Confesso que tenho “mixed feelings” com relação à Carta em Defesa do Estado Democrático de Direito”, que já conta com mais de 500 mil assinaturas no momento em que escrevo este post. Não porque não concorde com seus termos. De fato, o desafio ao resultado eleitoral, ainda mais de véspera, é claramente uma atitude antidemocrática. Por mais que o sistema de apuração do resultado eleitoral, baseado nas urnas eletrônicas, possa ser alvo de críticas, ainda assim trata-se de um sistema usado há mais de 25 anos, sem que, em nenhuma ocasião, tenha havido evidência de fraude. Trata-se de sistema suficientemente seguro, não 100% seguro. Nenhum sistema o é.
Assinar uma carta defendendo que os resultados das eleições sejam respeitados é algo até óbvio. No entanto, a carta não recebeu o nome “Carta em Defesa dos Resultados Eleitorais” ou “Carta em Defesa das Urnas Eletrônicas”. O título da carta é muito mais abrangente e, por que não dizer, grandiloquente: “Carta em Defesa do Estado Democrático de Direito”.
O Estado Democrático de Direito é algo que vai bem além do respeito aos resultados eleitorais, ainda que os englobem. O Estado Democrático de Direito supõe que a lei deve ser respeitada e, por consequência, todos os que desobedecem à lei devem enfrentar os seus rigores. Os cidadãos de um país em que o Estado Democrático de Direito é respeitado em toda a sua plenitude podem esperar que qualquer um, por mais poderoso que seja, esteja igualmente sob o jugo da lei. Ou seja, a lei deve valer para todos.
Obviamente, não estamos vivendo sob um Estado Democrático de Direito pleno. O atual candidato à presidência pelo Partido dos Trabalhadores teve a sua culpa provada em duas instâncias, e o processo foi considerado íntegro por uma terceira instância. No entanto, com base na interpretação de gravações obtidas ilegalmente, a Suprema Corte do país julgou o juiz de primeira instância do caso como parcial. Para tentar evitar esse desfecho, o ministro Edson Fachin resolveu anular todo o julgamento, com base em uma divergência de foro. E, a partir daí, o atual candidato do PT foi libertado e seus direitos políticos foram restaurados.
É este desconforto que me incomoda em relação à esta carta. Estamos defendendo o Estado Democrático de Direito quando a própria candidatura do PT é uma afronta a este mesmo Estado Democrático de Direito. Claro, formalmente a Suprema Corte devolveu os direitos políticos de Lula, e a Suprema Corte tem a última palavra. Formalmente, o candidato do PT tem o direito de se candidatar. Mas não deixa de ser algo moralmente reprovável, e que fere gravemente o Estado Democrático de Direito. A mensagem é de que a longa mão da justiça não é suficientemente longa para alguns no país.
Por outro lado, a esse respeito, não posso deixar de lembrar a reação do PT ao impeachment de Dilma Rousseff. Chamando de “golpe” um processo legítimo, levado dentro das regras do Estado Democrático de Direito, o PT atacou (e ainda ataca, outro dia Lula voltou a chamar o impeachment de golpe) as bases desse mesmo Estado Democrático de Direito. Na época, comparei a atitude do PT ao de um torcedor que xinga o juiz de ladrão, colocando em dúvida a sua imparcialidade e, portanto, a própria decisão tomada. Em um jogo de futebol, por mais que se reclame do juiz, suas decisões são soberanas.
E é neste ponto que o respeito às regras deve valer para todos. Se o juiz é soberano no caso do impeachment, também deve ser considerado soberano no caso da libertação e recuperação dos direitos políticos de Lula. Não podemos escolher quando vamos respeitar a decisão do juiz, sob pena de tornar a arena do jogo político-institucional um vale-tudo.
É neste ponto que a Carta em Defesa do Estado Democrático de Direito acerta: ao insinuar que não irá aceitar o resultado eleitoral que não lhe favoreça, Bolsonaro, assim como o PT, também ataca as bases do Estado Democrático de Direito. O STF ter libertado Lula me revolta tanto quanto o impeachment revoltou os petistas. É da natureza do jogo democrático discordar do juiz. E é da natureza do Estado Democrático de Direito respeitar o juiz.
Claro que estamos em período eleitoral, e qualquer manifestação será sempre interpretada como apoio a um dos lados. Mas, ao contrário de cartas #elenão que pulularam em 2018, esta carta foca na aceitação do resultado das eleições, o que vale, supostamente, para ambos os lados. Claro que, com seus ataques ao sistema eleitoral, Bolsonaro é o sujeito oculto da presente carta. Com esses ataques, o presidente conseguiu unir contra si todos os que preferem respeitar o juiz da partida, mesmo não concordando com suas decisões. Por isso, não consigo pensar em tática mais errada.
