível que essa correlação se refira à pauta econômica, pois ambos, o presidente e os constituintes, comungam das mesmas ideias dinossáuricas sobre o funcionamento da economia. Mas essa é apenas uma hipótese.

De qualquer modo, talvez o Chile, ironicamente, escape dessa “Constituição Cidadã” justamente porque o seu patrono e símbolo maior foi eleito presidente. O referendo é somente no dia 04/09, então ainda falta muito tempo. Mas, aparentemente, os chilenos provaram um pouco do “novo mundo possível” da esquerda, e não gostaram do que viram.

Cheiro de poder

Já disse aqui mais de uma vez: Gilberto Kassab é uma das raposas mais felpudas do cenário político nacional. Quando fundou o seu partido, o PSD, afirmou que não seria “nem de esquerda, nem de direita, nem de centro”. É isso. O PSD é um partido que fareja o poder e cola nele.

Pode-se não apreciar o estilo, mas não deixa de ser útil observar os movimentos de Kassab para entender para onde sopram os ventos da política. Hoje, por exemplo, o presidente do PSD afirma que, em São Paulo, é “anti-petista” e ”anti-tucano”. Kassab foi ministro de Dilma e secretário de Doria, mas isso são meros detalhes. E, para justificar as conversas com Tarcísio de Freitas, afirma que o ex-ministro da infraestrutura “não é bolsonarista”. Kassab quer manter distância regulamentar de Bolsonaro, o que não o impede de fazer acordos com o “não-bolsonarista” Tarcísio.

Enfim, tudo isso para dizer que Kassab, a essa altura do campeonato, poderia muito bem estar pulando no barco de Haddad, mas está conversando com Tarcísio. A conversa com França é só para disfarçar, França tem poucas chances de ir ao 2o turno contra Haddad no congestionado quadro eleitoral paulista. Se Kassab escolheu o barco de Tarcísio, é porque o cheiro de poder está mais forte por lá.

A economia brasileira na era PT. Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

O setor elétrico era a “especialidade” da presidente Dilma Rousseff. Tendo sido secretária de energia no Rio Grande do Sul e ministra das Minas e Energia no começo do governo Lula, essa era, definitivamente, a sua praia. E, como veremos neste episódio, a presidente tinha ideias muito firmes, convictas e erradas sobre como reduzir as tarifas de energia elétrica.

O setor elétrico é muito complexo. Entender exatamente como são formadas as tarifas de energia elétrica é coisa para profissionais. Por isso, aqui vou procurar simplificar bastante a explicação, de modo que a maioria dos leitores possa entender o que aconteceu. Peço antecipadamente desculpas para aqueles que entendem do setor, caso encontrem alguma simplificação excessiva. Saibam que foi para o bem do entendimento da maior parte dos leitores. O que vai a seguir foi em grande parte baseado na tese de doutorado de Diogo Mac Cord de Faria, Regulação Econômica da Geração Hidrelétrica, de 2016, junto à Escola Politécnica da USP, além de notícias do jornal Valor Econômico. Logo no primeiro ano do governo Lula, em dezembro de 2003, uma Medida Provisória inspirada pela ministra Dilma Rousseff mostrou a que veio o governo do PT no setor. Segundo reportagem de 12/12/2003, a MP (que depois seria transformada na Lei 10.848/2004) trazia uma série de alterações no funcionamento do setor, que fortalecia o papel das estatais em relação à iniciativa privada.

Mas foi durante o governo Dilma que a intervenção estatal no bom funcionamento do setor se mostrou em todo o seu esplendor. É o que veremos a seguir.

O uso da Eletrobrás como indutor de preços mais baixos nos leilões de energia elétrica

Além de todos os usos, digamos, menos ortodoxos que as estatais propiciam, o PT gosta de estatais, entre outras coisas, porque permite ao governo operacionalizar políticas econômicas de seu interesse sem custos aparentes, pois estes são, em um primeiro momento, absorvidos no balanço das empresas. Com a Eletrobrás não foi diferente: a empresa foi extensivamente utilizada em várias frentes, de modo a viabilizar a política definida pelo seu acionista majoritário.

Um primeiro exemplo foram os leilões de linhas de transmissão. Para que os linhões sejam construídos, é preciso realizar leilões, em que as empresas oferecem lances que possam remunerar os seus investimentos. Ocorre que, por fatores que não vamos explorar aqui, os critérios determinados pela ANEEL tornavam esses leilões, em geral, pouco atrativos para empresas do setor privado. Ao invés de ajustar os critérios, o governo decidiu utilizar a Eletrobrás para viabilizar esses leilões, obviamente, com prejuízo para a empresa.

