A economia brasileira na era PT. Episódio 5: Manual para quebrar uma empresa

O papel da Petrobras na política econômica do PT merece um capítulo à parte. A empresa foi usada como o pilar fundamental do novo ciclo de desenvolvimento. Os investimentos realizados pela empresa, associados ao controle dos preços dos combustíveis, a oneraram de tal maneira que a estatal chegou a ostentar o título de empresa mais endividada do mundo.

Neste episódio, vamos acompanhar dois casos que ilustram o usa da Petrobras e dos fundos de pensão estatais para atingir objetivos do governo, em iniciativas sem racionalidade econômica e que resultaram em prejuízos bilionários: a construção das refinarias Abreu e Lima e Comperj. Em seguida, vamos entender o efeito do congelamento dos preços dos combustíveis no balanço da Petrobras. Por fim, vamos conferir as seguidas frustrações na produção de petróleo, o principal produto da companhia.

Veremos que estes três fatos (investimentos irracionais, congelamento de preços e frustração de produção) foram os responsáveis pela virtual quebra da empresa.

O investimento em refinarias

Que o país necessita de refinarias para não depender da capacidade de refino no exterior parece ser um consenso. O problema é a viabilidade econômica dessas refinarias, considerando todas as, digamos, condicionantes políticas que as envolvem, e que acabaram sendo suportadas pelo balanço da Petrobras. Além da pura e simples incompetência.

Veremos em mais detalhe os dois casos mais famosos de refinarias que se mostraram um desastre financeiro para a petroleira: Abreu Lima e Comperj. Antes disso, porém, vamos ver rapidamente dois casos ilustrativos desse triste capítulo da Petrobras.

O primeiro parece apenas um pequeno detalhe diante do oceano de incompetência e corrupção que veremos adiante, mas ilustra bem o modus operandi da empresa sob o governo do PT. Trata-se da recompra da participação da Repsol (empresa argentina) na refinaria Alberto Pasqualini em dezembro de 2010. Segundo analistas, a Petrobras pagou US$ 14,9 mil por barril, quando o preço médio pago em transações do mesmo tipo foi de US$ 4,7 mil. A justificativa do diretor da Petrobrás, o ainda pouco famoso Paulo Roberto Costa, é de que o petróleo seria “100% nosso”.

O segundo caso “menor” que abordaremos foi a compra da famosa “ruivinha”, a refinaria de Pasadena, no Texas. Vejamos a notícia que nos conta sobre a venda da refinaria, em maio de 2019, e que resume todo o imbróglio.

Fazendo a conta: a Petrobras pagou um total de US$ 1,249 bilhão pela refinaria, além de ter investido adicionalmente um total de US$ 685 milhões, e vendeu por US$ 467 milhões. Ou seja, um prejuízo, só aqui, de quase US$ 1,5 bilhão. O detalhe sórdido foi o fato de a mesma refinaria ter sido comprada pela Astra Oil (a empresa que vendeu a “ruivinha” para a Petrobras) por US$ 42,5 milhões apenas um ano antes de ter vendido o ativo para a Petrobras. Sem dúvida, um excelente negócio.

Mas estes dois casos são, como dizem, “troco de pinga”, se comparados com os dois grandes projetos da Petrobras na era PT: Abreu e Lima e Comperj.

A refinaria Abreu e Lima nasceu do compromisso do governo Lula de estabelecer uma parceria estratégica com o governo da Venezuela, então liderado pelo comandante Chávez. No dia 16/12/2005, a pedra fundamental da nova refinaria foi lançada com a presença dos dois presidentes. O discurso de Chávez fez menção ao seu apoio à reeleição de Lula nas eleições do ano seguinte:

Neste documento, o TCU resume o processo decisório que levou à construção da refinaria Abreu e Lima (RNEST). Segundo o relatório de auditoria do TCU, a decisão de construção da refinaria passou pelas 5 etapas do processo decisório da diretoria da Petrobras sem que houvesse condições para tal. Entre os problemas encontrados, podemos listar os seguintes:

  • Parceria com a PDVSA sem definição de responsabilidades.
  • A RNEST precisaria refinar petróleo brasileiro e venezuelano, este de baixa qualidade, o que importou em investimentos adicionais em relação ao custo estimado inicial;
  • Já na terceira fase do processo decisório, chegou-se à conclusão de que o projeto teria um VPL (Valor Presente Líquido) negativo de US$ 3 bilhões. Para fazer com que este VPL se tornasse positivo, a diretoria da Petrobras considerou, segundo levantamento do TCU, “elevação do fator de utilização da refinaria para níveis irreais”, “redução da taxa mínima de atratividade” que a Petrobras normalmente utilizava, “ampliação da vida útil do empreendimento de 25 anos para perpétua”, “incentivos fiscais que ainda dependeriam de aprovação legislativa” e “impacto de uma hipotética perda de mercado caso um terceiro construísse uma refinaria semelhante na mesma localização”. Fazendo essas adaptações, o VPL tornou-se positivo em apenas US$ 0,08 bilhões.
  • Em 2015, o VPL atingiu a astronômica cifra de US$ 20 bilhões negativos. Foi então que a empresa decidiu interromper a construção com 82% da obra já executada.

O relatório se encerra com o seguinte parágrafo: “O conjunto probatório reunido nos autos levou à conclusão de que, ao longo de sua concepção e implantação, o projeto de construção da Refinaria Abreu e Lima não tinha maturidade técnica adequada e era um investimento inviável economicamente.” Mas se encaixava na estratégia de usar a Petrobras como alavanca de desenvolvimento econômico e parceria com governos aliados.

Atualmente, a refinaria Abreu Lima pelo menos produz cerca de metade do combustível previsto no projeto original. Digo “pelo menos” porque a história da Comperj é ainda pior.

Tendo sido idealizada pelo Grupo Ultra como uma operação para a produção de petroquímicos ligados ao seu próprio negócio e com orçamento inicial de US$ 3 bilhões, as constantes ampliações do escopo do projeto da Comperj, em função da megalomania do PT e outros interesses menos republicanos, levou o projeto a se inviabilizar financeiramente e fizeram com que o grupo privado desistisse do empreendimento.

Em março do ano seguinte, Lula visitaria a obra em ritmo de campanha eleitoral, mas as obras não avançavam. Paulo Roberto Costa, então diretor de abastecimento da empresa e que ficaria “famoso” como o primeiro delator da Operação Lava-Jato, afirma na reportagem que o atraso se deu por conta de negociações de contratos por “preços melhores”.

Quatro anos depois, em abril de 2014, nova reportagem do Globo reflete a frustração com uma obra que não parecia ir a lugar algum.

Em 2015, com a Operação Lava-Jato e auditoria do TCU, a verdade sobre a refinaria começa a vir à tona. Vale a pena ler o trecho de uma extensa reportagem do jornal O Globo do dia 19/04/2015 destacado abaixo.

A Comperj hoje, rebatizada de GasLub, não produz nada, nem uma gota de combustível. Vale ler o que vai no site da Petrobras:

Note o gerúndio utilizado no texto. Em fevereiro deste ano foram realizados os primeiros testes da Unidade de Processamento de Gás Natural construído no complexo. E é isso. Para resumir o desastre, ser-nos-á útil lançar mão dos relatórios do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, que contém os investimentos realizados pela Petrobrás nessas refinarias. No gráfico a seguir, podemos observar a evolução dos custos ao longo do tempo.

Note que o gráfico mostra um período de 7 anos (as datas são de publicação dos balanços do PAC pelo próprio governo). Em termos de custos, o primeiro orçamento de Abreu e Lima foi de cerca de R$ 5 bilhões, terminando em R$ 37 bilhões 7 anos depois. No caso da Comperj, os custos iniciaram por volta de R$ 15 bilhões, terminando em R$ 27 bilhões no mesmo período. Lembrando que as obras não se encerraram em 2014, sendo este apenas o último dado que temos disponível nos balanços do PAC. Ou seja, os custos são ainda maiores do que estes. A Petrobras quebrou, entre outras coisas, por financiar projetos deste tipo, completamente inviáveis do ponto de vista financeiro, para servir a propósitos políticos e objetivos menos republicanos, além de servir à megalomania da fase Húbris do governo do PT.

O controle dos preços dos combustíveis

Além de investimentos em projetos sem a mínima viabilidade financeira, apenas para atender uma política econômica megalomaníaca e a arranjos políticos, a Petrobras foi também utilizada para controlar a inflação, através do virtual congelamento dos preços dos combustíveis.

Em um relatório de novembro de 2012, o Bank of America analisa a defasagem dos preços dos combustíveis, que já vinha se acumulando desde o início de 2011, conforme os gráficos abaixo:

A linha verde são os preços internacionais de gasolina e do diesel, respectivamente nos gráficos 1 e 2, enquanto a linha azul são os preços praticados localmente. Observe como a linha verde permanece sistematicamente acima da linha azul desde o início de 2011. Segundo os analistas do BofA, como a Petrobrás importava, na época, 160 mil barris/dia de diesel e 80 mil barris/dia de gasolina, pagando preços internacionais e vendendo a preços locais, isso significava algo como US$ 800-900 milhões de prejuízos ao ano.

Depois de dois anos sem reajustes, e pressionado pela empresa, o governo permitiu que a Petrobras reajustasse a gasolina e o diesel em 31/01/2013 e o diesel novamente em 06/03/2013. No entanto, mesmo após estes aumentos, a defasagem se mantinha em 6% para o diesel e 13% para a gasolina, segundo os analistas do Bank of America. O colunista Celso Ming, após o primeiro reajuste, mandou a real em sua coluna no Estadão:

Em outubro de 2013, na reunião com investidores em que a empresa apresentou seus resultados do 3º trimestre, a diretoria apresentou o seguinte gráfico, que mostra as perdas de resultado devidas à defasagem dos preços dos combustíveis:

Nessa mesma reunião, a empresa anunciou que iria propor ao governo uma nova metodologia de reajuste dos preços dos combustíveis. A partir de então, começou uma novela que duraria algumas semanas, até que, em 29/11/2013, a empresa soltou um Fato Relevante, em que anuncia o estabelecimento de uma política de reajuste de combustíveis. Só que não.

Observe que a “nova metodologia” é secreta! A única promessa é que os preços serão administrados de acordo com as metas de endividamento e alavancagem do balanço da empresa. No mesmo comunicado, a empresa anunciou reajuste de 4% para a gasolina e 8% para o diesel, longe de recuperar a defasagem acumulada.

A partir do final de 2014, com a queda dos preços do petróleo no mercado internacional, o diferencial de preços diminuiu naturalmente. De qualquer forma, as perdas dos anos 2011-2013 serviram para estressar o balanço da empresa e aumentar o endividamento.

Sobrecarregada com investimentos irracionais e pela defasagem de preços de seu principal produto, a Petrobras não conseguia fazer bem o seu core business, que é explorar petróleo. É o que veremos a seguir.

Muita promessa, pouca entrega

Espera-se que uma empresa de exploração de petróleo explore petróleo. Este é o básico. O advento da descoberta do pré-sal deu origem a uma verdadeira viagem psicodélica com respeito à capacidade da Petrobras de exploração de petróleo. No gráfico abaixo, tirado do relatório da administração publicado em dezembro de 2009, podemos observar a projeção de produção de petróleo para os 10 anos seguintes.