Uma tática mais inteligente seria justamente apontar para a decisão estapafúrdia do STF. Poderia até chamar de “golpe”, como cansa de fazer o PT em relação ao impeachment. “Golpista não sou eu, é o sistema judiciário brasileiro, que restituiu os direitos políticos de um criminoso”, este sim, poderia ser um mote que jogaria os holofotes sobre o seu adversário e dificilmente daria margem para cartas em defesa do Estado Democrático de Direito. Mas acho que é pedir demais para um político que tem na paranoia a base de seu posicionamento na realidade.
O Estadão tem publicado uma série de reportagens sobre a agenda do próximo governo. Na terceira da série, aborda a questão das estatais, trazendo alguns números interessantes a respeito do governo Bolsonaro neste campo:
– Cerca de R$ 155 bilhões foram arrecadados com a venda de subsidiárias de estatais, como a BR Distribuidora e a TAG, da Petrobras.
– Cerca se R$ 75 bilhões foram arrecadados com a venda de participações minoritárias do BNDES em empresas como Petrobras, Vale, JBS, Marfrig e Suzano.
– Cerca de R$ 170 bilhões foram arrecadados com concessões de infraestrutura, o que inclui a descotização das hidrelétricas da Eletrobras em seu processo de privatização.
– A soma acima supera em 15%, em dólar, todas as receitas com privatizações de 1980 a 2018. Claro que não são números comparáveis diretamente, em função da inflação nos EUA no período, mas não deixa de ser um volume absolutamente respeitável.
Do lado negativo, temos a criação da NAV, para substituir a Infraero, e da ENBPar, que substituiu a Eletrobras como holding de Itaipu e Eletronuclear. Essas duas estatais são a demonstração cabal de como é difícil fechar definitivamente uma estatal. A Telebras, que continua entre nós como um zumbi, que o diga. Neste lado negativo, a reportagem acrescenta a retirada da Ceagesp da lista de privatizações, em função de uma rinha pessoal do presidente com o ex-governador. O candidato de Bolsonaro para o governo do estado terá que explicar porque seu padrinho decidiu colocar seus interesses pessoais acima dos interesses dos cidadãos do estado que pretende governar.
De qualquer forma, apesar da pisada de bola na Ceagesp e ter na Eletrobrás a única grande privatização de uma estatal de controle direto (o que, diga-se, não é pouca coisa), o saldo é inegavelmente positivo neste campo. E aqui vem, para contrastar, notinha publicada no mesmo jornal, informando que o PSB de Geraldo Alckmin está propondo para o programa do PT a criação de uma nova estatal, a Amazombras. O nome não poderia ser mais cucaracho para simbolizar ideias dinossauricas, parabéns ao marketing do PSB.
A Amazombras seria uma espécie de Embrapa para a Amazônia, uma empresa de pesquisa. Fica a questão de porque não usar a própria Embrapa para essa finalidade. Claro que essa questão é apenas retórica. Sabemos porque o PSB está propondo outra estatal. Trata-se de uma visão de mundo: o Estado precisa intervir na atividade econômica diretamente, através de empresas estatais. Pouco importa a eficiência, o que importa é a ideologia. Que se exploda o cidadão pagador de impostos.
Estatais diminuem a eficiência econômica e aumentam a concentração de renda, ao privilegiar grupos próximos ao poder. Há formas bem mais eficazes e menos intervencionistas de o Estado regular a atividade econômica. Neste ponto específico, a diferença entre o governo do PT e o governo Bolsonaro é da água para o vinho.
O presidente do Chile anunciou que, a partir de 1o de setembro próximo, nenhum chileno vai precisar pagar pela assistência médica pública.
O Chile adotará o modelo brasileiro, em que todos os cidadãos têm acesso gratuito ao sistema de saúde. Segundo a matéria, pessoas abaixo de 60 anos e que ganham acima de 420 dólares mensais precisam pagar por parte de seu atendimento. Com o acesso universal, não mais.
É interessante observar os números do Chile e compará-los com os do Brasil. Segundo a reportagem, 20% dos chilenos não usam o sistema público. Aqui no Brasil, essa proporção é de cerca de 25%. Ou seja, mesmo sendo de graça, há proporcionalmente mais brasileiros que preferem pagar por um plano de saúde do que depender do sistema público, o que pode indicar que o sistema de saúde chileno presta, em média, melhores serviços do que o sistema brasileiro. (Aqui não estou ajustando pelo Gini e pela renda per capita dos dois países, o que, provavelmente, traria resultados ainda mais desfavoráveis ao Brasil, dado que os 25% mais ricos no Brasil devem ter renda abaixo dos 20% mais ricos no Chile).