Entre 2008 e 2012, apenas 5% dos leilões não tiveram lances, dando a impressão de grande sucesso do modelo. A partir de 2013, no entanto, grande parte das subsidiárias da Eletrobrás foi impedida de participar dos leilões por conta de atrasos nas entregas dos empreendimentos decorrentes dos leilões vencidos anteriormente. A partir daquele ano, quase 50% dos leilões passaram em branco, ou seja, não houve lances de nenhuma empresa. Em outras palavras, sem a Eletrobrás para sustentar os leilões, estes passaram a fracassar com muito mais frequência.

Um outro exemplo foi o leilão para a construção da Usina de Belo Monte, realizado em abril de 2010. O governo estabeleceu um preço teto bem abaixo da viabilidade econômica, e usou a Eletrobrás para garantir o “sucesso” do leilão. Reportagem do Valor Econômico no dia seguinte ao leilão mostra como o lance vencedor do leilão foi construído dentro do próprio governo, sendo que os parceiros privados do consórcio vencedor não ficaram exatamente felizes com o resultado.

Mas, de longe, a principal barbeiragem do governo Dilma Rousseff no setor elétrico foi a Medida Provisória 579.

A Medida Provisória 579

Antes de abordarmos a MP 579, vamos ver como a tarifa de energia elétrica é formada. Grosso modo, a tarifa é formada por impostos, encargos e remuneração das empresas prestadoras do serviço. No gráfico abaixo, reproduzido no Estadão no dia da publicação da MP 579, podemos observar que, em média, os impostos e encargos representavam, na época, 50% do custo, sendo os outros 50% a remuneração das empresas prestadoras do serviço (geradora, transmissora e distribuidora). Os impostos são, principalmente, o ICMS, enquanto os encargos são todos os penduricalhos que foram sendo agregados ao longo do tempo, e que servem para pagar alguma política pública. Aqui temos o programa Luz Para Todos, a energia de Roraima (que não está interligada ao sistema) e os subsídios aos painéis solares, entre outros.

A MP 579 eliminou alguns desses encargos, passando-os para o Tesouro e, indiretamente, reduziu o ICMS, pois este é cobrado sobre o valor da tarifa, e se o valor da tarifa é menor, o imposto também será menor. A redução das tarifas com a eliminação desses encargos da conta de luz seria da ordem de 7%. Muito pouco. O governo queria uma redução da ordem de 20%. Para isso, o grande pulo do gato foi mexer na remuneração das empresas. Acompanhe.

Assim como todo investimento em infraestrutura, o setor elétrico tem como característica um grande investimento inicial (seja em hidroelétricas, seja em linhas de transmissão), que depois será pago através da cobrança de tarifas, em um mercado sem concorrentes. Por isso, para entrar neste mercado, é preciso que a empresa interessada vença uma concorrência para prover o serviço, na qual a tarifa e os reajustes são combinados em contrato. Essa tarifa e a regra dos reajustes devem pagar o investimento inicial para construir a infraestrutura e as despesas da operação em si ao longo dos anos (salários, manutenção etc). No jargão do mercado, o investimento inicial é chamado de CAPEX (Capital Expenditure), enquanto as despesas de operação são chamadas de OPEX (Operational Expenditure). Para tornar o texto mais simples, vamos usar estes dois termos daqui em diante.

Uma grande parte das empresas de geração e transmissão de energia operavam com base em contratos de 20 anos assinados entre os anos de 1995 e 1997, ainda no primeiro governo FHC. Portanto, haveria uma grande necessidade de renovação desses contratos entre os anos de 2015 e 2017, em que provavelmente novos leilões seriam realizados. Qual foi a ideia genial de Dilma Rousseff? Antecipar a renovação desses contratos para 2012 por mais 30 anos. Para isso, essas empresas deveriam ser indenizadas pelo CAPEX realizado no passado e que ainda não havia sido coberto pelas tarifas cobradas no período. Foi aí que se deu o grande “pulo do gato”.

O governo tirou da cartola uma metodologia de cálculo dessas indenizações que prejudicaria fortemente as empresas do setor. No dia seguinte ao anúncio das medidas, as ações do setor protagonizaram um banho de sangue na Bovespa.

Claro, sempre podemos considerar que os contratos foram malfeitos no passado, e que as empresas estão recebendo mais do que deveriam. O problema é que contratos são contratos, e devem ser cumpridos. O governo Dilma Rousseff tentou diminuir a remuneração devida às geradoras e transmissoras através de um cálculo malandro do CAPEX, usando subterfúgios contábeis que não vem ao caso aqui explicitar e que podem ser consultados em detalhe no trabalho de Diogo Mac Cord de Faria citado acima. Aliás, se pudéssemos caracterizar o governo Dilma com uma expressão, essa seria “o governo das malandragens contábeis”.