A projeção era dobrar a produção da empresa neste período. A realidade, no entanto, foi bem outra, como podemos ver no gráfico a seguir:

Observe como a produção permanece estagnada entre 2,0 e 2,2 milhões de barris/dia em todo esse período. E não foi por falta de investimentos, como podemos observar no próximo gráfico:

Podemos observar que, entre 2010 e 2015, a empresa investiu pouco mais de R$ 80 bilhões/ano em média, ou quase 1,5 vez a mais do que nos 5 anos anteriores.

Ou seja, a empresa conseguiu a proeza de investir quase R$ 500 bilhões em um período de 6 anos sem conseguir elevar em uma gota a produção de petróleo. Isto pode ser creditado a decisões ruins de investimentos, como pudemos ver no caso das refinarias, que também não produziram uma gota de gasolina ou diesel nesse período. Esse dinheiro desperdiçado poderia ter sido utilizado para fazer a manutenção dos poços existentes. A produção do pré-sal, de fato, aumentou no período, mas a produção em campos mais antigos se reduziu com a falta de investimentos, o que resultou em estagnação da produção. E se uma empresa não consegue aumentar a produção de seu principal produto, mesmo investindo toneladas de recursos, o resultado é a queima de caixa e o aumento do endividamento, que foi o que acabou ocorrendo, como veremos a seguir.

A empresa mais endividada do mundo

Alguns indicadores nos serão úteis para entender o impacto dessas decisões no balanço da empresa. Em primeiro lugar, vejamos a evolução do valor de mercado da empresa comparado com o seu valor patrimonial. O valor de mercado é dado pelo preço das ações da empresa na bolsa, ou seja, reflete as expectativas dos acionistas em relação à performance futura da empresa. Já o valor patrimonial reflete a valor contábil da empresa, aquele resultante dos lucros acumulados e dos investimentos (pelo seu valor contábil) ao longo dos anos.

Este gráfico é interessante sob muitos aspectos. Vejamos.

Em primeiro lugar, podemos observar que, até 2010, o valor de mercado da Petrobrás encontrava-se acima do seu valor patrimonial, contábil. Isso é o normal para empresas sadias, em que os investidores esperam (e antecipam) um aumento do valor patrimonial no futuro, através da geração de lucros. A partir de 2011, no entanto, as coisas se invertem: o valor de mercado passa a ficar abaixo do valor patrimonial. O mercado, na verdade, antecipou algo que iria acontecer a partir de 2014: a redução do valor patrimonial da empresa! Os prejuízos foram tão grandes, que afetaram negativamente o valor patrimonial da Petrobras, levando à sua primeira redução da história, no espetacular valor de R$ 100 bilhões!

Outro ponto interessante é observar o salto no valor patrimonial em 2010, de R$ 150 bilhões para R$ 300 bilhões, devido à megacapitalização naquele ano. Observe como, neste mesmo ano, o valor de mercado subiu em apenas R$ 40 bilhões, com os investidores já desconfiados de que aquela capitalização não iria se traduzir em mais lucros no futuro.

A partir de 2016, com a mudança na gestão da empresa, o valor de mercado novamente se aproxima do valor patrimonial, ultrapassando-o em 2018. Este movimento demonstra a retomada da confiança de que a empresa seria bem gerida novamente.

Um outro indicador é o nível de endividamento, como podemos observar no gráfico a seguir.

A Petrobrás chegou a deter o título de empresa mais endividada do mundo a partir de 2014, com mais de US$ 100 bilhões em dívidas, que somente começaram a ser equacionadas após a mudança da gestão, em 2016. O tamanho do endividamento não faz muito sentido em si, o que importa é a alavancagem da empresa, ou seja, o tamanho da dívida em relação ao seu fluxo de caixa. Em outras palavras, em quanto tempo aquela dívida conseguiria ser paga com o fluxo de caixa gerado. No gráfico abaixo, podemos observar a principal métrica de alavancagem utilizada pelo mercado, a dívida líquida dividida pelo EBITDA, que é o lucro da empresa antes de pagamento de juros e impostos e antes do desconto de amortizações e depreciações.  Ou seja, é o caixa gerado pelas operações da empresa.

Observe como, antes de 2011, a alavancagem da empresa estava em 1 ou até abaixo. Isso significa que a dívida da empresa poderia ser paga com toda a geração de caixa de um ano, um nível saudável. A partir de 2011, no entanto, a alavancagem começa a crescer de maneira acentuada, atingindo 4 vezes no início de 2014. Ou seja, seriam necessários 4 anos de operação para pagar a dívida, uma alavancagem extremamente alta. Entre 2014 e 2016, em função dos vários ajustes feitos no balanço da empresa (reconhecimentos de prejuízos), esta relação perde o sentido, pois o EBITDA fica distorcido. A partir de 2017, sob nova gestão, a empresa começa a se desfazer de ativos, diminuindo lentamente a dívida, até voltar a uma alavancagem de uma vez (dívida líquida/EBITDA = 1) em 2021. Essa trajetória virtuosa só foi interrompida pela pandemia, porque o EBITDA despencou no início de 2020, mas essa foi uma distorção que logo desapareceu.

Como quebrar uma empresa gigante e monopolista em três simples passos

1º passo: faça investimentos gigantescos sem nenhuma racionalidade econômica, para fomentar a indústria nacional e cultivar alianças com governos amigos;

2º passo: use a empresa para fazer “política monetária”, vendendo seus produtos por um preço menor do que foram comprados para mitigar a inflação;

3º passo: desperdice recursos de tal forma que a produção de seu principal produto não acompanhe os investimentos realizados.

No gráfico a seguir, podemos acompanhar o valor de mercado da Petrobrás, tanto em reais quanto em dólares:

Podemos observar três grandes movimentos dos preços das ações da empresa:

  • 2003 – 2008: O valor da empresa saiu de R$ 50 bilhões (US$ 15 bilhões) para o seu pico de R$ 450 bilhões (US$ 290 bilhões), quando o Brasil (e a empresa) receberam o Grau de Investimento. O sprint final, a partir de meados de 2007, se deu em função da descoberta do pré-sal.
  • 2008 – 2011: O valor da empresa fica oscilando em torno dos R$ 300 bilhões (US$ 175 bilhões) após a crise do subprime.
  • 2011 – 2016: O valor da empresa começa uma derrocada que vai terminar somente no início de 2016, quando o movimento do impeachment ganha corpo. Dilma Rousseff assume o governo com a empresa valendo R$ 400 bilhões (US$ 250 bilhões) e entrega a empresa valendo R$ 85 bilhões (US$ 20 bilhões). Ou seja, o governo Dilma conseguiu destruir R$ 315 bilhões (US$ 230 bilhões) em pouco mais de 5 anos. Uma verdadeira proeza. (Como nota cômica, vemos o valor da empresa recuperando-se com a perspectiva de vitória de Marina Silva nas eleições de 2014. Marina era vista, pelos investidores, como melhor que Dilma para a Petrobras! O que o desespero não faz).

Olhando em perspectiva, o governo do PT pegou a empresa valendo R$ 50 bilhões (US$ 15 bilhões) e, 13 anos depois, entregou valendo R$ 85 bilhões (US$ 20 bilhões). Este mesmo dinheiro, aplicado na Caderneta de Poupança no início de 2003, estaria valendo R$ 135 bilhões no início de 2016. Ou seja, comparado com a Poupança, o PT queimou R$ 50 bilhões em valor de mercado da Petrobrás.

Alguns dirão que o “valor de mercado” não passa de um fetiche de especuladores, preocupados apenas em lucrar às custas do patrimônio brasileiro. Ocorre que foram esses “especuladores” os chamados a financiar as atividades da petroleira, tanto por ocasião da abertura de seu capital, como na megacapitalização de 2010. Aliás, como vimos no Episódio 2, foram esses “especuladores” os únicos que compareceram com dinheiro de verdade em 2010, com o governo aportando a sua parte em “barris de petróleo a serem descobertos”. Além dos “especuladores”, outros otá… troux… financiadores se dispuseram a emprestar dinheiro para a empresa, até que esta se tornasse a empresa mais endividada do planeta.

De alguma maneira, o valor de mercado da Petrobras conta a história do governo do PT. A exemplo da economia, também aqui temos três fases: “a Grande Ilusão”, “a Húbris” e “Petrobras em Vertigem”. A diferença na datação desses três períodos em relação ao debacle da atividade econômica se dá porque os investidores costumam reagir antes às más notícias. Por isso, as ações da Petrobras começam a recuar já em 2011, enquanto a Grande Recessão só se inicia em 2014.

Se tivéssemos que escolher um símbolo para a era PT, talvez a Petrobras fosse o mais adequado. Tratou-se não somente do principal instrumento para a implementação das ideias econômicas do partido em todo o seu esplendor, como, além disso, é uma espécie de Brasil em miniatura, onde todas as mazelas que assolaram o país nesses anos se fizeram representar em escala menor.

Nota final: o leitor atento terá notado que não falamos de corrupção em momento algum. Afinal, quem precisa de corrupção para explicar a quebra de uma empresa, se sobram incompetência e cegueira ideológica?


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

Uma versão edulcorada da história

Luiz Sérgio Henriques, organizador das obras de Gramsci no Brasil, trás, novamente, o paralelo entre a aliança anglo-soviética contra Hitler na 2a Guerra e uma suposta aliança entre “forças democráticas” para derrotar o extremismo de direita no Brasil, representado por Bolsonaro.

Segundo essa versão edulcorada da história, Stálin teria articulado uma “clarividente política de alianças” contra um inimigo comum, ainda que, admite o articulista, os “ventos da democracia” não tenham soprado para dentro do sistema soviético, o que seria quase que uma contradição em termos.

Bem, haveria contradição se a versão edulcorada da história fosse a real. Uma pena que não seja. A real é a seguinte: Stálin celebrou um pacto de não-agressão com Hitler, e ambos retalharam a Polônia entre si. O plano de Hitler, desde sempre, era atacar ao leste, onde estava o “espaço vital” para o povo alemão e onde se encontravam os malditos “judeus bolcheviques”. Mas, antes disso, precisava celebrar um armistício com a Grã-Bretanha, de modo a poder concentrar suas forças no ataque à União Soviética. Tendo encontrado pela frente um sujeito bem mais teimoso e clarividente que Chamberlain, Hitler não conseguiu seu intento.

Levado pela sua megalomania, Hitler decidiu, então, abrir a 2a frente de batalha ao leste, atacando a União Soviética em junho de 1941. Foi somente então que Stálin, jogando a sua melhor chance de sobreviver, aceitou fazer aliança com Churchill. Nada a ver, portanto, com uma suposta “aliança de forças democráticas para derrotar a extrema-direita”. Quem leu a auto-biografia de Churchill sabe que o primeiro-ministro britânico não confiava nada em Stálin, e tinha consciência de que era a União Soviética o inimigo de longo prazo. É dele a expressão “Cortina de Ferro”, que denominava a área de influência dos soviéticos na Europa.