Vamos agora ao problema do financiamento desta iniciativa. Há um problema inicial: provavelmente, o custo do sistema aumentará. Hoje, os co-pagamentos certamente inibem o uso indiscriminado do sistema. Com a eliminação do co-pagamento, há um moral hazard envolvido, pois o custo para usar o sistema passa a ser zero. Há quem defenda que, em se tratando de saúde, o custo não deveria ser um impeditivo para usar o sistema. Ok, justo. Mas que o custo de manutenção do sistema vai aumentar, não há dúvida.
Para manter o nível atual de excelência do atendimento público com demanda maior, outra fonte de recursos deverá ser encontrada para repor o dinheiro que será deixado de ser arrecadado com os co-pagamentos. Só há duas fontes possíveis: impostos e dívida, que nada mais é do que impostos diferidos (as gerações futuras precisarão pagar, com mais impostos, a dívida feita hoje. A não ser que se financie a dívida com inflação). No caso do Chile, ambos os casos são bem tranquilos: a carga tributária é de cerca de 10 pontos percentuais do PIB menor que a brasileira, e a dívida pública é de apenas 30% do PIB, contra 80% no Brasil. Portanto, espaço tem. A questão é quem paga.
Como mencionamos acima, quem ganha abaixo de 420 dólares mensais já não paga para usar o sistema. Este patamar de renda é equivalente à renda média do brasileiro. Como a renda per capita chilena é 65% maior que a brasileira, a renda média do chileno deve ser de uns 700 dólares mensais. Portanto, esse patamar de 420 dólares é 40% abaixo da renda média. Seria algo como R$ 1.300 mensais no Brasil. Ou, grosso modo, um salário mínimo aqui. Portanto, os mais pobres no Chile já são beneficiados com a isenção.
Com a isenção geral, “famílias de classe média”, no dizer da matéria, serão beneficiadas, e economizarão cerca de 300 dólares por ano com saúde. O financiamento deste gasto adicional somente não concentraria renda se o aumento marginal de impostos ocorresse sobre a renda do andar de cima. O aumento da dívida pública afeta todos os chilenos igualmente. A matéria, infelizmente, não traz detalhes a respeito.
Posso estar enganado, mas desconfio que, daqui a uma geração, os chilenos ainda estarão comemorando o acesso universal à saúde (#vivaloSUS), mas estarão coçando a cabeça para entender porque o sistema de saúde e a distribuição de renda no país pioraram.
Ontem, o governo federal publicou suas contas. Novamente, estamos no azul. Nos últimos 12 meses, o superávit primário foi de 0,8% do PIB e, provavelmente, vamos fechar o ano com superávit primário pela primeira vez desde 2013.
Daí, alguém pode perguntar: se estamos produzindo superávit primário, por que o mercado está tão nervoso com as contas públicas? Por que não se para de falar em “risco fiscal”? O diabo, como sempre, mora nos detalhes.
Vamos comparar o primeiro semestre deste ano com o primeiro semestre do ano passado. Comparando os dois períodos, vamos ver um aumento real (acima da inflação) de 16% nas receitas e um aumento real de somente 1% nas despesas. Isso explica, em boa parte, o superávit primário deste ano. E como foram obtidos esses resultados?
Do lado das receitas, o grande destaque foi a rubrica “receitas não administradas pela Receita Federal”, que cresceram nada menos do que 55% reais no período. Refere-se, basicamente, à receita com a privatização da Eletrobrás e aos dividendos das estatais. Ou seja, o aumento da receita é “one off”, como dizemos, não é recorrente. Para a sua continuidade, dependemos de outras privatizações grandes e da continuidade dos preços do petróleo nas alturas.
Do lado das despesas, observamos que as despesas com pessoal recuaram 12% no período em termos reais e “outras despesas obrigatórias” recuaram 17%, também em termos reais. Bem, a questão do pessoal, na ausência de qualquer reforma administrativa, se baseia em um congelamento de salários que, obviamente, não tem como se sustentar no tempo. Algum tipo de reajuste deverá ser dado no futuro, eliminando esse “ganho”. E nas “outras despesas obrigatórias” temos já o efeito da “rolagem” (para não dizer calote) dos precatórios. Neste semestre, houve uma queda de 60% no pagamento de precatórios em relação ao semestre anterior. Sabemos, no entanto, que essa conta deverá ser paga algum dia, está apenas sendo adiada.
Então, ficamos assim: o governo recebeu algum dinheiro adicional que não vai se repetir, e empurrou com a barriga alguns itens que voltarão a assombrar as contas públicas no futuro. Esse “superávit primário” pode ser uma boa peça de propaganda, mas precisa de algo mais para convencer os credores da dívida.