Não à toa, a única empresa não pertencente ao governo federal que aderiu ao “plano” foi a Transmissora Paulista, que até hoje, 10 anos depois, está aguardando na fila para receber a sua indenização. Coube à Eletrobrás carregar o piano da MP 579 nas costas, o que fez com que a empresa perdesse totalmente a sua capacidade de investimento nos anos seguintes. A Eletrobrás fez o papel da Petrobrás na tarefa de reduzir preços administrados, às custas de sua saúde financeira. Talvez este seja um dos motivos pelos quais o PT declare tanto amor a essas empresas.

E não foi por falta de aviso. O maior investidor privado da estatal à época, o fundo norueguês Skagen, usou termos duríssimos para se referir ao que o governo havia feito, em uma carta ao embaixador brasileiro na Noruega.

A própria Eletrobrás, em documento interno, descreve o cenário de pesadelo que seria (e acabou sendo) a aceitação das condições da MP 579. Vale a pena ler um trecho.

O resultado foi uma queda expressiva das cotações da empresa. No gráfico a seguir, podemos observar a evolução dos preços da Eletrobrás, da CESP e da Cemig, as três em relação ao Ibovespa.

Observe a diferença de comportamento entre a Eletrobrás e as concessionárias de SP e MG, que não aceitaram os termos da MP 579 e não renovaram as suas concessões, mesmo ao preço do custo político de não “ajudar” a derrubar os preços da energia elétrica.

No final, a vitória foi de Pirro. Assim como a Petrobrás, a Eletrobrás foi quebrada para que se conseguisse uma redução dos preços da energia elétrica que não se sustentou no tempo. É o que podemos acompanhar no gráfico a seguir:

Observe como houve uma redução de quase 20% nas tarifas de energia elétrica em 2013, conforme prometido pelo governo. No entanto, este ganho já foi quase todo perdido no ano seguinte, e 2015 foi marcado por um tarifaço para compensar uma série de encargos que estavam corroendo o Tesouro. Foi como se o governo cobrasse uma conta atrasada, que havia deixado de cobrar para fazer populismo. No final de 2015 a conta já estava 50% mais alta do que no final de 2012, antes da MP 579. No final de 2021, a conta de luz estava 2,2 vezes mais cara do que no final de 2012. Descontando-se o IPCA do período, a energia elétrica está 30% mais cara do que antes da MP 579.

O problema dos altos preços da energia elétrica é muito complexo e não há canetada que dê jeito. Aliás, como vimos, canetadas somente agravam o problema, ao postergá-lo para o futuro. Porque a conta sempre chega. Sempre.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

Uma das facetas do Custo Brasil

Essa é do balacobaco.

O STJ decidiu que o CMN deve estabelecer um limite para as taxas de juros cobradas de empréstimos rurais. Como o CMN não estabeleceu, o STJ usou um decreto de 1933 para determinar um limite de 12% ao ano.

Detalhe: trata-se de recursos LIVRES do crédito rural, em que o CMN permite a livre pactuação de taxas entre as partes.

A Constituição Cidadã, na mais pura tradição getulista, em seu artigo 192, inciso VIII, parágrafo 3o, determinava um teto de 12% para os juros reais, ou seja, acima da inflação. Esse artigo carecia de regulamentação infraconstitucional para ser aplicado. Uma chicana jurídica (a tese da “lei complementar única”, que deveria regulamentar o artigo por inteiro e não partes do mesmo, o que inviabilizou consensos), nos livrou da regulamentação desse artigo. Em 2003, a emenda constitucional 40 revogou o artigo 192, jogando na lata do lixo da história essa excrescência.

Que um decreto de 1933 tenha sido usado pela nossa mais alta corte de justiça infraconstitucional para voltar a tabelar os juros diz muito sobre o Brasil, seu sistema caótico de leis e seu judiciário justiceiro social. Se esta decisão prevalecer, a consequência óbvia é o fim do crédito rural com recursos livres.

O chamado “custo Brasil” tem muitas facetas. Uma das mais perniciosas é o seu sistema judiciário.

O estadista e o populista

Entre 1984 e 1985, Margaret Thatcher enfrentou e venceu uma greve de um ano dos trabalhadores das minas de carvão. Na época, as minas eram estatais, e o governo Thatcher anunciou uma reestruturação, com o fechamento de algumas minas, o que detonou a greve. Vale notar que o mesmo sindicato, 10 anos antes, havia derrubado o último governo conservador britânico, liderado por Edward Heath. Thatcher foi firme apesar de todas as consequências da greve, que terminou sem uma única concessão do governo.