Alguém poderá dizer que, mesmo em sua versão hard, a história ainda se aplica. Não seria preciso reconhecer no PT uma força democrática para estabelecer uma aliança, dado que o inimigo comum, agora, é Bolsonaro. Tratemos da direita anti-democrática agora, diria Churchill, e depois vejamos o que fazer com a esquerda anti-democrática. Até poderia ser, se assim fosse. A correlação de forças é completamente outra. Será que Churchill faria uma aliança com Stálin se soubesse que este teria meios para conquistar a Europa Ocidental uma vez tendo sido Hitler derrotado? Na política brasileira não há compartilhamento de poder quando o PT ocupa o espaço. Essa história de “aliança democrática” só existe enquanto existe um inimigo comum. Depois, quem tem mais armas subjuga o antigo aliado.

O ser humano está sempre em busca de padrões, de modo a tornar a realidade mais inteligível. Fazer paralelos históricos é um desses mecanismos de busca de padrões. É tentador, nesse sentido, identificar Bolsonaro com uma versão aguada de Hitler, Lula com uma versão adocicada de Stálin e Alckmin (e o resto do “centro democrático”) com uma versão idealizada de Churchill. O problema, como disse Karl Marx, é que a história repete-se como farsa.

Bolsonaro e PT alinhados

“Grande parte dos minoritários são empresas de fundo de pensão dos Estados Unidos que ganham em média R$ 6 bilhões por mês. […] Eles não pensam no Brasil.”

Jair Bolsonaro, em discurso em culto evangélico, hoje, em Manaus.

“A Petrobras será colocada de novo a serviço do povo brasileiro e não dos grandes acionistas estrangeiros”.

Trecho do programa de governo do PT.

Acho que Bolsonaro, se pensar bem, votará no PT.

Pandemia e descaso com a educação

A Economist publicou uma pequena matéria sobre os efeitos do fechamento de escolas na América Latina.

Fui pesquisar algum dado público sobre fechamento de escolas no mundo. A Unesco mantém uma base de dados a respeito. O gráfico abaixo indica o número de semanas durante as quais as escolas de uma amostra de países ficaram parcial ou totalmente fechadas.

“Totalmente fechadas” significa todas as escolas do país fechadas 100%, enquanto “parcialmente fechadas” pode significar uma parte das escolas do país fechadas, ou 100% das escolas parcialmente fechadas, ou uma combinação dos dois. Como o período analisado vai de março de 2020 a outubro de 2021, temos cerca de 84 semanas. Portanto, este seria o número máximo de semanas em que as escolas poderiam permanecer fechadas.

Podemos observar que o Brasil está entre os países que mais tempo fechou suas escolas, total ou parcialmente. Está acompanhado basicamente de países da América Latina, daí a preocupação demonstrada pela reportagem da Economist com a região.

Mesmo países mais desenvolvidos, que aparecem próximos do Brasil, como Coreia do Sul e EUA, apresentam um número muito menor de semanas com as escolas 100% fechadas no país inteiro, indicando que fizeram um trabalho mais inteligente de seleção das escolas que fechariam. Os países da Europa, por outro lado, mantiveram suas escolas fechadas, em média, 28,6 semanas, sendo 12,2 semanas fechadas totalmente e 16,4 semanas fechadas parcialmente. Estes números para o Brasil são 78, 38 e 40 semanas, respectivamente. Ou seja, mantivemos as escolas totalmente fechadas o triplo da média europeia, e parcialmente fechadas 2,5 vezes mais que os países da Europa.

O artigo da Economist termina de maneira melancólica. Vou aqui traduzir o último parágrafo:

“As desigualdades aumentarão. Crianças pobres, com conexões de internet fracas ou inexistentes, sofreram desproporcionalmente. Antes da pandemia, os jovens de 15 anos na América Latina estavam, em média, três anos atrás de seus colegas da OCDE em leitura, matemática e ciências, de acordo com os testes internacionais do Pisa. Eles agora vão ficar mais para trás. Eles podem perguntar por que políticos, professores e pais não pressionaram para que as escolas reabrissem mais cedo”.

E, antes que coloquem 100% da culpa na turma do “fique em casa”, vale observar que este foi um fenômeno muito latino-americano, e o “fique em casa” foi global, com algumas poucas exceções, como a Suécia. Australia e Nova Zelândia, para não falar de China e Japão, tiveram políticas draconianas de isolamento. Nem por isso suas escolas ficaram fechadas durante tanto tempo, pelo contrário.

O problema, no meu entender, foi o velho descaso com a educação, que faz parte do DNA latino-americano. A pergunta sugerida pela Economist tem a mesma resposta à pergunta de porque a educação na América Latina é, em geral, uma lástima: políticos, professores e pais não estão realmente preocupados com isso.

Para que serve uma estatal?

Brasília está em transe. Executivo (incluindo os pretendentes ao cargo), Legislativo e Judiciário juntaram-se para atacar a diretoria da Petrobras, após a decisão de mais um aumento de combustíveis.

Já escrevi aqui que a existência de uma empresa estatal somente se justifica por cinco razões:

1) Atuação em área estratégica para o país, em que a atuação privada poderia colocar em risco a segurança nacional;

2) Instrumento de fomento para o desenvolvimento do país;

3) Interesses políticos, em que a atividade da empresa pode render dividendos eleitorais;

4) Interesses corporativos dos funcionários e

5) Instrumento para acobertar esquemas de corrupção.

Desse objetivos, os dois primeiros são explícitos e os três últimos, implícitos. De qualquer forma, observe que, dentre esses cinco objetivos, não se encontra “gerar dividendos para os acionistas”.

Lembro de uma ocasião em que estive na Secretaria da Desestatização para uma reunião. Notei que o descanso de tela dos computadores exibia o artigo 173 da Constituição, que reza o seguinte: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Não está escrito “quando a atividade for lucrativa”.

Acho graça quando defendem que esta ou aquela empresa não precisa ser privatizada “porque dá lucro”. Na ausência de qualquer outro motivo, este é um motivo pelo qual a empresa deveria ser privatizada. Afinal, o governo tem mais o que fazer com nosso dinheiro além de especular na bolsa.

Diante dessa realidade, uma estatal de economia mista não faz o mínimo sentido, pois junta acionistas com objetivos completamente diferentes. A Petrobras, o Banco do Brasil, a Sabesp e uma lista cada vez menor de empresas de economia mista sofrem de uma esquizofrenia insolúvel: precisam atender os cinco objetivos acima e, além disso, gerar dividendos para os acionistas, objetivos insanavelmente conflitantes.

Por que, então, acionistas minoritários aceitam ser sócios de estatais? Preço. Normalmente essas empresas são negociadas a preços mais baixos em relação aos seus pares privados, preço descontado pelo custo dos cinco objetivos acima. O problema, como sempre, é avaliar corretamente esse desconto. Ontem, as ações de Petrobras chegaram a cair quase 10%, em um sinal de que os acionistas minoritários reavaliaram o peso que o primeiro objetivo acima tem na matriz de decisão da empresa.

Como todo estudante do 1o ano de administração sabe, quanto mais valorizadas as ações de uma empresa, mais barato é o seu custo de capital. Em outras palavras, a empresa precisa emitir menos ações para obter o mesmo capital, e consegue se alavancar mais com dívidas por um custo menor. Para uma estatal, no entanto, esta não é uma preocupação, dado que seu acionista majoritário, em tese, sempre pode capitalizar a empresa a custo zero, via captação de impostos.

Claro que essa é uma possibilidade apenas em tese. Sabemos que a capacidade financeira do Estado é limitada por condicionalidades políticas. Todos gostam de ter uma empresa que subsidie combustíveis, mas ninguém gosta de pensar que pode ter seus impostos aumentados para bancar essa política. O resultado é que o custo para bancar o objetivo 1 acima torna-se igual ao de emitir dívida, que é bem maior que zero.

Alguns dirão que o governo não precisa capitalizar a empresa, afinal a empresa dá lucro, trata-se apenas de moderar o lucro em uma situação excepcional. Esse raciocínio tem dois problemas. O primeiro é a definição de “situação excepcional”. Uma vez aberta a porta, fica sempre a possibilidade de alguém achar que estamos em uma “situação excepcional”. Os acionistas minoritários sabem disso. Aliás, a única “situação excepcional” no momento é a coincidência de um preço alto de petróleo com um ano eleitoral.

O segundo e principal problema tem a ver com o natural ciclo das commodities. Os preços das commodities têm exatamente esse tipo de comportamento: sobem e caem ao sabor dos ciclos econômicos e dos choques de oferta. O que está acontecendo hoje não difere de tantos outros momentos “excepcionais” da história. Se tem uma coisa da qual podemos estar certos é de que os preços das commodities atravessarão “situações excepcionais”, tanto na alta quanto na baixa. As empresas que exploram commodities precisam aproveitar os pontos altos do ciclo para juntar reservas e para pagar dividendos excepcionais aos seus acionistas, de modo a compensar os períodos de baixa, que sempre ocorrem. Caso haja um teto para o lucro, a empresa e os acionistas terão somente o ônus do ciclo negativo, deixando de ter o bônus do ciclo positivo.

Um exemplo caricato mas real dos efeitos desse tipo de política é a PDVSA, petrolífera do estado venezuelano. Ao ser usada exclusivamente para atingir os cinco objetivos listados acima, e sem que o governo venezuelano tivesse condições financeiras para capitalizar a empresa, temos hoje a triste situação de as maiores reservas petrolíferas do mundo permanecerem deitadas em berço esplêndido por falta de capacidade de investimento em exploração.

É verdade que o preço alto dos combustíveis é um problema no mundo inteiro. Mas, para amenizar o problema, vemos países cortando impostos sobre combustíveis ou subsidiando-os com verbas orçamentárias, e não usando o balanço de uma estatal, ainda mais com sócios privados!

Voltando ao artigo 173 da Constituição e aos cinco motivos para a existência de uma estatal listados acima, entre os quais não se inclui “dar lucro”. A meu ver, a existência de uma estatal somente se justifica pelo fato de dar prejuízo. Esse prejuízo é a tradução financeira do atendimento de objetivos que, por construção, não são lucrativos para a iniciativa privada. Neste caso, o orçamento da estatal é usado como uma espécie de extensão do orçamento público para a implementação de políticas para o bem comum. Eu particularmente não gosto desse arranjo, pois tende a esconder o real custo das políticas públicas, mas, pelo menos, o uso da estatal está de acordo com os objetivos que justificam sua existência.

A economia brasileira na era PT. Episódio 4: Na base do anabolizante

No núcleo da política econômica do PT, chamada de Nova Matriz Econômica (NME), está a crença de que o Estado pode fomentar o crescimento econômico através da escolha de investimentos cirurgicamente escolhidos. Portanto, o crescimento econômico deveria ser o resultado de todas as políticas adotadas pelos governos Lula e Dilma. De fato, se olharmos somente o crescimento, o governo Lula se destaca, conforme podemos observar no gráfico abaixo:

A média do crescimento econômico nos governos Lula foi de 4% ao ano, contra 2,5% de FHC, menos de 0,5% nos governos Dilma, 1,5% no governo Temer e cerca de 1% no governo Bolsonaro (usando previsão de crescimento de 1,5% para 2022 do FMI). Então, é indisputável o fato de que o governo Lula entregou crescimento maior, mas também é inegável que Dilma foi a responsável pela pior performance da economia brasileira na história (estou considerando o ano completo de 2016 para este e os próximos cálculos. Apesar de Dilma ter deixado o cargo em abril de 2016, o PIB daquele ano foi obra de seu governo). Considerando todos os governos do PT (linha verde), temos uma média de crescimento semelhante ao que tivemos nos governos FHC, mas ainda maior do que tivemos posteriormente, com Temer e Bolsonaro.