Tenho lido frequentemente comentários na seguinte linha: Bolsonaro só não ganha a eleição se as urnas forem fraudadas. O próprio Bolsonaro incentiva esse tipo de interpretação, com sua campanha sobre a fragilidade das urnas eletrônicas.
Essa convicção de que ”Bolsonaro só perde com fraude” nasce de “evidências” como as motociatas, o fato de Lula “não poder sair para eventos públicos”, ou “os eventos públicos de Lula estarem esvaziados”, ou as multidões que cantam o nome de Bolsonaro sempre que ele aparece em público, de acordo com vídeos estrategicamente compartilhados. As pesquisas que dão vantagem a Lula fariam parte da “grande fraude”. Toda a mídia e institutos de pesquisa estariam comprados pelos bilhões roubados pelo PT, que teria recursos infinitos para colocar o sistema político, empresarial e midiático no bolso.
Nessa linha de raciocínio, pergunto: para que então termos eleições? Para eleger o presidente, bastaria medir o número de motos em motociatas, o número de aparições em vídeos com multidões ovacionando, ou o número de pessoas ocupando a Paulista em showmícios. Teríamos, assim, uma medida mais honesta e objetiva de quem o povo quer como presidente da república.
A convicção de que “Bolsonaro só perde com fraude” torna as eleições absolutamente dispensáveis, uma perda de tempo. Trata-se, na verdade, do tipo de convicção que não conversa com o processo democrático. Para essas pessoas, é simplesmente inadmissível que seu político predileto não tenha a maioria dos votos. No seu universo mental, somente a fraude explica um resultado adverso. Eleições, nesse contexto, não passam de uma burocracia dispensável.
Claudia Safatle repercute, em sua coluna no Valor Econômico, a virada das estatais sob os governos Temer e Bolsonaro, em contraste com o desastre das gestões petistas. Safatle conhece bem o assunto: junto com Ribamar Oliveira, escreveu o livro Anatomia de um Desastre, sobre os anos Dilma, leitura obrigatória para quem quiser ter um retrato daqueles tempos, e uma das fontes que utilizei para a série de posts A Economia na Era PT.
De um prejuízo de R$ 40 bilhões em 2015, hoje as estatais geram lucro de R$ 180 bilhões. A estrela, como não poderia deixar de ser, é a Petrobras, que anunciou mais um lucro recorde nesse trimestre. Safatle faz apenas uma descrição de todas as iniciativas tomadas para essa virada, mas acho que não chega ao fundo da questão.
Quem olha os números frios pode ser tentado a concluir que se trata apenas de incompetência ou de roubalheira. Também é, mas creio que se trata de algo mais. A questão de fundo é a visão de mundo do PT. Segundo essa visão, as estatais são um instrumento para a implementação de políticas públicas, com a grande vantagem de não dependerem do processo chato de aprovação do orçamento no Congresso. A Petrobras perdeu muito, mas muito mais dinheiro com o congelamento de preços dos combustíveis (política monetária), com investimentos em refinarias e outras iniciativas (política industrial e política externa) e com manobras envolvendo o Tesouro para adiantamento de dividendos (política fiscal).
Tenho defendido aqui que, de fato, se uma estatal não serve para fazer política pública, então por que raios precisa ser estatal? Não por outro motivo, Bolsonaro já anunciou que vai trabalhar pela privatização da Petrobras em um segundo mandato. E, também, não por outro motivo, Lula e os petistas criticam toda e qualquer privatização. Trata-se de uma visão de mundo. A qual, aliás, é compartilhada pela maioria dos brasileiros.
Ter estatais que “dão lucro” é quase uma contradição em termos. Significa que não estão cumprindo a única função que lhes dá razão de existir, que é servir como instrumento para o governo implementar suas políticas por fora do orçamento. Lula e o PT estão aí para nos lembrar disso.
A tabela abaixo foi tirada da primeira página do caderno de economia do Estadão do dia 04/01/1993. Sim, os jornais publicavam a cotação do dólar paralelo naquela época.
Sempre que via essa tabela, me perguntava porque a polícia não ia atrás de quem fornecia aquela informação para o jornal. Afinal, dólar paralelo é crime financeiro. Que um crime financeiro desfilasse diariamente nas páginas de economia, ao lado de outros indicadores respeitáveis, nos dá um pequeno sabor do que era o Brasil daqueles tempos.
Lembrei disso quando vi o gráfico abaixo, em um relatório de hoje do J P Morgan. O dólar paralelo na Argentina atingiu 150% de ágio sobre o dólar oficial, maior ágio desde o final da década de 80.
O ágio do dólar paralelo é fruto de um dólar oficial fora de lugar. O governo argentino está praticamente sem reservas internacionais, o dólar é mercadoria escassa, mas o preço oficial não reflete isso. O governo Alberto Fernandez não deixa o dólar flutuar porque adicionaria ainda mais gasolina na inflação. Seria uma mistura explosiva, que poderia rapidamente transformar uma inflação alta em uma hiperinflação.