O Brasil é um país onde este tipo de evento é inimaginável. Somos o país da contemporização. Em linguagem comum, do “jeitinho”. Nossa independência foi sem sangue, nossos golpes foram de gabinete, nossa guerras civis foram brincadeiras de crianças quando comparadas com as guerras fratricidas de outros países. Na guerra de secessão nos EUA, por exemplo, morreram 600 mil pessoas, o que equivaleria, em população de hoje, a nada menos do que 5 milhões. Foi o preço que Abraham Lincoln topou pagar para manter o país unido.

Thatcher e Lincoln eram estadistas. Enxergavam o efeito de suas ações além do seus mandatos. Atuavam pelo princípio, não pela conveniência imediata. O oposto de estadista é o populista. O populista está de olho no efeito imediato de suas ações. Mede os seus atos pela simpatia que levantam entre os seus. Sob a capa do “bom senso”, não medem as consequências do que fazem em termos de anos ou décadas, mas em termos de dias e semanas. O país, na mão de populistas, piora e nem sabemos exatamente porque, dadas todas as “coisas boas” que os populistas fazem.

Essa reflexão vem a respeito dos ataques à governança da Petrobras. Nossos liberais suspiram quando ouvem o nome de Thatcher, mas acham natural que um dos pilares do capitalismo, o respeito aos acionistas de uma empresa, seja atacado por conveniência eleitoral. A diferença entre o estadista e o populista não poderia ser mais clara neste caso. O estadista sacrificaria o curto prazo pelo princípio. Já o populista sacrifica o principio pelos supostos ganhos de curto prazo.

A mensagem desse ataque à Petrobras é muito clara: mesmo em um governo dito “liberal”, a governança de uma empresa tem pouco valor. Não se poderá, portanto, criticar um governo de esquerda que adote a mesma agenda. Este é o efeito deletério dessa ação, justificar o mesmo modus operandi daqui para frente. Aliás, nesse aspecto, mais respeitável é um governo de esquerda, pois intervirá na Petrobras de acordo com a sua visão de mundo, de acordo com aquilo que avalia ser melhor no longo prazo. Pode estar errado, mas, pelo menos, é coerente.

E o pior de tudo é que, mesmo atacando a governança da empresa, o governo Bolsonaro está longe de ter o efeito eleitoral desejado. É mais provável que colha aquilo que Churchill, outro grande estadista, vaticinou sobre Chamberlain: entre a desonra e a guerra, escolheu a desonra, e terá a guerra. Parafraseando, entre atacar os minoritários e perder a eleição, escolheu atacar os minoritários, e perderá a eleição.

Que falta faz uma Supermercadobras

Segundo o IBGE, nos últimos 12 meses até maio, o diesel subiu 52% e a gasolina, 29%. Portanto, é bastante compreensível que os agentes políticos, liderados por Bolsonaro e Lira, estejam buscando desesperadamente uma forma de controlar esses preços. O único problema é que, uma vez controlados esses preços, vão restar esses aqui (variações em 12 meses):

  • Farinha de trigo: +28%
  • Mandioca: +37%
  • Abobrinha: +82%
  • Pepino: + 78%
  • Tomate: +56%
  • Cebola: +49%
  • Cenoura: +116%
  • Açúcar: +36%
  • Alface: +40%
  • Laranja+ 38%
  • Mamão: +56%
  • Melão: +71%
  • Óleo de soja: +31%
  • Café: +67%

Uma pena que o governo não disponha de uma “Supermecadobras”, em que pudesse exercer seu poder de acionista majoritário para baixar os preços desses produtos. A Venezuela resolveu isso, colocando a PDVSA para distribuir alimentos para o povo. Está aí uma ideia. Se Arthur Lira estivesse realmente preocupado com o povão e não com os mais ricos, estaria pensando nisso.

É bem provável que Bolsonaro, Lira e seus companheiros tenham voltado a destruir a governança da Petro, depois de ter sido reconstruída a duras penas por Temer da destruição causada pelo PT, e não obtenham o seu objetivo de baixar a inflação para os mais pobres.

PS1: alguém pode dizer que, baixando o preço do diesel, o preço dos alimentos também cai, pois o preço do frete se reduz. Essa relação, no entanto, está longe de ser certa. A cadeia de produção é extensa, são muitas empresas envolvidas e que podem abocanhar o lucro que a Petrobras deixará de ter (inclusive os próprios caminhoneiros) e, acima de tudo, os preços dependem, em última instância, do equilíbrio de oferta e demanda, e não dos custos de produção.

PS2: Se, como querem alguns, Bolsonaro estaria apenas jogando para a torcida, colocando-se ao lado do povo contra a Petrobras para tentar se desvencilhar do problema, pode tirar seu cavalinho da chuva. Narrativas fazem sucesso nas bolhas. No final do dia, o povão quer ver o seu problema resolvido, e não historinhas. Quer queira, quer não, Bolsonaro agora é vidraça.