Mas, na vida, tudo é relativo. Precisamos ver como se saíram nossos pares nestes mesmos períodos. Escolhi para comparação os seguintes países: Chile, Colômbia, Indonésia, Coréia, Malásia, México, Peru, Rússia, África do Sul e Turquia. Deixei de fora, propositalmente, China e Índia, que têm apresentado crescimentos muito superiores à média. O resultado pode ser visto no gráfico a seguir.

Em todos os períodos considerados, o nosso crescimento econômico ficou abaixo dessa amostra de países. A menor diferença (-0,5%) foi, de fato, no governo Lula, seguido por -1,0% (governo FHC), -0,9% governo Bolsonaro), -1,7% (governo Temer) e incríveis -3,3% no governo Dilma. Se, no entanto, considerarmos os governos do PT como um todo, veremos um quadro diferente: a diferença do PT passa a ser a maior (-1,8%), seguido de Temer (-1,7%), FHC (-1,0%) e Bolsonaro (-0,9%). Se considerarmos o governo Temer como de limpeza da casa, ainda carregando grande parte da “herança maldita” dos governos do PT, podemos dividir a história econômica brasileira desde o Plano Real em três partes:

  1. Governo FHC, em que nosso crescimento fica cerca de 1% ao ano abaixo da média dos emergentes ex-China.
  2. Governos PT, em que nosso crescimento fica em quase 2% ao ano abaixo da média dos emergentes ex-China.
  3. Governo Bolsonaro, em que nosso crescimento volta à natural mediocridade brasileira, ou seja, cerca de 1% ao ano abaixo da média dos emergentes ex-China.

A passagem do PT pelo governo, apesar de todos as promessas grandiloquentes de crescimento econômico, entregou-nos um crescimento ainda pior que a média já medíocre do crescimento brasileiro. Isso, apesar de termos políticas de desenvolvimento econômico como nunca antes na história deste país. É o que veremos a seguir.

PAC – Programa de Aceleração do Crescimento

Dilma foi eleita com o epíteto de “Mãe do PAC”. O que era o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento? Além de ser o empacotamento mercadológico de todo e qualquer investimento público ou privado em infraestrutura, para passar a impressão de que o governo estava fazendo algo realmente grandioso, o PAC também contava com incentivos fiscais a alguns setores além do uso intensivo do funding de fundos de pensão públicos e o BNDES. O PAC foi lançado no início do 2º governo Lula, em janeiro de 2007, e renovado, sob o nome de “PAC 2”, por Dilma no início de seu primeiro mandato. O seu lançamento foi cercado da desconfiança do mercado em relação à sua capacidade de acelerar o crescimento de maneira permanente. E, claro, reservava a Dilma um lugar de destaque.

De fato, tivemos uma aceleração da Formação Bruta de Capital Fixo e do investimento público neste período, conforme podemos ver nos gráficos a seguir, que mostram a Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), que é uma medida do investimento geral na economia, e o Investimento Público do Governo Central.

As médias se referem ao período pré-PAC (até 2006), ao período do auge do PAC (2007-2014) e ao período pós-PAC (2015 em diante). Podemos observar que, na média, a FBCF foi 3 pontos percentuais acima do período pré-PAC e 5 pontos percentuais acima do período pós-PAC. O mesmo ocorre com o investimento do governo, que pulou 1 ponto percentual do PIB em relação ao período pré-PAC, para cair o mesmo tanto no período pós-PAC.

Este é o problema de programas voluntaristas: não existe uma perenidade ao longo do tempo. Enquanto tem gás, o investimento é mantido em patamares artificialmente altos. Quando o gás termina, volta-se ao normal ou até abaixo, pois é necessário pagar as contas. O investimento ser mais alto durante um período curto não tem mérito algum, pois é preciso entender como este investimento afeta o nível do crescimento econômico como um todo. Como já vimos, o crescimento no período que compreende todo o governo do PT (o que considera o período pós-PAC) foi bem abaixo da média de países comparáveis.

Para encerrar esta primeira parte, vamos observar como a indústria se comportou durante este período. Como sabemos, a “reindustrialização” do país é um mantra de todo programa desenvolvimentista, e todo esse esforço certamente tinha este objetivo como um de seus principais. Funcionou? Vejamos no gráfico abaixo, em que plotamos a participação da indústria no PIB:

Podemos observar como a participação da indústria no PIB cai quase que linearmente durante todo o governo PT, tendo iniciado em 21,6% e terminado em 19,0%. Um verdadeiro fiasco, se considerarmos o objetivo declarado.

Até agora, vimos como o crescimento econômico da era PT dependeu de anabolizantes. Um dos principais foi o crédito, via empréstimos do BNDES.

O papel do BNDES

Apesar de ter lançado o PAC em 2007, a grande “mágica” do crescimento começa realmente a partir de 2009, quando o governo Lula inicia o aumento brutal do orçamento do BNDES. No gráfico abaixo, podemos observar o crescimento espetacular do BNDES, que saiu de quase zero em 2008 para 6% do PIB em 2010, crescendo até quase 9% nos anos seguintes. Em dinheiro de hoje, estamos falando em algo próximo a R$ 700 bilhões, uma insanidade, somente possível para aqueles que estão certos do seu sucesso. O aumento do orçamento do BNDES é uma das marcas características dos Anos de Húbris.

Em junho de 2015, com a credibilidade do Tesouro Nacional já na lona, foi aprovada a lei 13.132/2015. Esta lei emendava a lei 12.096/2009, a qual, por sua vez, autorizava o Tesouro a subsidiar os juros dos empréstimos do BNDES. A lei de 2015 seria apenas mais uma de uma série a autorizar o aumento do volume de subsídios, como havia acontecido anualmente desde a lei originária de 2009, a não ser por um pequeno detalhe: foi acrescentado um parágrafo que obrigava o Tesouro Nacional a explicitar o custo dos subsídios concedidos. Seria a primeira vez em que o custo fiscal desse programa seria tratado com transparência. Desde então, o Tesouro mantém um site com os relatórios bimestrais produzidos para atender a essa determinação legal.

primeiro relatório, referente ao último bimestre de 2015, descreve minuciosamente os mecanismos fiscais por trás dos subsídios ao chamado Programa de Sustentação do Investimento (PSI), nome dado aos aportes de recursos para que o BNDES irrigasse a economia com empréstimos subsidiados. Até 2015, o Tesouro tinha emprestado ao BNDES um total de R$ 524 bilhões, dos quais R$ 452 bilhões foram no âmbito do PSI, conforme podemos ver no gráfico a seguir, retirado do relatório:

De maneira bastante simplificada, podemos resumir o esquema na figura a seguir:

Vejamos:

1. O Tesouro se financia no mercado à taxa Selic vendendo títulos públicos para os “rentistas”. Esta é uma simplificação, pois o custo da dívida pública é normalmente maior que a taxa Selic, mas vamos assumir a taxa Selic para fins didáticos.

2. O Tesouro financia o BNDES através de contratos indexados, em grande parte, à TJLP – Taxa de Juros de Longo Prazo. Ou seja, o BNDES precisa devolver o dinheiro ao Tesouro pagando como taxa de juros a TJLP. Há aqui o que chamamos de subsídio implícito, ou seja, a diferença entre a taxa Selic e a TJLP. Este subsídio não entra em lugar nenhuma da contabilidade pública. Este gasto somente vai ser contabilizado na dívida pública quando o BNDES pagar o empréstimo, e este sempre pode ser rolado. Trata-se de um esqueleto escondido no armário do BNDES. No gráfico abaixo, podemos ver a diferença entre a taxa Selic e a TJLP no período em que o PSI existiu:

3. O BNDES financia o tomador do empréstimo a uma taxa subsidiada, menor que a TJLP. Essa diferença entre a TJLP e a taxa do empréstimo é chamado de subsídio explícito, para o qual o Tesouro tem autorização para devolver a diferença (chamada de “equalização”) para o BNDES. Este é um gasto primário, e deve ser previsto no orçamento público.

Este primeiro relatório produzido pelo Tesouro mostra o tamanho da conta. Entre 2008 e 2015, os subsídios explícitos somaram a bagatela de R$ 36,8 bilhões, ou R$ 4,5 bilhões/ano. Até aí não parece muita coisa. O problema é a previsão dos subsídios explícitos e implícitos APÓS 2015. Sim, porque os contratos com o BNDES vão até 2060! Até lá, trazendo a valor presente os subsídios, a conta soma nada menos do que R$ 200 bilhões!!! Este é o valor a ser gasto para emprestar R$ 450 bilhões a juros camaradas no âmbito do PSI.

Apenas como curiosidade, segue a lista das dez maiores empresas ou empreendimentos que receberam financiamentos do BNDES entre 2007 e 2015 (a fonte está aqui).

Podemos verificar que a Petrobrás obteve nada menos que 18% do total dos empréstimos neste período. Dedicaremos um episódio inteiro à empresa. Podemos notar a presença de várias “campeãs nacionais”, como Embraer, Vale, Odebrecht, Oi e JBS, em uma política de fomento que pretendia criar “multinacionais brasileiras”, com resultados muitas vezes duvidosos. E a Caixa Econômica aparece na lista como repassadora de recursos para o financiamento de projetos de mobilidade e de construção de estádios para a Copa do Mundo.

Qual foi o racional para estabelecer um programa desse tipo? A ideia é que, ao fomentar setores escolhidos, teríamos um boom de crescimento que faria aumentar a arrecadação, tornando bem tranquilo o pagamento desses subsídios ao longo dos anos.

O problema desse tipo de raciocínio está na figura da bicicleta: para manter a bicicleta em pé, é necessário estar sempre pedalando. Usando um pouco de teoria dos jogos, não se trata de um jogo de uma rodada só. O custo do dinheiro para as empresas não pode ser baixo somente na primeira rodada, é preciso que seja sempre, caso contrário vão parar de investir na segunda rodada pelo mesmo motivo que não investiriam na primeira rodada. Não à toa, como vimos no gráfico acima, os recursos para o PSI precisavam sempre crescer, ano após ano.

Só que essa máquina de imprimir dinheiro barato tem um limite, que é justamente o limite de quem financia a festa: o comprador do título público. Quando este nota que tem algo errado na dívida pública, começa a pedir taxas de juros mais altas, aumentando o subsídio implícito do esquema, o que vai piorando a situação, até o momento em que o Tesouro não consegue mais pedalar. Então, a bicicleta cai, como aconteceu em 2015.

E o que aconteceu com o crescimento que deveria ser o resultado deste esquema? Em um relatório de efetividade produzido pelo próprio BNDES em 2015, chega-se à conclusão de que as empresas investiram mais do que se não houvesse o PSI. Isso é o óbvio, só faltava terem investido menos. A questão é entender como estes empréstimos elevaram o crescimento potencial do país, o que está longe de estar provado. Aliás, a julgar pelo crescimento do país após 2016, não houve efeito algum. Descobriu-se que crescimento econômico não é só uma questão de dinheiro barato financiado com dívida pública. Este é só UM dos problemas a serem resolvidos, e não é concedendo-se subsídio que se resolve. É preciso ter segurança das regras, dos contratos, um bom sistema judicial, pouca burocracia, infraestrutura adequada e uma longa lista de etceteras. Não, o crescimento não é uma questão de vontade política, como o governo do PT descobriu.