Qual a saída para os argentinos? Equilibrar o orçamento público, de modo a conseguir estancar a monetização da dívida (o Banco Central financiando o Tesouro). Difícil? Sim. Mas como disse Anne Krueger no artigo citado em meu post anterior, adiar a resolução de um problema só serve para agravá-lo.
Difícil identificar porque a situação piorou tanto em tão pouco tempo. Mas é assim que as crises financeiras acontecem. Primeiro lentamente, depois de repente. Há uma espécie de momento-chave, em que cai a ficha dos agentes econômicos, e um processo linear torna-se exponencial.
O Brasil está longe da situação que aflige agora o nosso vizinho austral. Temos grande quantidade de reservas, há compradores para a nossa dívida pública (a um preço salgado, mas há) e um banco central com credibilidade. Mas se me perguntarem em que estrada estamos, diria que estamos na estrada que leva a Buenos Aires. Ainda distantes do destino, mas a estrada é essa. Para dar a meia-volta, os remédios são amargos, mas menos amargos do que daqui a um, dois ou cinco anos, se nada for feito.
Estamos ainda na fase em que a piora se dá lentamente. Em algum momento, se continuarmos a caminhar nessa estrada, chegaremos na fase do “de repente”. E todos se perguntarão “mas o que aconteceu???”. Nada. Teremos apenas chegado ao nosso destino.
Anne Krueger, além de ter ocupado cargos importantes em instituições multilaterais, é analista respeitada nos meios acadêmico e financeiro. Em artigo no Valor de Hoje, Krueger descreve as agruras vividas pelo Sri Lanka, um país que adotou varia políticas inconsistentes e agora colhe os frutos: inflação, recessão, desabastecimento e instabilidade política. A tese de Krueger é que os países devem corrigir o mais rapidamente possível as inconsistências de suas políticas. Adiar o remédio só piora a doença, exigindo remédios ainda mais amargos mais à frente. Nada que já não saibamos.
Mas o que me chamou a atenção foi o último parágrafo de seu artigo. Anne Krueger coloca o Brasil de 2003 como exemplo positivo de país que fez a lição de casa e colheu bons frutos depois. Quem era o presidente?
Paul Volcker, em entrevista de 2008 que tive a oportunidade de resgatar no último artigo da série sobre a economia na era PT, afirmou exatamente a mesma coisa, que o que o Brasil havia feito desde 2003 era notável.
Tenho ouvido de várias casas de análise gringas que a imagem de Lula na comunidade financeira internacional é positiva. Seu governo, independentemente das condições externas favoráveis, é lembrado como responsável. Anne Krueger e Paul Volcker, que não podem ser acusados de “esquerdistas”, comungam dessa visão.
Aqui não faço julgamento, só constato. É um fato que a imagem de Lula é positiva para o investidor estrangeiro. Dilma é a grande ausente dessas análises, é como se não existisse, ou como se não tivesse nada a ver com Lula.
E, por incrível que pareça, a campanha de Bolsonaro também esqueceu Dilma (pelo menos até o momento) para se perder em uma discussão sem chance de vitória a respeito das urnas eletrônicas. Todas as pesquisas mostram que os temas econômicos (inflação e desemprego) são muito mais importantes hoje do que corrupção. No entanto, ao invés de atacar os pontos fracos na economia do PT, Bolsonaro fica insistindo na tese do “ladrão”, quando a corrupção não tem o mesmo apelo de 4 anos atrás.
Dilma é o ponto fraco do PT, não Curitiba. Enquanto isso, Lula nada de braçada, surfando na onda do seu governo de 20 anos atrás.
O Brasil é um país que, a cada temporada, adere à dieta da moda com entusiasmo, para desistir logo adiante. A última dieta foi o teto de gastos, abandonada, na prática, pelo governo Bolsonaro.
O que não falta no Brasil são regras fiscais. Regra de Ouro, Lei da Responsabilidade Fiscal, superávits primários, teto de gastos. Uma a uma, essas regras fiscais foram ficando pelo caminho, como memoriais das boas intenções de que o inferno está repleto.
Quando Lula afirma que a lei do teto só tem utilidade para governos irresponsáveis, ele tem razão. Aliás, a regra só foi aprovada no governo Temer justamente por causa da irresponsabilidade dos governos do PT que o antecederam. A ideia era ter uma regra inscrita na Constituição, de modo que fosse muito difícil mudá-la. Não contavam com a astúcia de Rodrigo Pacheco, Arthur Lira e seus companheiros de Congresso, que aprovam PEC como quem troca de camisa.
Lula diz que vai acabar com a regra do teto. Na verdade, Lula vai dar-lhe um enterro digno, dado que, hoje, trata-se de um cadáver insepulto, fedendo na sala. A partir do ano que vem, teremos a inauguração de uma nova regra fiscal, chamada de “La garantia soy yo”. Provavelmente não vai funcionar, como todas as outras. Mas, pelo menos, não perderemos tempo fazendo de conta que estamos seguindo uma dieta rígida. Pelo direito de ser gordo!
O professor Rodrigo Zeidan publicou um curto artigo na Folha, citando uma série de artigos acadêmicos que embasariam o desastre do governo Bolsonaro na administração da pandemia no país.
À parte o tom virulento do artigo, que o torna mais um panfleto partidário do que uma análise fria da situação, as citações do professor Zeidan são de difícil localização. Quer dizer, deve ser minha falta de jeito para procurar artigos acadêmicos. Dos artigos citados, só consegui achar um até o momento, More than Words: Leaders’ Speech and Risky Behavior During a Pandemic, de Ajzenman, Cavalcanti, Da Mata, analisando o efeito do discurso do presidente Bolsonaro em 15/03/2020 sobre o distanciamento social, achando um menor distanciamento após o discurso nos municípios onde Bolsonaro havia recebido mais votos.
Eu já conhecia este paper, e o seu problema, como todos os outros citados pelo autor do artigo, é ligar este fato (falta de distanciamento ou discursos do presidente) com o real aumento dos óbitos. Há, mais entre os bolsonaristas do que em outros grupos da população, dúvidas sobre a real eficácia do distanciamento social, do uso de máscaras e de vacinas como medidas para o combate à transmissão do vírus da Covid-19. Ligar o Bolsonarismo à não adoção de distanciamento social, ou da máscara ou de vacinas, portanto, é chover no molhado. O que realmente importa, no final do dia, é se morreram mais pessoas por conta deste fato. Ainda não vi nenhum artigo que fizesse essa ligação direta. Estamos em julho de 2022, já nos estertores da pandemia, e temos dados mais do que suficientes para fazer este tipo de estudo. Resolvi então, eu mesmo, armado de uma poderosa planilha Excel, tentar concluir algo com os dados até o momento.
A pergunta que este despretensioso artigo tem o objetivo de responder é a seguinte: teriam os bolsonaristas chegado a óbito em maior número do que a média da população durante a pandemia? Notem que não vamos entrar no mérito sobre medidas de prevenção, vacinas, discursos do presidente. Nada disso. A coisa é a mais simples possível: analisando o perfil dos óbitos, é possível tirar alguma conclusão?
Metodologia
Para identificar os bolsonaristas, usarei a mesma metodologia do paper citado acima: verificarei, município por município, a votação de Bolsonaro. Temos dados de óbitos por município, temos as suas populações e temos a votação. Basta procurar identificar se há alguma correlação positiva entre essas votações e o número de óbitos por Covid-19 nesses municípios.
Vamos a um exemplo numérico teórico para entender o conceito. Digamos que tenhamos 3 municípios com os seguintes números de óbitos acumulados até o momento (por milhão de habitantes):
Município A: 2.000
Município B: 2.375
Município C: 3.625
Agora, vamos verificar a votação dos 4 principais candidatos nestes 3 municípios:
Para compatibilizar esta tabela de votação com os óbitos dos municípios, precisamos estimar coeficientes que expliquem os óbitos (nossa variável dependente) com as votações recebidas pelos candidatos (nossas variáveis independentes). Podemos representar essa estimação pela equação a seguir:
As nossas incógnitas são os coeficientes a, b, c e d, que serão estimadas por uma regressão linear (mínimos quadrados) no Excel. Em nosso exemplo, para que a conta feche, os valores dos coeficientes devem ser os seguintes: a=30, b=15, c=5 e d=50. Veja:
Município A: 30 x 20 + 15 x 10 + 5 x 50 + 50 x 20 = 2.000 óbitos
Município B: 30 x 15 + 15 x 15 + 5 x 40 + 50 x 30 = 2.375 óbitos
Município C: 30 x 15 + 15 x 5 + 5 x 20 + 50 x 60 = 3.625 óbitos
Note que cada ponto percentual de voto em Bolsonaro representou 50 óbitos/milhão, enquanto cada ponto percentual de voto em Haddad representou apenas 5 óbitos/milhão. Este é apenas um exemplo teórico, montado para a conta dar exata. Mas veremos que seus resultados não são somente teóricos.
A primeira regressão, usando o total de óbitos de cada município e a votação dos 4 principais candidatos no 1º turno, resultou nos seguintes coeficientes (aproximados):
Ciro: 30
Alckmin: 16
Haddad: 7
Bolsonaro: 48
Rodei a regressão forçando o intercepto a zero, para repetir, da maneira mais fidedigna possível, o exemplo dado acima.
Para os econometristas de plantão, estes resultados têm p-value próximo de zero. Ou seja, são robustos, dentro dos limites do método utilizado. No final, vou sugerir alguns ajustes que não faço aqui por falta de instrumentos.
O resultado é muito próximo quando se controla pelo PIB/capita dos municípios. Tomei esse cuidado porque houve claramente uma clivagem de renda nas eleições de 2018, e talvez a regressão pudesse estar contaminada por esta clivagem.
Podemos observar que cada ponto percentual de voto em Bolsonaro resultou em 48 óbitos durante a pandemia, contra apenas 7 no caso de votos em Haddad. Ou, cada ponto percentual de votos em Bolsonaro significou 7 vezes mais óbitos, em cada município, do que cada ponto percentual de voto em Haddad.
Vamos à interpretação correta desse resultado: na média, considerando todos os municípios do Brasil, aqueles que tiveram mais óbitos foram aqueles com maior votação em Bolsonaro. O número em si NÃO SIGNIFICA que as pessoas morreram PORQUE votaram em Bolsonaro. Não há aqui nenhuma relação de causalidade, há apenas uma correlação. Vamos, mais à frente, gastar um tempo investigando possíveis interpretações para este resultado. Antes disso, vamos explorar algumas variações desse resultado.
Uma outra forma de vermos o mesmo resultado é rodarmos duas regressões separadas, uma com a votação de Bolsonaro e outra com a de Haddad, obteremos os seguintes resultados:
Agora não forçamos o intercepto a zero. Os números acima representam o seguinte: no caso da votação de Bolsonaro, o número-base de óbitos, na média, começa em 1.038/milhão, e cada ponto de voto em Bolsonaro significa 38 óbitos/milhão adicionais. Já no caso de Haddad, o número de óbitos começa em 3.907/milhão, e diminui em 34 óbitos/milhão a cada ponto percentual de voto em Haddad.
É interessante fazer recortes temporais e geográficos neste número.
Para um recorte temporal, segmentei esse coeficiente de Bolsonaro em semestres, conforme a tabela a seguir:
Podemos observar que a influência do voto em Bolsonaro no número de óbitos começa a ganhar força a partir de 2021. Para entender melhor, vamos comparar com a segmentação temporal do número de óbitos na pandemia.
Na última coluna da tabela, podemos observar que, em 2020, ocorreu 29% do total de óbitos até o momento na pandemia. No entanto, apenas 13% dos óbitos relacionados com o voto em Bolsonaro ocorreu em 2020. Algo começa a ocorrer a partir de 2021 para acelerar esse processo. E esse algo, na minha opinião, é a vacina. Mas vamos deixar as conclusões para a sessão de conclusões.
Do ponto de vista geográfico, também é interessante observar que os números de Bolsonaro diferem de estado para estado. É o que podemos ver na tabela abaixo, em que apresentamos o coeficiente de Bolsonaro DENTRO de cada estado:
Observe que em estados como Santa Catarina, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, o coeficiente do Bolsonaro é muito menor que o da média nacional, indicando que, nesses estados, não houve tanta influência do voto em Bolsonaro no número de óbitos. Por outro lado, em estados como Goiás, Minas Gerais, Ceará e Bahia, o coeficiente é bem maior, indicando uma influência maior do voto no número de óbitos. Difícil explicar por que isso acontece. Tentei fazer alguma correlação com a votação de Bolsonaro em cada estado (terceira coluna) ou o desvio-padrão da votação entre os municípios do estado (quarta coluna), mas não há como se concluir nada.
Conclusões
Todos os estudos citados pelo professor Rodrigo Zeidan no início deste post procuram, de alguma maneira, ligar o presidente Bolsonaro a comportamentos supostamente deletérios para o controle da pandemia. Na minha opinião, trata-se de uma abordagem fraca, por dois motivos:
Apesar de praticamente haver unanimidade científica em relação à efetividade de certos comportamentos (distanciamento social e uso de máscaras, por exemplo) para evitar a piora das condições epidemiológicas, esta não é uma unanimidade social. Há, principalmente entre os bolsonaristas, mas não somente entre eles, sérias dúvidas sobre este tipo de conduta. Relacionar a falta dessas condutas ao aumento de óbitos é um passo não aceito por todos.
Ligar as falas e atitudes do presidente ao comportamento de seus eleitores é algo que necessita de um aparato econométrico de difícil obtenção. O paper citado no início tem o seu mérito nesse sentido, mas ainda se trata de um pre-print sem revisão de pares, mesmo dois anos depois de sua primeira publicação, o que demonstra a dificuldade.
Por tudo isso, acho muito mais simples simplesmente ligar o número de óbitos diretamente à votação de Bolsonaro (e dos outros candidatos) nas eleições. Essa metodologia ultrapassa as duas dificuldades colocadas acima:
Estamos analisando diretamente o número de óbitos por Covid-19, independentemente do que levou à sua ocorrência, se foi falta de distanciamento, máscara, vacina, ou nenhuma dessas hipóteses. A morte é o resultado menos desejado por todos, bolsonaristas ou não, de modo que se trata de algo inconteste. E, com relação ao sempre citado problema da sub ou supernotificação (a depender de que lado se está), isto é irrelevante para este estudo, dado que estamos comparando Brasil com Brasil. A não ser que suponhamos que cidades mais bolsonaristas superestimaram o número de óbitos, o que não orna com a narrativa geral do próprio presidente e seus seguidores.
Não precisamos estabelecer relação causal entre as falas e atitudes do presidente com certos comportamentos de seus seguidores. Não importa o comportamento, o fato objetivo é que morreram mais pessoas em municípios que votaram mais em Bolsonaro.
É neste ponto que vem a parte mais importante deste post. Preste atenção.
Até o momento, o que fizemos foi um exercício de econometria básica. Não há, de maneira alguma, com base nesse exercício, como estabelecer relação de causalidade entre as falas e atitudes do presidente com o comportamento de seus eleitores. A única relação que se estabeleceu foi entre o voto em si e os óbitos posteriores. Pode ser que os eleitores de Bolsonaro sigam cegamente o que ele fala, mas há outra hipótese.
Em econometria, chamamos de variável oculta uma que não conseguimos medir, mas que influencia os resultados das variáveis que estamos medindo. Assim, encontramos uma relação entre as variáveis que estamos medindo, mas uma não causa necessariamente a outra. Há uma variável oculta que influencia o comportamento das duas. A hipótese aqui é que o eleitor de Bolsonaro escolheu Bolsonaro pelo mesmo motivo que escolheu adotar outros comportamentos que, no final, levaram ao óbito mais pessoas durante a pandemia. Existe um mindset por trás dessas escolhas, uma mistura, talvez (e aqui, assumo, já estou extrapolando as linhas desse pequeno estudo) de teorias da conspiração, desconfiança da mídia tradicional e da ordem institucional que tão bem caracterizam Bolsonaro e seu entorno. O ponto é que não precisava Bolsonaro ter falado em máscaras, distanciamento social ou vacinas. Estes foram temas recorrentes para este tipo de mindset, e Bolsonaro, digamos, foi apenas um catalisador dessa corrente. Serviu como um reforço pelo cargo que ocupa, mas longe de ser a origem do problema.
Enquanto se tratava de máscaras e distanciamento, a coisa estava mais para folclore do que algo realmente decisivo para os rumos da pandemia. O jogo começou a virar com a vacina. Aqui temos o erro fundamental de Bolsonaro e do bolsonarismo.
Como vimos na tabela 3 acima, os coeficientes que relacionam a votação de Bolsonaro aos óbitos são negligíveis em 2020. Ou seja, aparentemente não houve, neste primeiro ano, realmente nenhuma influência de seu discurso sobre o que interessa, o número de óbitos. A partir de 2021, no entanto, a coisa muda de figura. E a grande virada chama-se VACINA.
Aqui não se trata somente do discurso do presidente, aquela história de “liberdade” e “não vamos obrigar ninguém a tomar uma vacina experimental”. É que esse discurso encontrou uma forma peculiar de ver o mundo por parte dos seus eleitores mais fieis. É possível que, entre os eleitores de Bolsonaro, esteja a maioria dos que se recusaram, no início, a tomar a vacina. Pelo menos, é o que se deduz dos números acima. Assim, o discurso do presidente não prejudicou o país como um todo, mas somente aqueles que já pensavam como o presidente.
Bolsonaro fez exatamente o que seus eleitores mais fiéis esperavam que ele fizesse. De uma coisa não se pode acusar o presidente, de não ser fiel ao seu modo de pensar o mundo, compartilhado com seus eleitores. O triste é que, no caso das vacinas, isso aparentemente custou vidas.
Um esclarecimento final: quando comecei o exercício acima, não sabia o que ia encontrar. Estabeleci um compromisso comigo mesmo de publicar o que encontrasse, fosse o que fosse. Aí está.
Post Scriptum
Reconheço que este é um estudo limitado, produzido com as ferramentas disponíveis no Excel. Seria interessante que alguém que entenda de econometria pudesse pegar esses dados e fazer algo mais refinado em um software dedicado, tomando cuidados técnicos como efeitos fixos de municípios e estados, além de usar outras metodologias que não o de mínimos quadrados, que não é das mais robustas.