Vem a público a discussão de uma PEC com o objetivo de instituir o Legislativo como casa revisora do Judiciário.
A justificativa é de que o Supremo tem extrapolado o seu quadrado, invadindo a área de competência do poder legislativo ao, digamos, “expandir” os limites da Constituição, interpretando dispositivos constitucionais de modo a aprovar atos que não estão previstos na Carta Maior. O caso da criminalização da homofobia foi o exemplo citado na matéria.
Luis Roberto Barroso é o mais vocal ministro a defender esse papel expandido do Supremo. Em artigo na Folha de São Paulo de fevereiro de 2018, Barroso defende que a mais alta corte do país deve acolher “inequívocas reivindicações da sociedade, não acolhidas [pelo legislativo] em razão de um déficit de representatividade”. Nesse sentido, seria papel do Supremo “empurrar a história”, em momentos em que “a razão humanista deve impor-se sobre o senso comum majoritário”. Pensar o contrário seria submeter-se à “tirania da maioria” e ao “paternalismo moralista”.
Bem, não vou gastar pixels escrevendo como é perigosa para o Estado de Direito uma “tirania da minoria” de 11 iluminados que se auto-concedem o direito de exercer um “paternalismo moralista” sobre a nação. Parece óbvio. Meu ponto é outro: por que agora?
Esses embates entre Supremo e Legislativo no campo dos costumes têm ocorrido de tempos em tempos, mas já faz algum tempo que o último ocorreu. Portanto, não se trata de uma reação imediata a um evento recente. O que nos leva novamente à questão: por que agora?
O único embate à flor da pele neste momento está ocorrendo entre o presidente e o STF. O Legislativo está envolvido porque um dos seus, o deputado Daniel Silveira, teve a sua cassação determinada pelo Supremo, uma clara invasão de competência. Não está na reportagem, mas esta seria, talvez, uma gota d’água que justificaria o timing da apresentação dessa PEC.
É óbvio que essa PEC não tem como prosperar. Seria instituir a anarquia como forma de governo, dado que o Supremo certamente consideraria a nova norma inconstitucional, o que provocaria um impasse institucional insolúvel, restando a dúvida de quem tem a última palavra a respeito das leis do país.
Independentemente da sua aprovação ou não, essa PEC é apenas uma reação ao ativismo judicial do Supremo, que se arvora como a “consciência moral da nação”. Trata-se de um aviso, e agora caberia aos 11 ministros uma reflexão a respeito de seu papel no Estado Democrático de Direito.
Poucos sabem, mas tive uma meteórica carreira como planejador financeiro pessoal. Dentre minhas poucas vítimas, quer dizer, clientes, estava uma advogada que trabalhava em uma multinacional. Mesmo com um bom salário fixo, a moça era uma endividada crônica: cheque especial, cartões de crédito em atraso, empréstimos não pagos etc. Começamos, então, a destrinchar suas despesas. Não vou aqui entrar nos detalhes, mas cada enxadada era uma minhoca. O zênite da situação era uma conta que recebia, na época (o ano era 2017), R$ 400 por mês. Perguntei o que era aquilo, e a moça, candidamente, respondeu-me que era uma poupança que estava fazendo para ir à Copa do Mundo na Rússia no ano seguinte. Não fosse minha fleuma britânica, teria dado uns tabefes ali mesmo.
Quando leio matérias sobre inadimplência, não consigo deixar de pensar nessa moça. As duas histórias contadas na reportagem são a sua cara.
Obviamente, há casos particulares em que um acidente ou o desemprego fazem com que as finanças pessoais se desequilibrem. Mas, mesmo nesses casos, o que normalmente encontramos é a falta de uma poupança precaucional ou a incapacidade de adequar o orçamento às novas circunstâncias.
Permitam-me um merchã: em meu livro Finanças do Lar, descrevo a Teoria do Gás, segundo a qual, o nosso orçamento é uma especie de recipiente, e os nossos gastos sempre ocuparão todo esse recipiente, qualquer que seja seu tamanho, até forçar as suas paredes. Com base nessa teoria, é possível entender o que está acontecendo nesse momento.
Se observarmos os gráficos da reportagem, podemos notar que a inadimplência vinha crescendo há já alguns anos, sequência que foi interrompida em abril de 2020, não por coincidência, início do pagamento do auxílio emergencial.
No entanto, a inadimplência voltou a subir antes mesmo do fim do pagamento do auxílio. O que aconteceu? Teoria do Gás: as pessoas incorporaram aquele dinheiro extra no orçamento, e tiveram dificuldade de voltar atrás quando o auxílio deixou de ser pago.
Em um artigo de 5 de junho último, Luciano Huck descreve uma casa simples da periferia, mas com uma cozinha toda reformada e com eletrodomésticos novinhos, tudo comprado com o auxílio emergencial. Agora, a família enfrenta dificuldades para comprar gás e comida. Exemplo de como as pessoas levantam seu padrão de consumo sem pensar em como vão sustentá-lo ao longo do tempo. Além disso, a inflação corrói a renda sem percebermos e, quando vamos ver, estamos sem dinheiro.
Desisti da carreira de planejador financeiro pessoal quando descobri que meus muitos conhecimentos de finanças são inúteis nesse campo. Um psicólogo seria muito mais útil. Não se trata de matemática, mas de entender como funciona a mente humana. Não é minha praia.
E não, não consegui convencer minha cliente a desistir de seu sonho da Copa do Mundo. Ao invés disso, ela cortou o planejador financeiro. E não me pagou, acrescentando mais esse calote às suas dívidas.
A máquina pública range e geme debaixo de uma expectativa de desempenho cada vez mais distante da realidade orçamentária. Todos os dias temos um rodízio de notícias sobre as insuficiências nas mais diversas áreas da administração pública. Hoje, o tema é “falta de professores nas universidades federais”.
O governo Bolsonaro é o vilão da vez, por ter cortado verbas de custeio das federais, mas a questão da contratação de professores remonta a 2017, governo Temer, que era, então, o vampirão da vez.
A verdade é que ainda estamos pagando pelo expansionismo irresponsável do serviço público patrocinado pelos governos do PT. No caso em pauta, a inauguração de universidades federais como se não houvesse amanhã. Só que o amanhã chegou, e não tem dinheiro para a contratação de mais professores. O Brasil é o país das grandes obras inauguradas com pompa e circunstância, e abandonadas anos depois por falta de previsão de recursos para acabá-las. Este vício, aliás, não é exclusividade do PT, mas o partido, quando foi governo, atingiu o estado da arte na prática.
Muitos se enganam ao pensar que basta “combater a corrupção” ou “gastar melhor o dinheiro” para resolver o problema. Sem dúvida, a corrupção representa um vazamento de recursos públicos que poderiam estar sendo gastos na melhoria da vida da população. Mas a ordem de grandeza do roubo puro e simples não dá nem para o início na questão de resolver as lacunas do serviço público. A alocação de recursos de maneira mais racional é, de longe, a coisa mais importante a ser feita.
No entanto, quando falamos em “gastar melhor o dinheiro”, o “melhor” é sempre no nosso quadrado. Luta-se com denodo e afinco pela remuneração do serviço público, pelas isenções e alíquotas de impostos, pelos subsídios, pelas regras de aposentadoria, e por uma longa lista de etceteras, em que as palavras “direito” e “privilégio” trocam de lugar a depender de quem está falando. O fato é que “ninguém sai de cima, nesse chove-não-molha”, como diria Rita Lee.
O resultado é uma máquina pública rangendo e gemendo sob as expectativas dos brasileiros, que querem serviços suecos pagando carga tributária de país africano e sem ter o pacto social que permite aos nórdicos aplicar o dinheiro público no melhor interesse da sociedade como um todo, e não de corporações bem estruturadas.
O próximo presidente será eleito com a promessa de “resolver essas problemas”. Não resolverá nada, a menos que lidere um pacto anti-corporações. Como não vai acontecer, podemos nos dar por satisfeitos se, pelo menos, não agravar o problema para o futuro.
Um governo ortodoxo é caracterizado, basicamente, por manter os fundamentos que permitem a estabilidade da moeda ao longo do tempo. Estes fundamentos são a disciplina fiscal e o controle da inflação. Ou, em economês, a política fiscal e a política monetária. Neste episódio, exploraremos a política fiscal e, no próximo, a política monetária dos governos do PT.
Sem balançar o barco
A responsabilidade fiscal do primeiro mandato de Lula é comumente citada como prova de que o ex-presidente é confiável do ponto de vista de equilíbrio macroeconômico. De fato, tendo herdado uma média de superávit primário do governo FHC de 2,5% ao ano, o governo Lula produziu uma média de superávit primário muito próxima, de 2,3% ao ano, até 2008, conforme podemos ver no gráfico a seguir.
No entanto, a Grande Crise Financeira internacional, em 2008, fez com que o governo do PT tivesse o álibi perfeito para abrir os cofres e diminuir o superávit primário para uma média de 1,7% ao ano nos anos seguintes, até 2013. Este álibi consistiu na necessidade de investimentos públicos para manter a economia brasileira em crescimento, mesmo com uma desaceleração brutal da economia global. Ficou famosa a frase de Lula, de que a crise global seria apenas uma “marolinha” nas praias brasileiras. A crise financeira internacional se transformou em uma leve recessão em 2009, muito menor do que no mundo desenvolvido.
Para entender o que aconteceu neste período, ser-nos-á útil acompanhar o crescimento das despesas e das receitas no gráfico a seguir:
Este gráfico mostra o crescimento real de despesas e receitas do governo federal, ou seja, o crescimento acima da inflação. Nos “Anos da Grande Ilusão” (2003 – 2008), as despesas cresceram 6,6% ao ano em termos reais, mas este crescimento foi suportado pelo crescimento de 7,0% ao ano das receitas neste período. Já nos “Anos da Húbris”, as despesas cresceram mais ou menos no mesmo ritmo do período anterior. O problema foi que as receitas cresceram muito menos, cerca de 5,4% ao ano, explicando, então, a diminuição do superávit primário neste período e preparando a cena para o desastre do período seguinte. Na parte final, os “Anos da Economia em Vertigem”, as despesas até que foram contidas, crescendo apenas 2,4% ao ano, mas as receitas despencaram, reduzindo-se em quase 4% ao ano. Foi este gap que produziu os déficits primários deste período.
Os petistas costumam dizer que o problema do desequilíbrio fiscal não foi causado por um descontrole das despesas, mas por uma queda abrupta das receitas. Não deixam de ter razão, uma vez que as despesas foram desaceleradas de maneira bastante forte no período final, mas, mesmo assim, não foram capazes de evitar o aumento do déficit, devido à desaceleração ainda maior das receitas.
O problema é que esta narrativa, como dizia Roberto Campos, é como biquini: mostra tudo, mas esconde o essencial. Para entender o essencial, precisamos nos colocar onde tudo começou.
Os atores assumem seus lugares no palco
Os grandes acontecimentos da história normalmente começam de maneira discreta, sem que se note. No caso da grande recessão brasileira, podemos datar o início da sua pré-história em 21 de junho de 2005, por ocasião da nomeação de Dilma Rousseff como ministra da Casa Civil, substituindo José Dirceu, alvejado pelo Mensalão.
Com isso, Lula decide-se por colocar na Casa Civil uma pessoa com perfil técnico, diferente do seu antecessor, que atuava na articulação política. E é este perfil que definirá os próximos passos da política econômica do governo Lula.
Em 09 de novembro de 2005, pouco mais de 4 meses depois de ser nomeada, Dilma mostra a que veio, desautorizando estudos do ministério do Planejamento, ainda sob o comando de Paulo Bernardo, que previa um aumento estrutural do superávit primário de modo a reduzir a dívida pública ao longo dos próximos anos e, assim, levar a uma queda estrutural das taxas de juros nos 10 anos seguintes.
Vale a leitura atenta do trecho da entrevista concedida pela ministra ao Estadão, na qual Dilma, em sua linguagem peculiar, define a sua visão de mundo a respeito do tratamento das contas públicas:
A ministra começa por reconhecer que, para crescer, é necessário diminuir a dívida pública. Mas, então, por alguma manobra mental difícil de alcançar, troca a ordem dos fatores: segundo a ministra, a dívida pública só não vai crescer se os juros forem baixos. Isso é um truísmo matemático, mas de pouca serventia para resolver o problema dos juros altos. Ocorre que os juros só caem se a dívida pública for reduzida. Dilma fala como se as taxas de juros estivessem sob domínio do governo, e não fossem um preço determinado pelo mercado. “Uma política de juros consistente”, nas palavras da ministra, significa algum controle mágico em que o governo reduz os juros na marra. Veremos essa política em todo o seu esplendor quando a ministra se tornar presidente da República.
A seguir, Dilma coloca corretamente a dificuldade política de um ajuste fiscal. Afinal, sempre há gastos a serem feitos. Mas o plano do ministério do Planejamento é justamente aproveitar o momento favorável para as contas públicas (o superávit, naquele ano, estava caminhando para 6% do PIB) para aumentar a meta sem abrir mão dos gastos correntes. Afinal, é justamente este o mantra de quem defende um orçamento “contracíclico”: gastar mais (em relação ao PIB) quando a economia está crescendo pouco, e gastar menos quando a economia está acelerando. O plano era gastar menos, aproveitando o bom momento da economia brasileira, fruto dos ajustes realizados nos anos anteriores e da aceleração do crescimento chinês, que puxava todos os produtores de commodities. Mas Dilma não pensa assim. É nesta entrevista que a ministra solta a frase que irá eternizá-la: despesa é vida.
A arrogância de quem sabe tudo transparece em cada frase da ministra, mesmo quando solta platitudes do tipo “sempre teremos despesas correntes”. Esta arrogância irá lhe custar a governabilidade alguns anos depois. Mas, continuemos a nossa história.
Em 27 de março de 2006, o então presidente do BNDES, Guido Mantega, sucede no ministério da Fazenda a Antônio Palocci, alvejado pelo escândalo do caseiro.
Lula poderia ter substituído Palocci por outro ministro de linha ortodoxa, mas escolhe alguém que juntar-se-á a Dilma para implementar a política econômica que levaria o país ao céu antes de lançá-lo no inferno.
Com a mudança dos ventos, o time de profissionais ortodoxos que fez parte do primeiro time de Palocci começa a abandonar o barco. O primeiro foi Marcos Lisboa, já em abril de 2005, seguido por Joaquim Levy em março de 2006 (no mesmo dia da saída de Palocci). Para o lugar de Levy, na estratégica secretaria do Tesouro, Mantega inicialmente nomeou o também ortodoxo Carlos Kawall, profissional com experiência no mercado financeiro. Mas esta nomeação não durou muito. Em dezembro de 2006 Kawall também abandona o barco, sendo substituído por um secretário interino até a nomeação, em junho de 2007, de Arno Augustin, o mago da “contabilidade criativa”, que acompanharia Dilma e Mantega até o fim do 1º mandato da presidente, em dezembro de 2014. Augustin foi o mais longevo secretário do Tesouro desde a criação do cargo, em 1986, o que diz muito sobre o Brasil desses tempos.
Portanto, a questão da queda brutal das receitas a partir de 2014 é apenas uma parte da história, e que exploraremos com mais detalhe no Episódio 4, sobre o crescimento econômico. As despesas cresceram de maneira relevante durante os governos do PT por uma questão ideológica. “Despesa é vida”, e não se pode cortar a “vida” sem conversar com os 180 milhões de russos, quer dizer, brasileiros. Tivesse Palocci tido sucesso em seu plano de ajuste fiscal, as contas brasileiras estariam em estado muito melhor para enfrentar os momentos mais difíceis que viriam depois.
O efeito de superávits primários insuficientes foi a queda insuficiente da dívida pública. Talvez não exista gráfico mais ilustrativo das três fases dos governos do PT do que o da dívida pública:
Este gráfico mostra a evolução da dívida bruta do governo geral ao longo dos governos do PT. A dívida bruta é o total devido pelo governo, representado pela soma de todos os títulos públicos detidos pelos investidores. Se, em algum momento, os compradores dos títulos públicos resolvessem resgatá-los e pedir o dinheiro de volta, este seria o montante devido. A dívida líquida, por outro lado, subtrai da dívida bruta os ativos do governo, principalmente as reservas internacionais e os empréstimos para os bancos públicos, principalmente o BNDES. Portanto, as reservas internacionais e o dinheiro emprestado para o BNDES fazem aumentar a dívida bruta (é preciso emitir títulos para ter este dinheiro), mas não a dívida líquida.
No esquema a seguir, ilustramos a relação entre dívida líquida e dívida bruta:
Sendo assim, para emprestar dinheiro para o BNDES, o governo precisa emitir dívida. Mas é a dívida bruta que aumenta, a dívida líquida permanece igual, porque, de um lado, o governo é devedor dos detentores de títulos públicos, mas do outro lado, é credor do BNDES. Ocorre que nem todos os ativos do BNDES vão ser recebidos, haja vista empréstimos duvidosos, como para o metrô de Caracas ou para construir estádios para a Copa do Mundo. Se estes empréstimos não são recebidos, no final é o governo que sofre o prejuízo, porque o BNDES não tem condições de devolver o dinheiro emprestado para o governo. É neste ponto que a dívida líquida se transforma em dívida bruta.
No gráfico a seguir, podemos comparar o comportamento das dívidas bruta e líquida do governo neste período.
Como vimos anteriormente, a dívida bruta praticamente para de cair a partir de 2009, mas a dívida líquida continua recuando até 2014, quando também começa a aumentar em função dos déficits fiscais. Esta diferença de comportamento ocorre basicamente por causa do aumento do orçamento do BNDES, que afeta a dívida bruta mas não a líquida. Ou seja, o esforço fiscal, a partir de 2009, foi usado para aumentar o orçamento do BNDES. Veremos isso com mais detalhe no Episódio 4, sobre crescimento econômico.
Durante muitos anos, os analistas financeiros prestaram mais atenção para a dívida líquida, esquecendo-se que, no final do dia, é a dívida bruta que precisa ser paga, e o dinheiro do BNDES pode não estar disponível quando se fizer necessário. Veremos este conceito voltar à frente, no Episódio 5, quando falarmos da capitalização da Petrobrás.
Observe, no gráfico anterior, os momentos em que a S&P, uma das principais agências de avaliação de risco, concede e retira o chamado Grau de Investimento. O Brasil fez parte dessa elite de países mais confiáveis durante pouco mais de sete anos. Lula estufava o peito, apontando o reconhecimento das agências internacionais como uma espécie de medalha a confirmar a qualidade da gestão econômica do PT. De fato, chegamos no Grau de Investimento ao final dos anos da Grande Ilusão, mas os Anos da Húbris semearam a sua perda durante os Anos da Economia em Vertigem.
A preocupação de Palocci com o tamanho da dívida era legítima. Se compararmos a dívida pública brasileira com a média da dívida de outros países emergentes, veremos que a nossa é muito superior:
Uma dívida pública muito grande deixa menos margem de manobra para absorver choques externos e para fazer política monetária, pois uma taxa de juros que incide sobre uma dívida mais alta gera maior pagamento de juros. Isso é o que nos leva a um déficit nominal (déficit primário mais o pagamento de juros) maior, conforme podemos ver no gráfico a seguir:
Observe como as barras laranjas vão diminuindo ao longo dos anos a partir de 2003 para aumentarem abruptamente em 2015, quando a dívida explode em conjunto com o aumento das taxas de juros. Voltamos ao mesmo ponto de 2003 (pouco mais de 8% do PIB em pagamento de juros), mas sem ter o mesmo superávit primário que compensava este pagamento. O resultado foi um déficit nominal brutal em 2015, de mais de 10% do PIB, o que piora ainda mais a situação das contas públicas, pois esse déficit precisa ser rolado, aumentando a dívida.
Um novo capitão para salvar o barco
A deterioração das contas públicas a partir de 2013 e, com mais velocidade, a partir de 2014, faz com que Dilma dê um cavalo de pau em sua política fiscal, anunciando, 20 dias depois de reeleita, Joaquim Levy, ex-secretário do Tesouro no primeiro governo Lula, para o ministério da Fazenda.
Mas note que, como sempre, a virada ortodoxa se faz acompanhar de um molho heterodoxo. Nelson Barbosa é um economista ligado ao PT, com ideias ortodoxas até a página 2. Estará ali, como Guido Mantega esteve quando Palocci era ministro da Fazenda, na reserva para quando a sua presença se fizer necessária ou oportuna. No caso de Guido Mantega, a sua promoção para o ministério da Fazenda em 2006 se deu após Lula se sentir suficientemente confiante em adotar a agenda econômica do PT, capitaneada por Mantega e Dilma Rousseff.
No caso de Barbosa, a sua entrada em cena no lugar de Joaquim Levy se dará para apagar as luzes do governo Dilma, já em dezembro de 2015. Mas esta foi uma troca apenas protocolar: na prática, Levy já havia deixado de ser ministro da Fazenda desde agosto, quando foi vencido na proposta de orçamento para 2016 prevendo déficit primário, o que não acontecia desde o longínquo ano de 1998. Não sem antes o governo tentar a volta da CPMF sem sucesso.
O final do governo Dilma foi melancólico sob vários pontos de vista, mas talvez o aspecto fiscal seja o mais saliente, pois foi aqui que tivemos o motivo técnico para o impeachment: as chamadas “pedaladas fiscais”.
Da contabilidade criativa às pedaladas fiscais
É difícil identificar a origem do termo “pedaladas fiscais”. Trata-se de um tema árido, que envolve os meandros da contabilidade pública, e é de difícil tradução para o público leigo. Não à toa, muitos dos que criticaram o processo de impeachment utilizaram justamente esta dificuldade de entendimento para alegar que Dilma foi derrubada por conta de “filigranas técnicas”. Que são técnicas, não tem dúvida. Mas não foram, de maneira alguma, apenas “filigranas”. As pedaladas envolveram bilhões de reais ao longo de anos, afetando o entendimento do real estado das contas públicas.
As pedaladas fiscais foram o ápice do que se convencionou chamar de “contabilidade criativa”. Arno Augustin, secretário do Tesouro desde junho de 2007, foi o autor intelectual de várias manobras contábeis que permitiram “turbinar” as contas públicas sem que fosse preciso economizar dinheiro de verdade. Dois exemplos vão ilustrar a prática. Assim como estes, há vários outros casos.
Em agosto de 2010, o Tesouro “vendeu” ao BNDES o direito de receber os dividendos da Eletrobrás nos anos seguintes.
O dinheiro recebido à vista (R$ 1,4 bilhão) engordou o superávit primário. A questão é que este dinheiro saiu do cofre do próprio Tesouro, foi para o BNDES como “empréstimo” (o que, como vimos, não afeta o superávit primário) e voltou na forma de um “pagamento” do BNDES, o que afeta positivamente o saldo primário do governo. Então, o Tesouro mandou R$ 1,4 bilhão para o BNDES, o BNDES devolveu esse dinheiro para o Tesouro, e por causa do critério contábil adotado, essa operação fez o superávit primário crescer em R$ 1,4 bilhão. Ou seja, sem arrecadar um tostão a mais, o superávit do governo engordou. Claro que essa operação teve um custo: o BNDES adiantou um dinheiro para o Tesouro, e cobrou juros sobre isso. Além disso, subtraiu recursos que poderiam entrar no caixa do Tesouro no futuro e que fariam falta para fechar as contas.
Várias outras operações dessa natureza foram realizadas, normalmente envolvendo a capitalização de um banco público (BNDES e Caixa) em contrapartida de pagamento adiantado de dividendos por parte desse banco. A capitalização não afetava a dívida líquida do Tesouro (por ter uma contrapartida do outro lado) e os dividendos engordavam o superávit primário. Foram tantas operações dessa natureza, que os técnicos do Tesouro se viram obrigados a alertar o então secretário Arno Augustin sobre a perda de credibilidade fiscal, em tensa reunião de novembro de 2013, revelada pelo Estadão no início de dezembro e depois descrita em mais detalhe por esta reportagem do jornal Valor Econômico de 11 de dezembro de 2015, em função de operações que faziam aumentar o superávit fiscal de maneira fictícia. A principal recomendação é a que vai a seguir, sugerindo a interrupção de operações desse tipo:
O segundo exemplo foi bem mais famoso: a megacapitalização da Petrobras. Em 2010, o governo promoveu uma chamada de capital dos acionistas para investir na exploração do pré-sal e em outros investimentos da empresa. Ocorre que o Tesouro, obviamente, não tinha como acompanhar essa capitalização, dado que não tinha dinheiro em caixa. Para não perder o controle sobre a empresa, o governo “vendeu” para a Petrobras barris de petróleo a serem explorados, dado que o petróleo pertence à União e é somente explorado pela Petrobras. Com o dinheiro da venda desses barris antes mesmo de terem sido explorados, a União pagou a sua parte na capitalização. Claro, o preço do barril foi completamente arbitrário e decidido pelo governo à revelia dos acionistas minoritários. Mas este é um problema que exploraremos no Episódio 5, dedicado à Petrobras.
A coisa não parou por aí. O governo não só não precisou desembolsar dinheiro para manter a sua participação na empresa, como produziu receita adicional que reforçou o superávit primário! Para entender a mágica, preste atenção ao esquema abaixo.
Passo 1: os troux… aos otár… os acionistas minoritários capitalizam a empresa com dinheiro vivo (R$ 42 bilhões) e recebem ações em troca.
Passo 2: aqui ocorre a mágica. O Tesouro deveria entrar com um grande montante de dinheiro (cerca de R$ 75 bilhões) para manter a sua participação no capital da Petrobrás, montante obviamente não disponível no seu caixa. Mas isto não era problema para o mago da contabilidade criativa, Arno Augustin. O Tesouro fez basicamente duas manobras para não só manter sua participação na empresa, como também aumentar o superávit primário daquele ano! Acompanhe:
2a) O Tesouro “vende” para a Petrobrás 5 bilhões de barris a serem explorados no pré-sal ao custo de R$ 75 bilhões. Claro que este valor foi arbitrário e não fruto de um certame competitivo. Como saber se este valor foi o justo? Essa foi uma das principais críticas ao processo todo, pois o governo, como parte interessada e acionista majoritário, estabeleceu discricionariamente um preço que definiu a sua participação na capitalização da empresa. A Petrobrás pagou o Tesouro com ações no valor de R$ 43 bilhões e mais R$ 32 bilhões em dinheiro. Este montante entrou no caixa do Tesouro, aumentando o superávit primário daquele ano. Arno Augustin rebateu as críticas do mercado, dizendo que o governo FHC havia feito a mesma coisa com as concessões de telefonia:
O secretário do Tesouro “esqueceu-se” de um pequeno detalhe: os recursos da privatização da telefonia foram obtidos em um leilão aberto e competitivo, que atraiu investimento de verdade. No caso da capitalização da Petrobras, o dinheiro foi obtido pela venda antecipada de um petróleo cuja viabilidade ainda era uma incógnita por um preço arbitrado pelo próprio governo e pago por uma empresa do próprio governo. Na prática, o governo mudou o dinheiro de bolso, da Petrobras para o Tesouro.
2b) O montante de ações emitidas pela Petrobras no passo acima não era suficiente para manter a participação do governo na empresa. Então, vem a segunda parte da mágica: o Tesouro empresta dinheiro para o BNDES e para o Fundo Soberano no valor de R$ 35 bilhões. Estes empréstimos não afetam as medidas de endividamento líquido, somente a dívida bruta, pois ao mesmo tempo que o Tesouro concede o empréstimo, contabiliza um crédito junto a essas entidades. Este dinheiro servirá para que essas entidades entrem como acionistas na capitalização.
(Apenas um parêntese antes de continuarmos: não falaremos do Fundo Soberano aqui, uma excrecência inventada pelo governo do PT justamente para viabilizar este tipo de manobra. Fundos Soberanos existem em países com grandes superávits em conta corrente e que guardam esses superávits como uma poupança para o futuro. O Brasil tem grandes déficits em conta corrente, não tem o que guardar. A ideia era ter um instrumento para guardar a grande receita que viria com a exploração do pré-sal. Uma insanidade típica desses Anos da Húbris. Fecha parênteses).
Passo 3: BNDES e Fundo Soberano entram com R$ 35 bilhões, recebendo ações em troca. Completa-se a mágica.
No final do processo, sem aumentar em um real a sua dívida líquida e aumentando o superávit primário em R$ 32 bilhões, o Tesouro (em conjunto com BNDES e Fundo Soberano) aumentou sua participação de 40% para 48% do total do capital da Petrobras. Um truque de mestre!
Até aqui temos o time jogando com as regras debaixo do braço. A partir de um determinado momento, o jogo passou a ser em desacordo com as regras.
As chamadas “pedaladas fiscais” significam atrasar despesas devidas, utilizando a força do governo junto a órgãos do Estado. Os balanços dos bancos estatais e principalmente do BNDES foram utilizados para “esconder” despesas do governo. O mecanismo é relativamente simples: digamos que o governo esteja devendo R$ 100 para o BNDES. Se o governo não pagar o que está devendo, este dinheiro não aparece como despesa, inflando o superávit do governo naquele ano. Foi assim que os superávits foram produzidos, principalmente de 2013 em diante.
O primeiro sinal de que alguma coisa estava fora do lugar veio de uma despretensiosa notícia no Estadão, em 11 de julho de 2014, sobre uma misteriosa “conta paralela” em um banco privado, que permitiu um superávit primário R$ 4 bilhões maior do que aquele calculado pelo Banco Central.
Na mesma reportagem do Valor Econômico citada acima, um técnico do Tesouro afirma que este evento foi importantíssimo, pois mudou a dinâmica dos debates internos sobre as “pedaladas”, que ganharam maior urgência. Este sinal indicava que além dos bancos públicos, bancos privados também estavam sendo usados pelo Tesouro para atrasar pagamentos. Não à toa, a mesma reportagem no Estadão diz que as despesas do INSS vinham apresentando “dinâmica incomum”. E, como sabemos, as aposentadorias são pagas, em grande parte, pelos bancos privados.
Foi-se descobrindo, aos poucos, outras “contas negativas” no sistema financeiro, que estavam servindo para encobrir o rombo das contas públicas. Por exemplo, em dezembro de 2013, o BC pediu explicações para a Caixa Econômica Federal sobre um saldo negativo de R$ 3,1 bilhões em suas contas de pagamento do Bolsa Família.
A coisa toda foi completamente desmascarada em investigação do TCU. Vale aqui reproduzir um trecho da ata da assembleia do TCU que apreciou o recurso apresentado pela União, em dezembro de 2015, à condenação das pedaladas pelo tribunal (grifos meus):
“Ainda que a utilização de recursos próprios da CEF para o pagamento de despesas de responsabilidade da União esteja prevista em cláusula de contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes […], isso não significa que o adiantamento não possua a natureza de operação de crédito. Por óbvio, não é possível considerar dívidas bilionárias e prolongadas no tempo como mero fluxo de caixa, ainda mais quando se sabe que a insuficiência dos repasses não decorreu de imprecisão de cálculo do valor dos benefícios que seriam pagos, mas de ação deliberada e consciente de se valer de recursos próprios da instituição financeira, seja por insuficiência de caixa do Tesouro, seja para maquiar o resultado primário do governo, seja porque o governo preferiu destinar aqueles recursos que deveriam ser repassados para as instituições financeiras para dar suporte a despesas outras que deveriam ter sido contingenciadas, mas não o foram, com a finalidade de obter dividendos eleitorais de forma ilícita.”
Portanto, segundo o TCU, houve operação de crédito entre um banco público e seu controlador, o que é expressamente vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Esta foi a motivação técnica para o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, e está longe de ser uma “filigrana contábil”. Foram bilhões de reais “emprestados” pela Caixa, BB e BNDES para o Tesouro ao longo de, pelo menos, três anos.
Quando uma família vive acima de suas possibilidades, exibe para o público externo uma imagem que não corresponde à realidade. Sua casa, seus carros, suas roupas, suas viagens sinalizam uma riqueza que não existe. Pode demorar, mas a realidade acaba batendo à porta, e aquela mentira é desmascarada pelos fatos. Assim foi o Brasil governado pelo PT: uma grande mentira, na base do crédito e de manobras contábeis, que acabou sendo desmascarada pela maior recessão da história brasileira.
Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:
No início do governo Bolsonaro, estive em Brasília com investidores japoneses para uma série de visitas aos gabinetes do poder. A melhor reunião de todas, aquela que mais impressionou positivamente os visitantes, foi com Gustavo Montezano, atual presidente do BNDES e então número 2 da secretaria de desestatização, que estava sob o comando de Salim Mattar.
Os planos da secretaria eram realmente empolgantes, e não à toa soaram como música aos ouvidos dos investidores estrangeiros. Mas lembro de que havia uma ressalva: não estava nos planos a venda das chamadas joias da coroa, Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e Eletrobras. Estas seriam privatizações muito difíceis, que envolveriam um esforço político que não valeria a pena, dado que havia um mar de oportunidades em outros lugares da administração pública.
É incrivelmente irônico que a única privatização desse governo seja exatamente de uma das joias da coroa. Foi como se um jogador de sinuca cantasse uma caçapa e enfiasse a bola em outra na posição oposta. Um lance de sorte, mas que merece comemoração de qualquer modo.
Claro que uma parte do trabalho, a exemplo da reforma da Previdência, já havia sido feito no governo Temer. Mas há grande mérito em terminar uma empreitada iniciada por outro governo. Os louros pertencem aos dois governos.
O governo Bolsonaro, assim, coloca, em grande estilo, o seu pino no tabuleiro das privatizações, algo que jamais ocorreria em um governo do PT. Aliás, já houve ameaça, por parte de parlamentares do partido, de volta atrás na privatização da Eletrobras, caso o PT chegue ao poder novamente. Durmam tranquilos os brasileiros. O PT teve tempo de sobra (mais de 13 anos) para “voltar atrás” em várias privatizações que condenou veementemente. Não aconteceu nenhuma vez. Por que será?
Duas notinhas, uma em seguida da outra, definem o que será a eleição para o governo de SP.
Na primeira, enterra-se a possibilidade de impugnação da candidatura do carioca Tarcísio de Freitas. Ao contrário do paranaense Sérgio Moro, Tarcísio alugou imóvel em uma cidade do estado. Portanto, tinha endereço fixo, suficiente para provar seu “vínculo” com o estado. Como se vê, não era muita coisa o que precisaria ser feito para conseguir provar o domicílio eleitoral. Mas, em uma carreira política marcada pelo improviso, Moro nem sequer isso conseguiu.
Na segunda nota, fica claro que o próximo governador será um desses três nomes: Tarcísio de Freitas, Márcio França ou Rodrigo Garcia. Qualquer um dos três se beneficiará do voto antipetista no 2o turno. É provável que Haddad possa atrair o voto anti-bolsonarista se o seu adversário for Tarcísio de Freitas, mas não creio que esse contingente seja suficiente para lhe dar a vitória. Para tanto, seria preciso que chegasse ao 2o turno com mais de 40% dos votos, o que parece bem improvável. Contra Márcio França ou Rodrigo Garcia, a derrota de Haddad seria ainda mais acachapante, pois não contaria com o voto anti-bolsonarista.
Enfim, treino é treino, jogo é jogo, eleição é uma caixinha de surpresas, mas acho que o quadro eleitoral paulista está bem delineado.
Ontem, o STJ julgou legal o chamado “rol taxativo” de procedimentos, em que a cobertura dos planos de saúde é obrigatória apenas para as doenças constantes do rol (cerca de 3.300 itens e todas as doenças listadas na CID, segundo a Federação dos Planos de Saúde).
O rol taxativo é importante para o planejamento financeiro das operadoras. Mal comparando, a eliminação do rol taxativo seria equivalente a entrar em um hotel ”all inclusive” e exigir uma comida que não está no buffet. O hotel fez um planejamento para fornecer os alimentos que estão no buffet. Se cada hóspede pedir algo que não está ali, no limite o hotel quebra. O rol taxativo é o “all inclusive” dos planos de saúde, o que permite o seu planejamento financeiro.
A hashtag #roltaxativomata é típico de pessoas que vivem no mundo do “dever ser”, um mundo estranho à lógica econômica.
No mundo real, a exclusão do rol taxativo teria o efeito justo oposto: os custos aumentariam para os assistidos, tornando o sistema ainda mais elitista. E, na impossibilidade de aumentar os preços, expulsaria as operadoras do sistema, como já ocorreu no passado.
Na verdade, já existe um plano de saúde sem rol taxativo e, além de tudo, de graça: chama-se SUS. Não tenho dúvida de que todos esses “artistas e ativistas” levantaram a hashtag #VivaoSUS durante a pandemia. Minha sugestão é que migrem para esse sistema de saúde, onde corre leite e mel, e deixem em paz um sistema em que, paradoxalmente, 49 milhões de pessoas preferem pagar para ter um “rol taxativo”.
Ainda escutaremos muito sobre essa estatística até as eleições: 33 milhões de brasileiros passam fome, um crescimento de 57% em um ano.
Como em toda estatística, os números são frios, mas as conclusões são quentes. São dois os aspectos a serem analisados, para quem quer ir um pouco além da manchete: a comparabilidade e a busca das causas.
Antes de começar, convém verificar os autores do levantamento. Trata-se da Rede PENSSAN, uma associação de acadêmicos vindos principalmente das universidades federais. Sem querer criticar o trabalho ad hominem, convém ter isso presente quando falarmos da análise das causas.
O primeiro aspecto é a comparabilidade. 57% é um aumento expressivo, sem dúvida, e mais à frente exploraremos as causas. O problema é ter apenas dois pontos em uma série para se tirar alguma conclusão. O número atual é pior ou melhor do que em outras épocas? Qual a tendência? Sem isso, fica difícil fazer qualquer análise. Espertamente, o estudo apresenta um gráfico (figura 19) em que liga os dados de levantamentos da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE) com os dados da própria pesquisa da PENSSAN, como se fossem pesquisas comparáveis.
Por mais ajustes que se façam, fica difícil garantir a compatibilidade entre pesquisas tão distantes no tempo e feitas por entidades completamente diferentes. Mas serve para a narrativa, pois mostra que estamos no pior ponto da fome desde 2004, coincidentemente o início do governo Lula. Ou seja, a mensagem é de que “perdemos” todos os avanços alcançados durante os governos do PT.
Aliás, ainda sobre esse ponto da comparabilidade, o relatório não deixa de lembrar que o Brasil foi retirado do “mapa da fome” pela ONU em 2014, o que seria o coroamento de uma política bem-sucedida adivinha de qual governo. O que não encaixa na narrativa é que o país, até hoje, não foi recolocado no mapa da fome. Em reportagem do blog esquerdista Brasil de Fato, o coordenador do PENSSAN tenta dizer que os critérios mudaram, que não dá pra comparar o levantamento da ONU feito hoje com o que era feito em 2014, etc.
O fato objetivo é que a ONU indicava que 2,5% dos brasileiros passavam fome em 2021, enquanto o levantamento da PENSSAN estimava este número em 9% para o mesmo ano. Ou seja, a ONU é usada quando interessa.
Agora vamos analisar as causas. O coordenador da PENSSAN indica três causas para o aumento brutal do número de famintos no país: 1) empobrecimento da população; 2) desmonte de políticas públicas e 3) tratamento dado ao meio ambiente.
Dessas 3 “causas”, apenas a primeira faz sentido. Vejamos.
O presente inquérito foi feito entre os meses de novembro de 2021 e abril de 2022, enquanto o anterior foi feito um ano antes. Ocorre que, um ano antes, ainda estávamos em plena vigência do auxílio emergencial, uma ajuda bem acima do montante normalmente distribuído pelos programas sociais, principalmente o Bolsa Família. No final de 2020 e início de 2021, estávamos começando a reabrir a economia e o auxílio emergencial ainda estava sendo distribuído. Ou seja, a renda das pessoas era maior. Então, é natural que tenha havido aumento da insegurança alimentar de 2020 para 2021. Além disso, a inflação galopante certamente tem um papel aqui também, diminuindo a renda disponível.
Este primeiro ponto bastaria para “culpar” o atual governo, ainda que a variação de 57% seja mais fruto de uma base artificialmente inflada pelo auxílio emergencial (o que, em tese, é mérito do governo), do que propriamente uma piora geral das condições de vida. Mas isso não basta. É preciso carimbar a fome no atual governo de maneira mais específica. Aqui entram o “desmonte de políticas públicas” e o “tratamento dado ao meio ambiente”.
Desmonte do quê? O Bolsa Família (agora Auxílio Brasil) deixou de ser pago? Aposentadoria? BPC? Que política foi desmontada? Li o relatório em busca dessa informação e não encontrei. Está na declaração do coordenador da PENSSAN e reproduzido pela matéria somente para carimbar o atual governo.
E “mudanças climáticas” vão eventualmente afetar a produção de alimentos ao longo das próximas décadas, não de um ano para o outro. Também aqui, procurei referências no relatório e não encontrei, a não ser uma menção à “insegurança hídrica” (acesso à água potável), o que não deixa de ser irônico, pois a esquerda é quem normalmente é contra qualquer mudança no setor de saneamento. Enfim, o “meio-ambiente” aparece como “causa” somente para carimbar o atual governo, conhecido como “inimigo do meio-ambiente”, e não tem nada a ver com o relatório em si.
Em resumo, este levantamento, por mais sério e relevante que seja, será usado politicamente para fortalecer um candidato em detrimento de outro. Não que isso esteja intrinsecamente errado, dado que a solução da fome no Brasil somente se dará no campo político, arena em que se discutirão as condições para a retomada do crescimento econômico sem truques. Como bem mostra o relatório, existe uma correlação clara entre (falta de) renda e fome, por mais que existam auxílios. Mas a solução sugerida pelo relatório é a de um governo que “olha para o pobre”, com “soluções” de curto prazo que duram tanto quanto dura o dinheiro. 13 anos de governo do PT já deveriam ter sido suficientes para demonstrar isso.
PS.: a invasão do Shopping Iguatemi por membros do MTST empunhando bandeiras “contra a fome” já é um reflexo desse relatório, que será usado ad nauseam até as eleições. Provavelmente não fizeram o mesmo no casamento de Lula e Janja porque todos os presentes à festa estão do lado do povo. Neste caso, a ostentação está liberada.
“Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la.” (Edmund Burke)
Em 27/10/2002, 22 anos, 8 meses e 17 dias depois de sua fundação, o PT chegava ao posto máximo da República. O ex-torneiro mecânico e ex-sindicalista Luís Inácio Lula da Silva conseguia finalmente realizar o sonho da esquerda brasileira. O PT governou o país durante exatos 4.880 dias. Ou 13 anos, 4 meses e 11 dias. Foi o período mais longevo em que um único partido dirigiu os destinos do país desde o fim do Estado Novo, em 29/10/1945, quando Getúlio Vargas deixou o comando do país depois de 5.474 dias no poder.
Vamos acompanhar, ao longo de 8 episódios, o governo do PT do ponto de vista da economia. Veremos que se trata de um todo, e não uma sucessão de períodos sem conexão entre si. Na campanha eleitoral desse ano, alguns esperarão que Lula, em um terceiro mandato, seja o mesmo de seus primeiros anos. Outros esperam que faça o mesmo governo de seu segundo mandato. E todos, que não repita os erros cometidos pela sua sucessora, Dilma Rousseff. No entanto, veremos ao longo destes episódios, que cada fase já estava contida, em germe, na anterior. Não existe uma solução de continuidade, mas apenas o desabrochar de uma flor, cuja semente foi plantada no período anterior.
Grosso modo, podemos dividir o governo do PT, do ponto de vista da economia, em 3 partes:
1) O período que vai de 2003 até a Grande Crise Financeira, em 2008, que chamo de “Anos da Grande Ilusão”. Recebe este nome porque todos se iludiram neste primeiro momento, em que o governo Lula adota políticas macroeconômicas em linha com seu antecessor, fazendo-nos crer que o Brasil havia, finalmente, chegado a um grau de maturidade institucional que nos permitiria dar o grande salto para frente.
2) O período que vai da Grande Crise Financeira até as manifestações de 2013, que chamo de “Anos da Húbris”. O termo “húbris” vem do grego, e serve para designar o excesso de soberba e autoconfiança. Na tradição do teatro grego, significa o desafio aos deuses levado pelo excesso de arrogância e presunção. Daí vem o aforismo: “Aquele a quem os deuses querem destruir, primeiro deixam-no louco”. Naquela reportagem daquela famosa capa da Economist, de novembro de 2009, a revista detecta justamente este risco:
3) O período que vai das manifestações de junho de 2013 até o impeachment, que chamo de “Anos da Economia em Vertigem”. O título desse período é autoexplicativo. O país cai vítima justamente dos excessos cometidos no período anterior. A húbris cobra a sua fatura. A mesma Economist detecta essa queda em mais uma capa famosa, de setembro de 2013.
A datação dessas três fases pode variar um pouco, a depender do aspecto da política econômica que estaremos analisando. Mas, de qualquer modo, nos será útil para entender o mindset que determinou o curso das ações tomadas.
Neste primeiro episódio, vamos abordar a pré-história do governo PT, através da análise da Carta ao Povo Brasileiro. Em seguida, veremos a montagem da equipe econômica que tocaria os 3 primeiros anos do governo PT, que fariam possíveis os Anos da Grande Ilusão.
A pré-história: Carta ao Povo Brasileiro
A chamada “Carta ao Povo Brasileiro” é geralmente considerada o ponto de partida do 1º governo Lula do ponto de vista econômico, a prova de que estávamos tratando com um político pragmático, que obedeceria aos cânones ortodoxos da economia. Publicada em 22/06/2002, quando Lula já abria uma vantagem considerável sobre o seu adversário José Serra nas pesquisas (40% contra 21%, segundo pesquisa Datafolha), tinha como intenção acalmar os mercados. Não foi à toa: o dólar atingiu o recorde de R$ 2,85 naquele mês, o que, ajustado pela inflação, corresponderia a R$ 6,00 nos dias de hoje.
A íntegra da carta está aqui. A ideia era mostrar que Lula havia deixado para trás o seu discurso mais raivoso, e iria governar com prudência e sabedoria. Os seguintes parágrafos ilustram o ponto (os grifos são meus):
“O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional. O caminho da reforma tributária, que desonere a produção […] Da reforma previdenciária, da reforma trabalhista…”
“Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. […] Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país.
“Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação. Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores.”
“Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos.”
“A estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados.”
Estas palavras deveriam soar como música aos ouvidos do mercado. No entanto, ninguém estava disposto a pagar antes de receber a mercadoria. O dólar ainda bateria R$ 3,95 (mais de R$ 8,00 em dinheiro de hoje) em outubro, para somente a partir daí engatar um lento caminho de desvalorização, que se encerraria somente em 2011.
Antes de continuarmos, gostaria de chamar a atenção para dois pequenos trechos da Carta aos Brasileiros, que acabaram por se perder no meio das juras de amor à estabilidade. Em ambas, vemos as concessões de Lula ao pensamento de sempre do PT: o crescimento econômico como remédio para a dívida pública, crescimento este alcançado com câmbio depreciado e política industrial.
“A volta do crescimento é o único remédio para impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública.”
“Com a política de sobrevalorização artificial de nossa moeda no primeiro mandato e com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia.”
Não são, de maneira nenhuma, afirmações incorretas no seu fim. O crescimento econômico, de fato, é remédio para todos os males. O problema é como se chega ao crescimento econômico. Essas frases deixam entrever uma preferência por fortes políticas anabolizantes, que têm no Estado o grande coordenador econômico do país, e que veremos ganhar corpo ao longo do seu segundo mandato. No programa do PT, vemos com mais nitidez algumas dessas ideias. Por exemplo (os grifos são meus):
“Nosso governo estará chamado a incentivar uma profunda mudança estrutural nos sistemas produtivos, especialmente aqueles intensivos em alta tecnologia. Por isso, dará especial atenção aos setores que tenham possibilidade de disputar mercados e investimentos internacionais e de vencer a forte concorrência existente. Isso significa que as políticas governamentais deverão também intervir seletivamente na reestruturação dos setores de ponta, a começar do complexo eletroeletrônico, do setor de bens de capital e da indústria química.”
“Apesar da crescente desnacionalização e privatização do setor financeiro brasileiro, há ainda elementos neste sistema que podem e devem ser recuperados na construção de um novo modelo de financiamento capaz de alavancar o crescimento interno e reduzir a dependência de recursos externos. O primeiro deles se refere às instituições especiais de crédito, tais como o BNDES, a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, o Banco do Nordeste (BNB) e o Banco da Amazônia (BASA).“
De qualquer forma, Lula foi muito prudente logo no início de seu mandato. O menos que ele precisava era uma crise de balanço de pagamentos e o descontrole da inflação.
A Equipe Econômica dos primeiros 3 anos
Lula estreou fazendo exatamente aquilo que prometera na Carta aos Brasileiros. Em primeiro lugar, escolheu uma equipe econômica de perfil ortodoxo. Para o ministério da Fazenda, escalou o então prefeito de Ribeirão Preto, Antônio Palocci, que havia feito um trabalho exemplar de saneamento das contas do município. Palocci, por sua vez, escolheu Joaquim Levy para a secretaria do Tesouro, e Marcos Lisboa para a secretaria de Política Econômica. Assim, as duas principais secretarias do ministério estariam sendo comandadas por ortodoxos de quatro costados. Para o BC, Lula escolheu o ex-presidente do BankBoston e deputado eleito pelo PSDB, Henrique Meirelles, que manteve a diretoria de Armínio Fraga. Na última reunião do COPOM do governo FHC, o BC elevou os juros de 22% para 25% para combater um duro processo inflacionário que o país enfrentava naquele momento. Sob os aplausos de Palocci.
No front político, após semanas de negociações, Lula, em uma decisão que teria repercussões alguns anos depois, deixa o PMDB de fora do seu governo, o que vai dificultar a governabilidade. Seria um ministério com a presença maciça de membros do PT.
Entre estes membros, em outra decisão que teria repercussões futuras, nomeia a então secretária de energia do RS, Dilma Rousseff, para o ministério das Minas e Energia, e o economista do PT, Guido Mantega, para o Ministério do Planejamento, e que depois assumiria o comando do BNDES. Também no ministério da Fazenda, Arno Augustin, que terá papel de destaque na fase seguinte do governo, foi nomeado secretário-adjunto.
Assim como na Carta aos Brasileiros o domínio de ideias ortodoxas fez passar quase despercebido o flerte com o desenvolvimentismo, o ministério econômico de Lula, dominado pelos ortodoxos, ofuscou a presença de elementos-chave que estariam prontos para tomar o poder quando chegasse o momento. Fosse um governo inequivocamente ortodoxo, esses elementos sequer chegariam perto de postos governamentais. Mas Lula precisa balancear a sua necessidade de estabilizar os mercados com o seu desejo de implementar uma política desenvolvimentista, que está no DNA do PT. Essa mescla vai lhe permitir dar o salto quando chegar a oportunidade.
A reforma da previdência do governo Lula
Além dos fundamentos macroeconômicos, esta primeira fase do governo do PT se notabilizou também por algum ímpeto reformista. Logo em seu primeiro ano, o governo Lula emplacou uma reforma da previdência dos funcionários públicos.
Foi em 11/dez/2003, após uma tramitação de sete meses pelo Congresso. Lula seguiu a cartilha segundo a qual reformas impopulares devem ser aprovadas no primeiro ano do mandato. Com esta reforma, os servidores aposentados passaram a recolher 11% de seus rendimentos para a previdência, além de extinguir a integralidade dos funcionários públicos admitidos dali em diante, ou seja, o pagamento de aposentadoria igual ao último salário recebido na ativa.
Tratava-se de uma reforma dura com o funcionalismo, somente possível de ser feita em um governo do PT. Foi aprovada com votos do PSDB e PFL, a oposição da época, e com votos contra do PT, incluindo o de Heloísa Helena, que seria expulsa do partido por conta deste episódio e formaria o PSOL. Esta seria a primeira e única reforma de grande porte do governo do PT em seus longos 13 anos no poder.
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A primeira medida de impacto do governo Temer foi a aprovação da PEC do teto de gastos, no final de 2016. Os credores da dívida olharam aquilo e pensaram: “Puxa, agora é pra valer! A disciplina fiscal está inscrita na Constituição! É muito difícil mudar isso, precisa de um quórum muito alto”.
De fato, o saldo positivo nas contas públicas durante 15 anos seguidos foi obtido sem que houvesse uma lei do “superávit primário”. O 2o governo FHC elevou a carga tributária, o governo Lula navegou uma onda de crescimento global e o governo Dilma, até 2014, varreu pra debaixo do tapete despesas (as famosas “pedaladas”), mas todos tinham um compromisso não escrito de manter o superávit primário, compromisso este crível, pois suportado por um track record de vários anos. Tanto era assim que, em 2015, quando o governo mandou pela primeira vez um orçamento prevendo déficit primário, foi um rebuliço tal que tiveram que mandar outro, prevendo superávit. Mas o cristal já estava trincado, principalmente porque começava a vir à tona os truques usados para obter os superávits nos anos anteriores.
Com o fim da era dos superávits primários, era necessário um movimento forte, que recuperasse a credibilidade do governo junto aos seus financiadores. Este movimento foi a PEC do teto de gastos. Inscrito na Constituição, o teto dava a garantia de que os superávits voltariam a ser produzidos no futuro. Era uma questão matemática: com as despesas aumentando somente com a inflação e as receitas aumentando com o PIB nominal, em algum momento estas ultrapassariam aquelas.
Bolsonaro, uma vez eleito, trouxe Paulo Guedes, um fiscalista de quatro costados, para comandar a economia. O ministro até cunhou um termo, os “fura-teto”, para se referir àqueles que, dentro do governo, tramavam despesas além do teto. Até que chegou o mês de outubro de 2021. Pressionado politicamente a encontrar solução para o aumento de gastos no ano seguinte, ano eleitoral, o governo patrocinou a PEC dos precatórios, que, além de postergar o pagamento dessas dívidas, espertamente mudava a data para a medição da inflação usada para o cálculo do teto. Essa mudança abriu um espaço adicional no teto, uma espécie de claraboia.
Guedes jurou que não se tratava de abandonar o teto, mas o estrago já estava feito. Ficou claro para os credores que o fato de ter uma PEC do teto não trazia segurança alguma. Uma outra PEC poderia modificá-la, e não era assim tão difícil obter quórum, se Executivo e Legislativo estivessem irmanados no mesmo objetivo de gastar além dos limites. Ali se quebrou um cristal, assim como havia acontecido em 2015.
O anúncio de uma nova PEC para subsidiar os combustíveis é apenas a confirmação dessa suspeita, a de que a PEC do teto não é um compromisso sério só pelo fato de ser uma PEC. O compromisso fiscal, no final do dia, depende da credibilidade do governo, não de uma lei.
O programa de governo do PT, recém divulgado, afirma, com todas as letras, que vai acabar com o teto de gastos, pois a regra “perdeu credibilidade”. É com dor no coração que falo isso, mas o PT está certo neste caso. O regime fiscal brasileiro perdeu credibilidade, porque fabricamos PECs ao gosto da necessidade do momento. Quem deveria guardar a chave do cofre, se presta a encenar óperas bufas, como o anúncio de ontem. Depois não entendem porque o mercado não vê muita diferença entre Lula e Bolsonaro.