Esta aventura nos custou R$ 200 bilhões. Aprendemos alguma coisa?

O Sonho Acabou

O que é uma recessão? Recessão é o crescimento econômico negativo. Para entender o que significa isso, precisamos entender o que é crescimento econômico.

Quando falamos de crescimento, estamos comparando o PIB de um ano contra o PIB do ano anterior. O PIB é a soma de todos os produtos e serviços feitos em um país em um determinado ano. O IBGE tem um exemplo bem didático, que ajuda a entender como é calculado o PIB.

Considere a fabricação do pão. De forma bem simplificada, para fabricar o pão é preciso plantar o trigo, fazer a farinha e, finalmente, fazer o pão. Digamos que o agricultor venda o seu trigo para o moinho por R$ 100, o moinho venda a farinha para o padeiro por R$ 200 e o padeiro consiga fabricar 100 pães e venda esses pães para as famílias por R$ 300 (R$ 3 por pão). Em cada etapa, o lucro foi de R$ 100: o agricultor ganhou R$ 100 (considerando, de maneira bem simplista, que ele tenha tido custo zero de produção), o moinho lucrou mais R$ 100 e, finalmente, o padeiro lucrou outros R$ 100. O PIB é a soma de todos esses lucros (ou “valores agregados”). No final, o PIB foi de R$ 300, que foi o preço pago pela família.

Em uma recessão, temos não a criação de valor, mas a destruição de valor. Digamos que, no ano seguinte, o padeiro tenha conseguido vender apenas 90 pães pelo mesmo preço, faturando R$ 270. O PIB, neste caso, teria caído 10%. Sempre que uma empresa produz e vende menos do que no período anterior, sua contribuição para o PIB é negativa. Assim como, se uma empresa “queima” dinheiro em empreendimentos que não produzem lucro, sua contribuição para o PIB é negativa. A grande recessão de 2014-2016, a maior em mais de um século, foi fruto de uma queima sem precedentes de recursos em projetos megalomaníacos por parte do governo, combinada com a queda de confiança da iniciativa privada frente à instabilidade econômica e política do 2º mandato de Dilma Rousseff. A interrupção de obras por todo o país em função dos efeitos da operação Lava-Jato pode ser debitada nesta conta. Para os que acham um exagero chamar a recessão da Nova Matriz Econômica como a maior em mais de um século, temos o gráfico a seguir, em que mostramos, em cada ano, o crescimento do PIB acumulado naquele ano e no ano anterior:

Observe como o PIB recua mais de 5% no biênio 2015-2016, queda maior do que a vivida pelo país durante a Grande Depressão do início da década de 30 do século passado.

Há uma narrativa de que o crescimento econômico começou a declinar fortemente por conta da paralisação que tomou conta do país em função da operação Lava-Jato. Trata-se de uma falsa correlação. Sim, claro, a paralisação de obras cobra o seu preço no PIB, sem dúvida. Mas está longe, muito longe, de explicar toda a profunda recessão que o Brasil enfrentou no biênio 2015-16. Primeiramente, vamos observar a evolução da confiança dos empresários. Como sabemos, se os empresários não estão confiantes, não investirão e o PIB tende a sofrer. No gráfico abaixo, números acima de 100 indicam que há mais empresários avaliando a situação como positiva do que empresários avaliando a situação como negativa, e vice-versa.

Note que a confiança dos empresários (da indústria, do comércio e dos serviços) começa uma lenta mas segura tendência de queda desde 2010. Ou seja, já desde o último ano do governo Lula e durante todo o primeiro mandato de Dilma, a confiança dos empresários começou a declinar, mas ainda permanecendo acima de 100. A partir de 2014, no entanto, o instinto animal dos empresários sente que algo não vai bem. A confiança despenca desde o início daquele ano, e continua em sua queda livre até o final de 2015, iniciando sua recuperação apenas depois do impeachment. Note que o início das denúncias da Lava-Jato ocorre no final de 2014 e as empreiteiras começam a paralisar obras somente a partir de meados de 2015, quando a confiança do empresariado, de maneira geral, já está na lona. Se tomarmos a confiança dos empresários como uma medida que nos dá uma ideia do PIB futuro, podemos concluir que a Lava-Jato pouco tem a ver com este fenômeno.

Vamos analisar de outra forma. O gráfico a seguir mostra o acréscimo ou a perda do PIB medido em reais (valores já deflacionados pela inflação do período).

Podemos observar que, no ponto pior da recessão, o PIB encolheu R$ 400 bilhões em um ano. Segundo reportagem do Estadão de junho de 2017, havia R$ 90 bilhões de obras paradas, que eram tocadas por empreiteiras envolvidas na Lava-Jato.

Uma obra parada não necessariamente subtrai do PIB. O PIB diminui quando o dinheiro já investido naquela obra parada é eliminado do balanço da empresa, como se a obra não valesse nada. Normalmente não é isso o que acontece. A obra é contabilizada por algum valor, até para que possa ser vendida. Ou seja, o valor é menor (há um prejuízo que subtrai do PIB), mas não é zero. Mas digamos que, por hipótese, todas essas obras tenham sido marcadas a zero, ou seja, todo o dinheiro investido tenha virado pó. Neste caso, a Lava-Jato teria subtraído R$ 90 bilhões do PIB. E os restantes R$ 310 bilhões? Pode haver um efeito multiplicador na economia (uma obra parada acaba tendo impacto negativo sobre outras atividades), mas é preciso muito efeito multiplicador para explicar R$ 400 bilhões.

Outra narrativa frequentemente usada para a grande recessão foi a chamada “virada fiscalista” liderada pelo ministro Joaquim Levy a partir de 2015. Esta virada teria consistido em um corte brutal de despesas, em uma política de austeridade que teria afundado a atividade econômica, a qual já vinha cambaleante desde 2014. Vejamos, então, no gráfico abaixo, se houve realmente este corte de despesas.

Podemos observar que não houve corte real (acima da inflação) de despesas até agosto, quando já estávamos afundados na recessão. Pode-se até argumentar que, em uma situação de queda de PIB, o governo teria que agir contra ciclicamente, aumentando as despesas. Esta falta de despesas públicas teria piorado uma situação que já era ruim. O problema desse roteiro está justamente em sua protagonista.

Se tivesse havido uma mudança de presidente da República, a ideia de um “arrocho fiscal” seria muito mais verossímil. O problema é que a mesma pessoa que havia dito que “despesa é vida”, de repente torna-se a campeã do contingenciamento de despesas. Para que esta virada de personalidade fosse verossímil, seria necessário que houvesse um acontecimento de grande impacto, que fizesse a personagem mudar a sua própria natureza. Um roteiro sem esse grande acontecimento seria ininteligível.

Este grande acontecimento foi justamente a queda das receitas causada pela recessão que já havia começado em 2014 e a constatação de que estávamos caminhando para uma grande dificuldade de rolagem da dívida. Ao convocar Joaquim “mãos-de-tesoura” Levy para comandar o ministério da Fazenda, Dilma Rousseff como que abandonou a sua personalidade anterior para assumir uma nova. E foi levada a isso por circunstâncias incontornáveis, acima de sua capacidade de inventar uma realidade paralela.

O problema desse roteiro é explicar por que as receitas vinham caindo, o que obrigou o governo a também cortar despesas. Vínhamos de um período (até 2014, como vimos anteriormente) de gigantescos investimentos alavancados pelo BNDES e pela Petrobrás. Por que raios a atividade começou a recuar? Por que a confiança dos empresários começou a declinar? Onde exatamente o modelo anterior falhou? A prova de que falhou é justamente o início da desaceleração da economia a partir de 2014, apesar de todos os estímulos dados nos anos anteriores. Esta desaceleração antecedeu a desaceleração das despesas patrocinada por Joaquim Levy, que assim agiu porque Dilma Rousseff viu que não havia outra maneira de manter um mínimo de sanidade das contas públicas.

Portanto, culpar a desaceleração das despesas pela grande recessão de 2015-16 é fazer o rabo abanar o cachorro. As despesas foram desaceleradas (nem cortadas foram, apenas se mantiveram estáveis) porque a política anterior causou uma desaceleração anterior das receitas. A pergunta correta a se fazer é: por que, afinal, a política anterior causou a desaceleração das receitas? Culpar o remédio por ter causado a doença não parece ter lógica.

Assim, a Grande Recessão precisa encontrar explicação além da Lava-Jato e do “arrocho” de Joaquim Levy. Pode até ser que estes dois eventos tenham piorado a situação, mas não foram a sua causa principal, até por uma questão, como vimos, de coerência temporal entre os acontecimentos. Se fosse o roteiro de um filme, seria um péssimo roteiro, daquele cheio de pontas soltas, e que tornam o filme ininteligível.

A recessão que se iniciou em 2014 deve ter seus efeitos buscados antes de 2014, não depois. Uma recessão pode ser causada basicamente por três motivos:

  1. Um aperto monetário (elevação das taxas de juros): neste caso, os consumidores postergam o seu consumo e os empresários postergam os seus investimentos;
  2. Um aperto fiscal (corte de despesas governamentais)
  3. Um choque negativo na economia, que faz com que os consumidores e os empresários se retraiam: pode ser uma guerra, uma pandemia ou algum choque de confiança.

Vimos que nada disso ocorreu, pelo menos não na magnitude que justificasse a maior recessão da história brasileira. A única explicação coerente e verossímil é mais simples: o efeito anabolizante terminou, e tivemos que pagar a conta.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

Mais um mecanismo de concentração de renda

Gosto de ler os artigos de Eugênio Bucci. Normalmente saio deles com os argumentos para defender as ideias justo opostas às defendidas pelo professor da ECA-USP. Não foi diferente desta vez. O assunto de hoje é a cobrança de mensalidades nas universidades públicas, especificamente as estaduais paulistas, onde ele ganha parte do seu sustento.

Para surpresa de zero pessoas, o articulista defende a gratuidade total dessas universidades. Fui ler o artigo de coração aberto, com o objetivo sincero de garimpar pelo menos um argumento que fizesse sentido. Saí, como é usual nos artigos de Bucci, de mãos vazias. Vejamos.

O primeiro argumento é conhecido: a universidade, com as leis de cotas, está deixando de ser elitista. Segundo Bucci, nada menos que 51,7% dos alunos matriculados neste ano vieram de escolas públicas. Ora, compreendo que o articulista, sendo de humanas, possa ter alguma dificuldade em fazer essa conta, mas isso significa que 48,3% dos alunos ainda vêm de escolas particulares. Portanto, uma parcela relevante do corpo discente seria elegível, segundo o critério do próprio articulista, a pagar alguma mensalidade.

O segundo argumento é mais sociológico. Refere-se a uma teórica “segregação” entre alunos pagantes e não pagantes dentro da universidade. Em primeiro lugar, essa potencial segregação é somente uma teoria, carece de comprovação empírica (e não faltam exemplos de faculdades privadas com bolsas integrais, que poderiam ser usadas como “campo de prova” da teoria). Em segundo lugar, o argumento da segregação poderia ser usado contra o próprio sistema de cotas. Afinal, há, hoje, duas portas de entrada na universidade pública, uma para alunos de escolas públicas e outra para alunos de escolas privadas. A “segregação” já está posta, e se vale para o pagamento de mensalidades, vale também para as cotas.

O terceiro argumento, na verdade, já é, em si, um contra-argumento. O articulista menciona que universidades públicas podem sim cobrar mensalidades, e cita exemplos dos EUA. Obrigado, Bucci, por nos lembrar disso.

O quarto argumento está no objetivo da cobrança. Segundo o articulista, cobrar mensalidades ”não vai resolver nada”. O custo da pesquisa acadêmica é tão alto, que a cobrança de mensalidades se torna irrelevante. Por isso, segundo Bucci, as “escolas mais renomadas” estão caminhando para um modelo “tuition free” e buscando outras fontes de receitas. Este é o típico argumento “tudo ou nada”: se as mensalidades não podem pagar tudo, então que não se cobre nada. Trata-se de um argumento falacioso, que ignora como os problemas são resolvidos na vida real. Não existem “balas de prata”, o que existe são pequenos progressos em direção à solução, e a cobrança de mensalidades de quem pode pagar é só um deles.

Engatando no argumento anterior, Bucci cita o exemplo do MIT, que estaria caminhando, em algumas de suas faculdades, para o modelo de ”tuition free”.

Bem, existe um detalhe nada irrelevante aqui: a fonte principal de recursos do MIT é o seu endowment de 27 bilhões de dólares. Considerando uma retirada de 3% ao ano, que é uma estimativa conservadora para o rendimento real estimado de longo prazo nos EUA, temos cerca de 800 milhões de dólares por ano para sustento da universidade. Isso significa mais de 4 bilhões de reais ao câmbio de hoje. Para comparação, o orçamento anual da USP é de 7,5 bilhões de reais. Portanto, o funding para bolsas é fundamentalmente privado, não público, ainda que possa haver fundos públicos para financiar pesquisas específicas. Portanto, usar o MIT como exemplo de como a USP deveria continuar sendo gratuita para todos com funding público só pode ser desinformação ou má-fé.

Todos esses argumentos servem para esconder a iniquidade da gratuidade universal. Bucci fala como se o funding para manter a universidade fosse uma espécie de dádiva divina. Não. O “endowment” das universidades públicas é formado por “doações compulsórias”, também conhecidas como impostos. Funciona assim: toda vez que um pobre compra um quilo de arroz no supermercado do bairro, uma parte desse dinheiro vai para o “endowment” que paga 100% dos tuitions de alunos que fizeram escolas particulares e que poderiam pagar pela sua educação superior. Este é mais um entre tantos mecanismos de concentração de renda no país. Que seja defendido com unhas e dentes por campeões morais como Eugênio Bucci, para quem a renda a ser distribuída é sempre a dos outros, é só mais um sinal de que a agenda de redistribuição de renda no país tem um longo caminho a percorrer.

Página da problematização

Hoje fui apresentado ao termo “positividade tóxica”. Seria mais ou menos como desfilar o seu otimismo e alto astral diante de um povo que só faz sofrer.

Fiquei preocupado. Que outras atitudes estariam, de alguma forma, microagredindo as pessoas? Com o objetivo de prestar um serviço de utilidade pública, resolvi então criar esta PÁGINA DA PROBLEMATIZAÇÃO.

Na PÁGINA DA PROBLEMATIZAÇÃO vocês poderão checar se determinadas palavras são adequadas ou se, por outro lado, podem, de alguma maneira que nos passa despercebida, significar uma ofensa a uma minoria ou classe social.

Como vai funcionar? Muito fácil. Você posta uma frase nos comentários, e eu respondo com a problematização. Pode ser qualquer frase. Veja alguns exemplos:

Sua frase: Bom dia!

Minha resposta: Só pode ser um bom dia pra você, que pertence a uma elite privilegiada.

Sua frase: Gosto de macarrão.

Minha resposta: Sim, entendi o seu preconceito contra alimentos de matriz africana.

Sua frase: Minha avó usa dentadura.

Minha resposta: Muito triste você humilhar quem não pode comer direito porque não tem o privilégio de poder comprar uma dentadura.

Acho que deu para entender. Fica aqui, então, o convite para conhecer e usar esta PÁGINA DA PROBLEMATIZAÇÃO. A área de comentários está de portas abertas para as frases microagressoras dos amigos.

O quadro desolador do Estado de Bem-Estar brasileiro

Estou lendo Contas Públicas no Brasil, um livro organizado por Felipe Salto e Josué Pellegrini, com artigos escritos pelos maiores especialistas em políticas públicas no Brasil.

O capítulo sobre benefícios sociais, escrito por Pedro Jucá Maciel e Guilherme Ceccato, é muito esclarecedor, para não dizer estarrecedor.

Em primeiro lugar, os autores medem o tamanho dos “gastos sociais” no Brasil, incluindo,transferências diretas às famílias (aposentadorias, BPC, bolsa família etc) e gastos diretos com com saúde, educação, cultura e saneamento, incluindo os funcionários públicos dessas áreas. Em 2018, de todas as despesas do governo central, cerca de 70% foram para as rubricas de “gastos sociais”. Ou seja, cerca de 30% das despesas são queimadas para sustentar a própria máquina governamental.

Em seguida, os autores fazem uma comparação internacional a respeito da efetividade do governo na função de distribuir renda, tanto do lado da tributação (distribuição justa da carga tributária) como das transferências diretas do governo para a população (aposentadorias, seguro desemprego, BPC, bolsa família etc). Essa efetividade é medida pela melhora do índice de Gini após a tributação/distribuição. O índice de Gini, como sabemos, mede a desigualdade de renda: quanto mais próximo de 1, mais desigual é a distribuição, quanto mais próximo de zero, menos desigualdade temos.

O Brasil, antes dos impostos, tem Gini de 0,58 (dados de 2017). A média dos países da OCDE é de 0,47. Os autores atribuem essa diferença ao grau de acesso à boa educação, que já separa no berço ricos e pobres. Os mais pobres nos países da OCDE teriam acesso à educação mais semelhante aos mais ricos, explicando a diferença inicial. Até aqui, nenhuma novidade.

O interessante vem agora. Depois da cobrança de impostos e das transferências governamentais, o Gini médio dos países da OCDE cai para 0,31, enquanto o Gini do Brasil cai para 0,47. Ou seja, os países da OCDE conseguem reduzir seu Gini em 0,16, ao passo que o Brasil reduz o seu Gini em apenas 0,11. Isso acontece mesmo ajustando-se pelo tamanho da carga tributária de cada país. Em outras palavras, o estado brasileiro é menos eficiente do que a média da OCDE na sua função redistributiva.

Os autores dão alguns exemplos que ajudam a entender o problema. Por exemplo, o imposto sobre o consumo, que tributa horizontalmente, é maior no Brasil do que nos países da OCDE, ao passo que o imposto sobre a renda, que é progressivo, tem aqui as menores alíquotas, além de contar com muitas isenções. Outro exemplo: de todas as transferências diretas, 30% vão para os 10% mais pobres, enquanto na média dos países da OCDE, este número é de 70%. Isso acontece por conta dos benefícios da previdência, que tem regras generosas para os trabalhadores formais, deixando os informais dependendo de transferências menores, como bolsa família e BPC.

Enfim, a desigualdade brasileira é uma realidade irrefutável. Claro que o crescimento econômico é desejável e mitigaria o problema da pobreza, mas há muito o que se fazer também em termos de redistribuição sem necessariamente aumentar a carga tributária. O problema, como sempre, é mexer na renda do “andar de cima”, em que nos incluímos todos os que frequentam essa página. Apontar o dedo para ”os políticos” ou “para as corporações de funcionários públicos” é fácil. Difícil é aceitar receber menos aposentadoria ou pagar mais imposto de renda.

PS.: Reconheço que não é nada animador topar pagar mais imposto para um estado como o brasileiro. Trata-se de um bom motivo para manter o status quo.

A economia brasileira na era PT. Episódio 3: Faz de conta que acredito em suas boas intenções

Política monetária é aquela que se refere à administração da moeda no mercado doméstico, enquanto a política cambial trata da administração da moeda no mercado externo. A primeira procura manter a inflação controlada, enquanto a segunda procura manter o equilíbrio no balanço de pagamentos. Há vasos comunicantes entre as duas políticas, porque, afinal, trata-se sempre da mesma moeda.

O governo Lula herdou do governo FHC o tripé macroeconômico: metas de inflação, câmbio flutuante e superávits primários. As duas primeiras pernas desse tripé referem-se às políticas monetária e cambial, enquanto a terceira refere-se à política fiscal, abordada no episódio anterior.

As políticas monetária e cambial, por tratar-se do controle da moeda, são atribuição do Banco Central, enquanto a política fiscal é atribuição direta do governo. Nem sempre foi assim, mas essa independência operacional do BC ganhou força durante o governo FHC e, como veremos, foi respeitada durante a fase da Grande Ilusão, que coincidiu, em grande parte, com a liderança de Henrique Meirelles à frente do BC. A coisa começa a degringolar nos Anos da Húbris, com alguns sinais já no final do governo Lula, mas atingindo o apogeu da deterioração durante o governo Dilma e seu fiel escudeiro no BC, Alexandre Tombini.

A Política Monetária

Antes de começarmos, precisamos explicar brevemente como funciona o sistema de metas de inflação. Nesse sistema, a meta serve como uma âncora de longo prazo para os agentes econômicos. Na falta de qualquer outra informação, os agentes econômicos olham para o futuro e preveem que a inflação estará em torno da meta, se o Banco Central tiver credibilidade. Este “se” é de extrema importância. Se o Banco Central cria uma fama de “leniente” com a inflação, os agentes econômicos começam a duvidar que a meta será cumprida e, consequentemente, começam a prever uma inflação no futuro acima da meta. Isso tem importância no momento de precificar taxas de juros, por exemplo: os bancos procuram “prever” a inflação futura para estabelecer as taxas de juros do crédito. Além disso, outros agentes econômicos, como empresas e até pessoas físicas, começam a querer se proteger antecipadamente de uma inflação mais alta no futuro, o que leva a uma elevação da inflação já no presente. Por isso, nesse sistema, é de grande importância que o Banco Central tenha credibilidade, ou seja, que os agentes econômicos acreditem que a autoridade monetária irá perseguir a meta de inflação ao longo do tempo.

Para que o Banco Central cumpra a sua missão, é fundamental que reaja de maneira coerente às ameaças inflacionárias, aumentando ou diminuindo os juros quando necessário, e que se comunique de maneira coerente com o mercado de taxas de juros, de modo a coordenar as expectativas dos agentes econômicos. No sistema de metas de inflação, esse conjunto de atividades do Banco Central (determinação da taxa básica de juros e comunicação com o mercado) determina o seu sucesso ou fracasso em sua missão de controlar a inflação ao longo do tempo.

Nesse sentido, o governo Lula começou com o pé direito, indicando para o Banco Central um executivo com grande credibilidade junto ao mercado financeiro, o ex-presidente do Bank Boston, Henrique Meirelles. E Meirelles, consciente do seu desafio de construir credibilidade em um mar de desconfianças, começou seguindo a receita do governo FHC: juros altos para manter a inflação sob controle. Em várias ocasiões, o BC de Henrique Meirelles mostrou ser conservador, surpreendendo o mercado e enfurecendo o setor produtivo. Por exemplo, no COPOM de 18/junho/2003, depois de ter elevado a taxa Selic de 25% até 26,50% desde o início do ano, o BC decidiu cortar a taxa Selic em apenas 0,50%. A reação foi a seguinte:

No Copom seguinte, em 23/julho/2003, a Selic foi reduzida novamente, desta vez em 1,50%, mas a reação foi a mesma:

No Copom de 21/janeiro/2004, o BC surpreende novamente o mercado, que esperava novo corte de juros, decidindo pela sua manutenção:

Esta será uma constante em praticamente todo o mandato de Henrique Meirelles à frente do BC. Em 18/setembro/2005, o próprio Armínio Fraga, presidente do BC no 2º mandato de FHC e introdutor do sistema de metas de inflação no Brasil, reconheceu a austeridade do BC de Henrique Meirelles:

O resultado foi a redução da inflação para níveis compatíveis com a meta, conforme podemos observar no gráfico abaixo, que mostra a inflação (medida pelo IPCA, em azul), e a meta (em laranja). Observe como a inflação, depois de uma grande volatilidade no início do governo Lula (muito em função da desvalorização cambial causada pelo próprio receio do mercado com relação à sua eleição), convergiu para a meta, principalmente a partir de 2006.

No entanto, estávamos no fim da fase da Grande Ilusão também na política monetária. No final de seu mandato, até Meirelles se rendeu à lógica eleitoral, e interrompeu um ciclo de alta de juros que havia sido iniciado em abril de 2010. Após apenas 3 altas, o BC deu por encerrado o ciclo, mesmo com as expectativas de inflação ainda subindo, em meio a uma forte recuperação da atividade econômica naquele ano.

Os analistas estavam corretos. No primeiro Copom do governo Dilma, o novo presidente do BC, Alexandre Tombini, precisou retomar a alta dos juros. Foi a primeira vez, desde o início do sistema de metas de inflação, que um ciclo de alta precisou ser retomado após uma breve pausa. A segunda vez seria em 2014, quando o ciclo de alta foi interrompido em abril para ser retomado na semana seguinte do 2º turno das eleições. O fato de ser também um ano eleitoral não é mera coincidência.

O BC, então, recomeça o processo de elevação dos juros. No entanto, na reunião de agosto de 2011, Tombini começa a virada que marcará, daí em diante, a sua atuação frente ao Banco Central. Surpreendendo o mercado, e sem respaldo nas expectativas de inflação, que continuavam a subir, o BC decide dar um cavalo-de-pau e reduzir as taxas de juros:

Esta foi a primeira (e, até o momento, única) vez em que o BC iniciava um ciclo de queda de juros sem que o ciclo de alta anterior tivesse tempo para fazer o seu efeito. A justificativa foi uma virada no cenário externo (na época, a situação na Europa estava realmente se deteriorando), que provocaria uma recessão global e afetaria negativamente o crescimento brasileiro e, por tabela, reduziria a inflação. Além disso, apostava-se na “austeridade” do governo Dilma. Sem dúvida, uma aposta e tanto!

De fato, a inflação saiu de 7,23% no mês de agosto de 2011, até atingir 4,92% em junho de 2012, respondendo ao aperto monetário feito até junho de 2011. Em outubro de 2012, quando a taxa Selic atingiu a mínima histórica de 7,25%, a inflação já havia subido para 5,45%, e estava em processo firme de alta. Lembrando sempre que a meta era de 4,50%. Foi então que começou a se cristalizar no mercado a convicção de que o Banco Central estava, na realidade, trabalhando com uma espécie de “meta paralela” de inflação. A meta oficial era de 4,50%, mas o mercado começou a desconfiar que o BC estava perseguindo algo entre 5,50% e 6,50%, que era o topo da meta. A exemplo de outras áreas do governo Dilma, o BC estaria “jogando com as regras debaixo do braço”, trabalhando no limite de seu mandato e não para atingir a meta oficial.

Essa desconfiança tinha a sua razão de ser. Vejamos o gráfico a seguir:

Observe como, durante os 4 anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff (quadro pontilhado vermelho), a inflação nunca ficou abaixo da meta de 4,5%, mas ficou sempre orbitando em torno de 5,5%, o que, com o tempo, foi minando a confiança do mercado.

Mas essa falta de credibilidade do BC foi um trabalho a quatro mãos. Não somente a postura ambígua do BC começou a chamar a atenção do mercado, mas o próprio discurso intervencionista do governo contribuiu para aumentar a desconfiança. A esse respeito, é precisa a descrição da jornalista Claudia Safatle, do Valor Econômico, ao comentar a decisão do Copom de 06/03/2013, em que a diretoria do BC sinaliza que deverá iniciar um ciclo de alta dos juros na reunião seguinte, apenas 6 meses após ter encerrado o ciclo de baixa anterior:

O resultado, como vimos, foi uma inflação constantemente mais alta do que a meta ao longo do tempo, com um estouro da boiada em 2015, pós-eleição, quando os preços administrados foram liberados. Aliás, controle de preços de combustíveis e energia elétrica faziam parte da “maquiagem” da inflação. Era como usar a Petrobras e a Eletrobras para fazer política monetária. Com o fim dessa política, a inflação rapidamente chegou a 10% no final de 2015.

Alguns poderão dizer que estamos novamente com uma inflação de dois dígitos, então este BC é tão leniente quanto o da época do PT. No entanto, é preciso contextualizar e, para isso, ser-nos-á útil comparar a inflação brasileira com a inflação global. É o que fazemos no próximo gráfico:

Note como, a partir de 2011, primeiro de maneira lenta, e depois mais rapidamente, a inflação brasileira vai se descolando da inflação global, até atingir uma diferença de quase 8 pontos percentuais em 2015 (barras verdes). Agora em 2021, com o mesmo nível de inflação de 2015, a diferença para a inflação global é menor que 4 pontos percentuais. Ou seja, hoje, a inflação brasileira tem um componente global muito maior do que em 2015, quando a inflação foi essencialmente fruto da barbeiragem local.

Para finalizar, uma palavra sobre a postura intervencionista do governo Dilma nas taxas de juros, que, de resto, foi a sua marca registrada em praticamente todas as áreas da economia. O ponto alto, sem dúvida, foi o discurso da presidente por ocasião do Dia do Trabalho de 2012:

O governo Dilma já vinha usando o Banco do Brasil e a Caixa Econômica para “reduzir” as taxas de juros, mais ou menos a mesma coisa que vinha fazendo com a Petrobras para “reduzir” os preços dos combustíveis e como faria, no final deste mesmo ano, com a Eletrobras para “reduzir” os preços da energia elétrica. Ficou até famosa a campanha publicitária do Banco do Brasil, “Bom Pra Todos”, em que anunciava os juros mais baixos:

O problema, como sempre, foi a realidade. O gráfico a seguir mostra os spreads de crédito do sistema financeiro, já contando com Banco do Brasil e Caixa, para pessoas físicas e jurídicas:

Em maio de 2012, quando Dilma fez o seu incendiário discurso demonizando os bancos, o spread de crédito (quanto os bancos cobram acima da taxa básica de juros) para as pessoas físicas e jurídicas era de 26,0% e 9,6% respectivamente. A partir de então, os spreads até recuaram um pouco, mas em abril de 2016, quatro anos depois e no mês de seu impeachment, esses mesmos spreads estavam em 36,2% e 9,6% respectivamente. Ou seja, os spreads para a pessoa física haviam aumentado em 10 pontos percentuais, enquanto para a pessoa jurídica estavam no mesmo lugar, não haviam recuado.

Em maio de 2012, quando Dilma fez o seu incendiário discurso demonizando os bancos, o spread de crédito (quanto os bancos cobram acima da taxa básica de juros) para as pessoas físicas e jurídicas era de 26,0% e 9,6% respectivamente. A partir de então, os spreads até recuaram um pouco, mas em abril de 2016, quatro anos depois e no mês de seu impeachment, esses mesmos spreads estavam em 36,2% e 9,6% respectivamente. Ou seja, os spreads para a pessoa física haviam aumentado em 10 pontos percentuais, enquanto para a pessoa jurídica estavam no mesmo lugar, não haviam recuado.

Aprendemos (aprendemos?) que não são discursos contundentes ou o uso de bancos estatais que resolvem o problema dos juros altos. Aliás, este tipo de intervencionismo normalmente tem o efeito justo inverso: aumenta o risco percebido pelo sistema, que coloca prêmios de risco maiores nas taxas de juros para se protegerem de eventuais intervenções ou mudanças de regras de jogo no futuro.

A Política Cambial

Lula iniciou seu governo em uma situação realmente delicada, em parte criada pela própria expectativa de sua eleição, o que piorou algo que já não era bom. No gráfico abaixo, podemos observar o valor do dólar, ajustado pelo diferencial de inflação entre Brasil e EUA. Ou seja, o nível real do dólar, já descontado o efeito da inflação, o que nos dá o real poder de compra da moeda brasileira em relação ao dólar ao longo do tempo.

Observemos que Lula iniciou seu governo com o dólar próximo de R$ 7,00 a valores de hoje. Logo nos primeiros meses de seu governo, a moeda voltou para o nível de R$ 5,50, mesmo nível da segunda metade do governo FHC e, a partir de meados de 2004, engatou um processo de valorização que iria se reverter apenas brevemente durante a crise financeira de 2008 e encerrar-se em meados de 2011, com o dólar batendo R$ 2,50 em dinheiro de hoje.

Mas este foi um período de grande desvalorização do dólar globalmente. No gráfico a seguir, podemos verificar que o Real não se valorizou sozinho. Escolhemos o período que se inicia em 30/04/2003 para expurgar o overshooting pré-eleição, até o ponto de mínimo, em 31/07/2011.

Observemos que o Real foi a moeda que mais se valorizou, mas não foi a única. De modo que uma parte desta valorização foi, de fato, mérito do governo Lula, mas outra parte foi devido a um movimento global que favoreceu as moedas de países exportadores de commodities e até moedas de países mais desenvolvidos, como Franco Suíço e Iene.

Esta grande valorização do real foi firmemente combatida pelo ministro Guido Mantega, que até cunhou uma expressão para se referir a este movimento: “guerra cambial”. O jornal britânico Financial Times, nesta reportagem, foi o primeiro a chamar a atenção para este termo:

Segundo o ministro brasileiro, após a crise financeira de 2008, os países desenvolvidos, liderados pelos EUA, estariam depreciando propositalmente as suas moedas, através de estímulos monetários gigantescos. Estes estímulos monetários (que significam taxas de juros menores), acabaram, segundo Mantega, por afastar investidores destes países, que passaram a procurar rendimentos maiores em países como o Brasil, que precisam praticar taxas de juros maiores para controlar a inflação. Mantega, no melhor estilo desenvolvimentista, passou a demonizar o real apreciado, colocando nele a culpa da nossa “falta de competitividade”.

Veremos que Mantega tinha razão no diagnóstico, ainda que sua narrativa de um complô dos países desenvolvidos careça de racionalidade. De fato, como veremos mais adiante quando abordarmos a formação das reservas internacionais, uma boa parte do fluxo de dólares foi de investimentos financeiros. O problema é que os países desenvolvidos estavam procurando combater uma grande recessão, e o único instrumento monetário disponível era trazer a taxa de juros para zero. A depreciação de suas moedas é apenas um efeito colateral, não o seu objetivo maior. Mas, a narrativa desenvolvimentista sempre envolve manipulação do câmbio, e com Mantega não é diferente.

É irônico que a expressão “Guerra Cambial” tenha ganhado destaque apenas dois dias antes da megacapitalização da Petrobrás, que atraiu nada menos que R$ 21 bilhões de investidores estrangeiros.

Ou seja, ao mesmo tempo que o governo, com uma mão, amaldiçoa o fluxo de recursos do exterior, com a outra procura avidamente estes mesmos recursos para financiar as suas atividades. É um pouco como, por um lado, demonizar os credores da dívida pública, e por outro, fazer déficits que aumentam essa mesma dívida. Mas, sigamos.

Será que Mantega tinha razão? Será que fomos vítimas de uma armação dos EUA para minar a competitividade da nossa indústria via câmbio?

Bem, se você perguntar para qualquer desenvolvimentista, o câmbio sempre estará pelo menos 20% mais apreciado do que deveria estar para “impulsionar” a indústria, qualquer que seja o nível da moeda. E se, por obra e graça da providência, o câmbio estiver no “lugar certo”, faltará a garantia de que ficará ali para sempre, o que, em um regime de câmbio flutuante, é obviamente impossível de se garantir. O câmbio é o preço de nossa moeda, e qualquer tentativa de se controlar preços é inócua, e pode até ser perigosa. Em nossa história econômica já vivemos muitas crises de balanço de pagamentos, justamente porque o câmbio foi “tabelado”, o que sempre acaba por redundar em escassez de moeda forte. O câmbio flutuante é uma benção, e desde a sua adoção, em 1999, não sabemos mais o que é crise de balanço de pagamentos. Ao contrário, por exemplo, de nossos vizinhos ao sul.

A reação do governo Lula foi a de tentar conter o fluxo de capital estrangeiro através de taxação e outras medidas que puniam o ingresso de recursos. A estreia dessa estratégia ocorreu em 20/10/2009, quando o governo estabeleceu uma alíquota de IOF de 2% sobre o investimento estrangeiro em renda fixa e bolsa.

Essa foi apenas a primeira de uma série de medidas que se sucederiam alucinadamente nos 4 anos seguintes, como podemos observar no gráfico a seguir (em vermelho temos as intervenções para fazer o dólar subir, enquanto em verde são as intervenções para fazer o dólar cair):

Estas intervenções são tão deletérias para o bom funcionamento do mercado cambial, que uma das principais exigências para a adesão à OCDE é justamente a eliminação de cobrança do IOF em operações neste mercado. O governo do PT, em linha com sua visão de mundo, usou e abusou desses instrumentos, com resultados pífios do ponto de vista da cotação da moeda que, como vimos, segue leis macroeconômicas próprias. É um pouco como a criança que pretende segurar as ondas do mar com suas mãozinhas.

Para terminar este episódio, vamos entender de onde vieram as reservas internacionais acumuladas durante o governo do PT, uma das grandes conquistas alardeadas pelo partido.

A construção das reservas internacionais

O acúmulo de reservas internacionais é um dos grandes legados do governo Lula. Este fato é cantado em verso e prosa toda vez que se acusa o governo do PT de ter sido um mal para a economia brasileira. De fato, trata-se de um seguro que nos dá o conforto de afastarmos a ameaça de uma crise de balanço de pagamentos, tão comum ao longo da história econômica brasileira. A falta de dólares sempre foi um fator de desestabilização. A manutenção de um sistema de câmbio quase fixo durante o primeiro mandato de FHC quase nos quebrou, exaurindo as poucas reservas que tínhamos. Tivemos que fazer um acordo com o FMI, acordo este que foi encerrado durante o primeiro governo Lula, fato que o ex-metalúrgico faz questão de lembrar com justificável orgulho.

No gráfico a seguir, podemos observar a evolução de nossas reservas (a parte hachurada cobre todo o período dos governos do PT):

Observe como as reservas começam a decolar em 2006 e principalmente em 2007, fazem uma pausa em 2008 e atingem o nível atual em 2012, já no governo Dilma. Portanto, o grosso das reservas atuais são construídas em 5 anos, entre 2007 e 2011, em grande parte na fase que chamo de Anos da Húbris.

Vamos entrar no detalhe de como essas reservas foram construídas. Para tanto, precisamos entender como os dólares são obtidos pelo governo brasileiro.

Como imprimimos reais e não dólares, é preciso que estrangeiros estejam dispostos a comprar os nossos reais com os seus dólares. Isso acontece, basicamente, através de dois canais: receitas correntes e investimentos financeiros.

As receitas correntes de um país (chamada de “conta corrente”) são formadas por três componentes: 1) a balança comercial (o comércio de mercadorias com outros países), 2) a balança de serviços (os serviços que consumimos e fornecemos para outros países) e 3) o pagamento de juros e dividendos.

Já o investimento financeiro é constituído de dois componentes: 1) o Investimento Estrangeiro Direto (chamaremos de IED daqui em diante) e 2) os investimentos em títulos (ações e renda fixa). Em primeiro lugar, vamos ver de onde vieram as reservas observando o comportamento da conta corrente e dos investimentos financeiros no gráfico a seguir:

Observe como os anos de 2007 a 2014 são caracterizados por um grande fluxo de investimentos financeiros (barras laranjas). O fluxo foi tão grande que mais que compensou o déficit em conta corrente até 2012 (barras azuis), fazendo com que sobrasse recursos. Esses recursos (bolinhas brancas) são as reservas. Portanto, o que permitiu construir as reservas foi o fluxo financeiro para o país, principalmente a partir de 2009.

Antes de continuarmos, vamos explorar esta distinção entre conta corrente e investimento financeiro. É importante entender essa diferença, porque nos diz sobre a permanência desses recursos no Brasil. No caso da conta corrente, o dinheiro que entra é nosso. Como foi fruto do comércio, vendemos mercadorias e o dinheiro passa a ser nosso, não precisamos devolvê-lo no futuro. Já o fluxo financeiro não é nosso. Trata-se de um dinheiro “emprestado”. No caso do IED, trata-se de um empréstimo de longo prazo, que será cobrado na forma de juros e dividendos ao longo dos anos, quando não pela venda do empreendimento e repatriação do dinheiro. Veremos adiante que a conta dos juros e dividendos não é pequena. Já o investimento em títulos (ações e renda fixa) pode ser resgatado a qualquer momento. Por isso, é preciso ter muito cuidado ao dizer que podemos usar as reservas para isso ou para aquilo. Na verdade, as reservas são nossas somente se a conta corrente é positiva. Como a nossa conta corrente é negativa, usamos uma parte do fluxo financeiro para pagar esses gastos. Portanto, estamos na verdade em débito. Se, de uma hora para outra, todos os investimentos estrangeiros resolvessem sair do país, não teríamos dólares para pagar a todos, pois usamos uma parte do dinheiro que entrou para pagar o nosso déficit em conta corrente. Por isso, é bom tratar bem os investidores estrangeiros. Vejamos, no gráfico abaixo, o detalhamento desse fluxo financeiro:

Podemos observar que grande parte desses recursos foram Investimentos Estrangeiros Diretos (barras laranjas), ou seja, recursos, em tese, de mais longo prazo para investimentos no país. Digo em tese, porque uma parcela desses recursos entrou como empréstimos intercompanhias, o que poderia ser interpretado como um simples fluxo financeiro. Também tivemos um grande fluxo para a compra de ações (barras amarelas), principalmente em 2007, 2009 e 2010, ano da megacapitalização da Petrobrás.

Por outro lado, a conta corrente brasileira foi negativa em grande parte desse período. Vejamos no gráfico a seguir:

Observe como a conta corrente torna-se positiva somente durante um breve período (de 2003 a 2006), passando a ficar novamente negativa a partir de 2008. O aumento do saldo da balança comercial (barra laranja) é o grande responsável pelo equilíbrio da conta corrente até 2007. A partir de 2010, a conta corrente torna-se bem mais negativa, principalmente porque a balança de serviços (“pobre viajando de avião”) e o pagamento de juros e dividendos começam a cobrar o seu preço. Em outras palavras, o crescimento da renda da população, que começa a demandar serviços do exterior, e o pagamento dos investimentos estrangeiros feitos no passado fazem com que a conta corrente torne-se bastante negativa. No entanto, ainda teríamos um bom fluxo de investimentos estrangeiros para cobrir essa conta, e as reservas permaneceram intactas.

Há, neste ponto, portanto, um grande equívoco, ao relacionar a ascensão da China como potência global, puxando o consumo de commodities, e a constituição das reservas. Sim, há um aumento do saldo positivo da balança comercial neste período. Mas vimos que o grande responsável pela constituição das reservas foi o fluxo financeiro (mais especificamente, o Investimento Estrangeiro Direto). Além disso, como podemos ver no gráfico abaixo, a China vai ganhar importância na balança comercial muitos anos depois da constituição das reservas.

Note que a participação das exportações para a China, de fato, sobe de praticamente zero até o ano 2000, para 5% em 2003, ficando neste patamar até 2007. Ou seja, neste período em que as exportações se elevam, a única região que ganha importância relativa é o Mercosul, que havia perdido muito nos anos anteriores. Na realidade, de maneira geral, as participações das diversas regiões se mantêm mais ou menos constantes durante todo esse período. A China vai ganhar relevância somente a partir do ano de 2009. Mas, como vimos, o saldo da balança comercial está longe de ser brilhante neste período.

Pode-se argumentar que, enquanto é verdade que a China cresce de maneira relevante como parceiro comercial somente após 2009, não é menos verdade que as nossas exportações alcançaram um novo patamar após a ascensão do PT ao poder. Este novo patamar pode ser visto no gráfico abaixo, que divide a balança comercial entre exportações e importações:

De fato, as exportações crescem de algo como US$ 50 bilhões até 2002 para quase US$ 200 bilhões em 2008, atingindo US$ 250 bilhões a partir de 2011. Esse salto permitiu aumentar igualmente as importações, o que significa uma maior abertura da economia brasileira ao mundo, o que costuma ser benéfico para o aumento da renda e da produtividade. É o que chamamos de corrente de comércio, a soma das exportações e importações.

Mas vamos analisar em detalhe a corrente de comércio brasileira no gráfico a seguir:

Quando medimos a corrente de comércio em percentual do PIB, como é a norma para a comparação da abertura comercial entre países, podemos observar que a nossa corrente de comércio cresce de 13% para 21% do PIB ainda no segundo mandato de FHC, e fica oscilando entre este patamar e 24% do PIB até a Grande Crise Financeira, quando cai para baixo de 20% do PIB, oscilando entre 17% e 20% do PIB até o fim do governo PT. Não há realmente nada de excepcional aqui. O aumento da corrente de comércio em dólar reflete o aumento do PIB em dólar, tanto pela valorização do real como pelo próprio crescimento do país neste período.

Portanto, não devemos buscar na soja ou no minério de ferro a explicação do grande montante de reservas internacionais acumulados nesse período. A reservas foram constituídas porque o governo Lula se mostrou confiável durante os anos da Grande Ilusão, a ponto de atrair investimentos estrangeiros, então abundantes no mundo. Tratava-se de um governo de esquerda com políticas macroeconômicas razoáveis, fazendo uma combinação irresistível para este investidor. Realmente uma pena que tenha sido somente uma Grande Ilusão.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada