Pobres, sempre os tereis

Quando taxa de título público alcança o status de manchete principal de jornal não especializado em finanças, é que a coisa já passou do ponto faz tempo.

Para quem labuta no mercado financeiro, isso não é novidade. Venho falando do problema do financiamento da dívida pública há já algum tempo. É que essas coisas funcionam como a história do sapo na panela. Pra quem não conhece: para matar um sapo, não adianta colocá-lo em uma frigideira. O sapo sente a mudança de temperatura imediatamente e pula fora da panela. Mas se você colocar o sapo em uma panela em banho maria em fogo baixo, a temperatura vai aumentando aos poucos. O sapo vai se acostumando com as novas temperaturas até que chega em um determinado momento em que morre cozido sem reação. É o que podemos constatar no gráfico da manchete, que mostra a evolução da taxa real de juros dos títulos brasileiros mais longos: a taxa vai subindo, subindo, e vamos nos acostumando aos novos níveis, até que chegará um momento em que o sapo vai morrer, ou seja, faltará quem queira continuar a financiar a dívida a prazos longos, qualquer que seja a taxa. A manchete do Estadão é só um sinal de que o sapo está incomodado com a situação.

Apenas para ter uma ideia da situação: estamos hoje pagando 6% ao ano além da inflação para financiar nossa dívida em prazos mais longos. Considerando que nossa relação dívida/PIB é de 80%, a dívida nos custa quase 5% do PIB todo ano para ser rolada, além da inflação. Considerando um crescimento do PIB de 2% ao ano em termos reais, precisaríamos de um superávit primário de 3% ao ano somente para manter a relação dívida/PIB estável.

Como comparação, os títulos americanos pagam 1% acima da inflação. Com uma relação dívida/PIB de 130%, o custo de carregamento da dívida é de 1,3% do PIB. No Chile, os títulos pagam 3% acima da inflação. Com uma relação dívida/PIB de 35%, o carregamento da dívida custa aos chilenos cerca de 1% do PIB. Ou seja, se Estados Unidos e Chile crescerem 2% ao ano, sua relação dívida/PIB fica estável mesmo que façam déficits de 1% do PIB.

E por que chegamos neste ponto? Porque a regra do teto de gastos, que foi feita justamente para garantir que a dívida pública não entre em trajetória explosiva ao longo do tempo, foi, na prática, destruída por este governo, abrindo caminho para que o próximo também ignore qualquer regra de disciplina fiscal. Bastou a produção de um superávit primário no ano passado, em grande parte por conta da surpresa inflacionária, para que políticos de todas as cores achassem que já poderiam soltar o cinto, gastando o “dinheiro que sobrou”. O problema é que não sobrou nada, na verdade está faltando muito para controlar o crescimento da dívida pública. O resultado é taxa de juros mais alta, mais despesa financeira, menor crescimento econômico e maior dificuldade para trazer a inflação a níveis civilizados.

Muitos acusam essa visão de ser “financista”, de não olhar para as necessidades dos mais pobres. Não é verdade. Essa visão se preocupa não somente com os pobres de hoje, mas com todos os pobres do futuro. Se existe o nível de pobreza que vemos hoje, é porque, no passado, os que têm visão humanitária, não “financista”, não se preocuparam com os pobres do futuro. Na verdade, os grandes responsáveis pela pobreza de amanhã são justamente os que se dizem muito preocupados com os pobres de hoje. Com suas políticas imediatistas, estão fabricando a pobreza do amanhã. “Pobres, sempre os tereis”, diz Jesus em uma passagem. Aqui no Brasil, isso soa como uma profecia.

40 anos da tragédia do Sarriá

Outro dia fiquei surpreso ao ser lembrado, por matérias em jornais, que fazia exatos 20 anos que havíamos sido pentacampeões. Simplesmente não guardei a data. Assim como não guardei a data de outras emoções no futebol, positivas ou negativas, que tive durante meu mais de meio século de vida. Só uma data, no entanto, resta indelével na minha memória futebolística: 05/07/1982.

No dia 5 de julho de cada ano, a memória daquele jogo me vem à mente. Ao contrário dos outros jogos do Brasil na Copa, havia decidido assistir a este com minha família, ao invés de com meus amigos. Certamente foi esse detalhe que fez toda a diferença. Cada um terá a sua própria explicação esotérica para o inexplicável, a minha é essa. Só assim para entender como aquele time mágico pode ter perdido para uma tosca Itália, que havia se classificado aos trancos e barrancos na fase de grupos.

Raras vezes vi um time que jogasse como uma companhia de balé em perfeita performance no palco, como aquela seleção. Tenho lembrança do Santos de Neymar e Ganso em 2010, e cada torcedor terá a lembrança de um ano de ouro de seu time de coração. Mas não, nada se compara à química absolutamente mágica de três gênios do futebol, que colocariam Neymar no bolso: Zico, Sócrates e Falcão. E todos os outros coadjuvantes, à exceção, talvez, do goleiro, seriam titulares hoje em suas posições. E sobre o técnico, não há o que comentar.

Aquele time imbatível perdeu. Alguns dizem que poderia ter jogado com a regra debaixo do braço, já que o empate era suficiente para a classificação. Eu já acho que aquele dia era da Itália. Paulo Rossi fez 3 gols, e faria tantos quantos fossem necessários para arrancar aquela vitória improvável. Futebol é essa coisa misteriosa, em que os deuses entram em campo para derrubar as mais profundas convicções. Ex-post são muitas as explicações para o ocorrido. Nenhuma delas realmente convence. Foi, porque tinha que ser.

O futebol é um esporte de resultados. O derrotado normalmente cai no esquecimento. A seleção de 82, por algum estranho motivo, quebra essa regra. A Itália foi a campeã, mas é da seleção brasileira que se tem lembrança. O Brasil já saiu derrotado de muitas Copas e, de todas essas seleções derrotadas, mal se tem lembrança. Eu não consigo repetir a escalação da seleção de 2018, mas, com algum esforço, a seleção de 82 brota da minha memória, como figurinhas de um álbum de recordações amargas e doces a um só tempo. Não, futebol não é só resultados.

Depois de Sarriá, a seleção já foi campeã duas vezes. Vibrei muito com os gols de Ronaldo contra a Alemanha há 20 anos, mas nada se compara à minha emoção com o gol de empate de Falcão. Na minha memória seletiva, a Copa de 82 acaba ali, naquela sensação indescritível. Obrigado Zico, Socrates, Falcão, Telê e companhia.

O sentido do voto nulo

Cada vez mais leio por aí a seguinte tese: os votos nulos, brancos ou as abstenções no 2o turno servirão para eleger o Lula. A provar a tese, estariam aí as eleições do Peru e Colômbia, em que poucos votos separaram o vitorioso do perdedor. Nos dois casos, candidatos da esquerda venceram. Caso as abstenções não fossem em número tão alto, o candidato da direita teria vencido.

Faz sentido esse raciocínio? Não, não faz nenhum sentido. E explico porque.

O raciocínio parte do pressuposto de que quem decide se abster no segundo turno, na verdade tem mais rejeição a Lula do que a Bolsonaro. Mas, por uma espécie de “isentismo doentio”, se recusa a votar em Bolsonaro, mesmo achando o candidato menos ruim do que Lula.

Ora, esse pressuposto está incorreto de duas maneiras.

A primeira, mais óbvia, é de que se uma pessoa decide se abster, essa pessoa NÃO acha Lula pior que Bolsonaro. O voto nulo (ou a abstenção) é justamente o resultado de uma avaliação em que o eleitor concluiu que AMBOS os candidatos são IGUALMENTE ruins. Caso achasse que um é suficientemente menos ruim que o outro, obviamente votaria no menos ruim. Isso é nada menos que óbvio.

Mas a premissa está errada também de outra maneira. Digamos que, de fato, o eleitor esteja tomado de um “isentismo doentio”, e vota nulo por causa dessa espécie de distorção cognitiva. Quem garante que, uma vez “curado” dessa doença, o nosso eleitor cairia para o lado de Bolsonaro? Por que não escolheria Lula? Qual a garantia de que, se todos os que se abstiveram fossem obrigados, com uma baioneta da cabeça, a votarem em alguém, necessariamente escolheriam Bolsonaro? De onde vem essa ideia? Respondo: vem da cachola de quem acha inadimissível não votar em Bolsonaro contra Lula. E é aí que está a verdadeira distorção da realidade. Vejamos.

Os bolsonaristas (vale para os petistas também, lá eles pensam exatemente a mesma coisa) até conseguem admitir que alguém vote em Lula, seja por ingenuidade, seja por má fé. Mas não conseguem admitir que alguém anule o voto. E por que? Porque consideram o voto nulo como uma espécie de “meio-termo” entre os dois candidatos, um “murismo” que vai eleger o adversário. Não conseguem entender que o voto nulo, na verdade, é um voto tão decidido quanto o voto em um ou outro candidato. É o voto de quem gostaria de eleger um terceiro que não está na cédula, e realmente tanto faz quem vai ser eleito se não for este terceiro. É o voto do protesto contra uma escolha que não lhe diz respeito.

Dizem que, se os que se abstiveram tivessem votado no candidato da direita na Colômbia, este teria vencido. É o mesmo que dizer que, se minha mãe tivesse nascido homem, seria meu pai. Os que se abstiveram, por óbvio, não queriam votar no candidato da direita. Caso quisessem, teriam votado, ora pois. O mundo das possibilidade é sempre infinito, mas, no mundo real, o que vale é aquilo que aconteceu. E o que aconteceu é que, dentre aqueles que escolheram um dos dois candidatos, a maioria votou no candidato da esquerda.

Portanto, os “culpados” pela eventual vitória de Lula serão, em primeiro lugar, os próprios eleitores de Lula. E, depois, secundariamente, serão Bolsonaro, os bolsonaristas e os anti-petistas, que não conseguiram convencer gente suficiente para sufragar o nome do presidente nas urnas. O resto é conversa de louco.

PS1.: não decidi meu voto ainda. E, quando decidir, talvez não o torne público. Meus posts têm a humilde intenção de agregar informações e análises ao debate eleitoral. Essa é a minha contribuição, minha declaração de voto é irrelevante.

PS2.: os que votam nulo têm sim o direito de criticar o governo de plantão. O direito à crítica não nasce do voto, mas do simples fato de ser um cidadão titular de direitos. Votar ou não é irrelevante para a crítica. Se não fosse assim, os que votaram no presidente não poderiam criticá-lo, o que é uma rematada bobagem.

PS3.: os comentários provarão a tese de que lógica é uma matéria que deveria ser obrigatória no ensino fundamental.

Os três porquinhos e a disciplina fiscal

Até parece uma continuidade do meu post de ontem. Segundo reportagem de hoje, Lula estaria investindo em reuniões com empresários, apesar de continuar demonizando o capital sempre que tem uma chance. A matéria entrevista alguns analistas políticos para procurar desvendar o mistério dessa aparente contradição. Além da velha desculpa de “ganhar o povo com o discurso, mas garantir que fará outra coisa quando eleito” (também conhecido como estelionato eleitoral), outra explicação chamou-me a atenção: a de que Lula estaria se reunindo com empresários para convencê-los de que, antes de um ajuste fiscal, o país precisa de um “ajuste social”. Seria como avisar o peru de que o dia de Ação de Graças está chegando.

Essa ideia de que o país tem muitas urgências sociais e, portanto, não pode priorizar os credores da dívida, não é exclusiva dos petistas. Fui acusado de “insensibilidade” ao criticar a PEC Kamikaze, pois, como sabemos, há muitos passando fome e é urgente resolver esse problema. E a crítica não veio de petistas, mas de pessoas que, até outra dia, chamavam o bolsa-família de bolsa-esmola. O que não faz pela “consciência social” um político de estimação como presidente.

Sempre que ouço essa ladainha do “social x fiscal” lembro da história dos 3 porquinhos. Não sei se as crianças de hoje conhecem a história, mas eu cresci ouvindo e cansei de contar para os meus filhos essa alegoria da prudência. “Primeiro os deveres, depois os prazeres” era a moral da história.

Óbvio que as necessidades sociais dos brasileiros mais pobres não são prazeres, são necessidades reais e urgentes. Não se trata de minimizar essas necessidades ou postergar a sua mitigação. Trata-se, na verdade, de se encontrar o melhor meio de que essas necessidades sejam atendidas de modo permanente, e não com truques que perdem o seu efeito com o tempo. Trata-se de construir uma casa segura.

É neste ponto que o programa econômico do PT é terrivelmente errado. A questão social é um problema urgente, Lula não precisa gastar sua saliva para convencer os empresários e o mercado financeiro sobre este ponto. O problema, como sempre, é como resolver a questão de maneira permanente.

O problema do PT não são seus programas sociais, em grande parte meritórios. O problema está em como financiar isso. Lula, Dilma e o PT já mostraram à exaustão o que pensam sobre isso. Seu plano sempre envolve turbinar setores escolhidos a dedo por uma burocracia iluminada por meio da expansão do crédito de bancos públicos. A preocupação com o equilíbrio fiscal fica em segundo plano, pois o crescimento econômico gerado por essas ações governamentais geraria o aumento da arrecadação que, por sua vez, equilibraria o orçamento público novamente, em um moto-perpétuo virtuoso.

A coisa até que funciona bem enquanto o lobo mau não chega. Os porquinhos se divertem dentro de suas casas de madeira e de palha, comemorando um “novo tempo”. Mas o lobo mau do aumento dos juros globais, da recessão global, das crises globais enfim, sempre chega, e põe abaixo aquelas construções precárias. Já tivemos oportunidade de ver o começo, o meio e o fim dessa história durante os mais de 13 anos de governos do PT.

Em contraste, os chamados pejorativamente de “ortodoxos” são como o porquinho Prático. Não é que desprezemos as necessidades sociais do país. Muito pelo contrário. Queremos que qualquer avanço social seja perene, não frágil a ponto de ser derrubado pelo primeiro lobo mau que apareça. E a única forma de se fazer isso é respeitar a moeda do país. A moeda é o material usado para construir a casa. Se a moeda é fraca como madeira ou palha, a casa se torna frágil. Se a moeda é forte como tijolo, a casa permanece em pé. Cuidar das contas públicas, no final do dia, é cuidar da saúde da moeda. Isso não é, de maneira alguma, incompatível com programas sociais. Mas sim, é incompatível com programas tresloucados de crescimento econômico que não param em pé.

Os empresários que dão apoio a esse tipo de plataforma econômica se dividem em duas categorias: aqueles que acreditam na “mágica do crescimento” (bem poucos) e aqueles que fornecem a madeira e a palha para construir as casas (a maioria). Estes últimos podem até se aproveitar do voo de galinha, mas estarão ajudando a cavar ainda mais o buraco em que nos encontramos. Ou melhor, a construir casas que não param em pé.

Lula é diferente de Boric e Petro

O Brazil Journal, um blog dedicado a finanças e economia, publicou um artigo analisando a escolha dos ministros da fazenda pelos recém-eleitos presidentes do Chile e da Colômbia, Gabriel Boric e Gustavo Petro. Boric nomeou Mario Maciel, ex-presidente do BC e um dos formuladores da regra de superávit primário estrutural em vigor no Chile. Petro acaba de nomear José Antônio Ocampo, PhD por Yale e que, apesar de ter ideias desenvolvimentistas, aparentemente preocupa-se também com o equilíbrio fiscal.

O artigo então continua, perguntando qual é a de Lula? Será que seguiria o exemplo de suas contrapartes de esquerda no Chile e na Colômbia e também nomearia um nome mais alinhado ao mainstream econômico ou apostaria todas as fichas em algo mais radical, a lá 1o mandato de Dilma Rousseff? A sinalização até o momento, estressa o artigo, é na direção da 2a opção. Todas as manifestações de Lula, até o momento, são no sentido de demonizar o capital e todas as reformas que procuraram equilibrar as contas públicas ou aumentar a produtividade da economia. Segundo o artigo, “la garantia soy yo” é a única sinalização de Lula até o momento para o mundo empresarial e financeiro.

Creio que, antes de comparar Lula com Boric ou Petro, é necessário entender a diferença da situação entre o potencial próximo presidente brasileiro e as suas contrapartes do Chile e da Colômbia, além da óbvia constatação de que os três são de esquerda.

O artigo constata que um movimento óbvio de Boric e Petro é o aumento da carga tributária nos seus países para financiar programas sociais. No Chile, o governo já apresentou uma proposta de aumento de impostos no valor de 4,1% do PIB, enquanto na Colômbia, o recém-nomeado ministro da fazenda escreveu recentemente artigo defendendo um aumento da carga tributária de 3% do PIB. O mesmo poderia fazer o próximo presidente brasileiro?

Segundo a OCDE, a carga tributária de Chile e Colômbia é de, respectivamente, 19,3% e 18,7% do PIB. No Brasil, segundo o mesmo levantamente, a carga tributária é de 31,6%, a maior da América Latina e comparável a países como Nova Zelândia e Reino Unido, e apenas 2 pontos percentuais a menos do que a média da OCDE. Se aumentasse a carga tributária em 3 pontos percentuais, o Brasil alcançaria países como Canadá e Portugal. A decisão de aumentar a carga tributária no Chile e na Colômbia é relativamente fácil. No Brasil, nem tanto.

Mas a coisa não para por aí. Segundo o FMI (previsões para 2022), o Chile tem uma dívida bruta de 38% do PIB e seu déficit nominal (despesas do governo + juros da dívida) é de 1,5% do PIB. A situação da Colômbia é um pouco pior: dívida bruta de 60% e déficit nominal de 4,5% do PIB. Enquanto isso, a dívida bruta do Brasil é de 92% do PIB com déficit nominal de 7,5% do PIB. Ou seja, o Brasil precisaria estar subindo a carga tributária em 3 pontos percentuais só para igualar o déficit da Colômbia ou em 6 pontos percentuais só para igualar o déficit do Chile. Em resumo: saímos atrás no grid de largada para aumentar gastos sociais e o nosso carro é ben mais pesado. Não à toa, Chile e Colômbia são investment grade e, portanto, gozam do privilégio de poderem, pelo menos por enquanto, pagar taxas de juros mais baixas do que o Brasil sobre suas dívidas.

Mas a situação de Lula é diferente de suas contrapartes do Chile e da Colômbia ainda sob um outro aspecto: enquanto Boric e Petro são novidades, Lula é velho conhecido do mercado brasileiro. Boric é o primeiro presidente de extrema esquerda em um país que alternou governos de centro-esquerda e de centro-direita desde que Pinochet deixou o poder. Petro é o primeiro presidente de esquerda na Colômbia. Ambos precisam pisar em ovos para ganhar a confiança dos mercados neste primeiro momento. Lula não. Lula conta com um histórico de grande sucesso na administração da economia (vamos, por ora, esquecer o desastre Dilma).

Lula se aproveita dessa memória para ampliar a ambiguidade sobre a sua futura agenda como presidente. Enquanto diz “la garantia soy yo”, não perde oportunidade de deixar clara a sua visão tacanha sobre o processo econômico. Em minha série sobre a economia brasileira na era PT, mostro como o desastre Dilma foi gestado no segundo mandato de Lula. Estava tudo lá, mas o desastre somente se consumou quando o dinheiro acabou.

Portanto, ao contrário de Boric e Petro, Lula, durante a campanha e se eleito, conta com um voto de confiança do mercado. Não precisará, portanto, ganhar uma confiança que falta a Boric e Petro. E isto poderá se traduzir em iniciativas pouco ortodoxas já no início de seu governo, quando então os participantes do mercado começarão, aos poucos, a desfazerem a imagem que têm de Lula do 1o mandato. O pior é que, como vimos, não há margem de manobra. Qualquer iniciativa diferente de um grande e profundo programa de reformas estruturais está fadado a aprofundar muito rapidamente o buraco em que estamos.

E la nave do populismo va

Anteontem, foi aprovado no Senado um pacote de bondades no valor de R$ 41 bilhões. Como não há espaço no teto de gastos, foi aprovado, em conjunto, a decretação de um “estado de emergência”, o que permite gastos acima do teto. A PEC (sim, foi necessário emendar a constituição para aprovar essa despesa, dado que o teto de gastos está inscrito na constituição) foi aprovada, no primeiro turno, por incríveis 72 votos a 1 e, na segunda votação, por 67 votos a 1. Além disso, sua tramitação levou poucos dias, um verdadeiro recorde para uma PEC, que, normalmente, tem seu tempo de tramitação medida em meses, quando não em anos.

Este episódio é um suco concentrado de Brasil, e nos permite observar a realidade política e econômica brasileira de diversos ângulos. Vejamos.

1) A lenda de que Bolsonaro não realizou tudo o que queria porque é refém do Legislativo (desculpa normalmente usada para poupar o presidente da crítica de não ter avançado com reformas estruturais) cai por terra. No presidencialismo, quando o presidente quer, mas quer de verdade, a coisa acontece. Um pacote de bondades com o objetivo de ajudá-lo nas eleições foi aprovado por uma quase unanimidade na velocidade da luz. Se isso não é poder político, não sei mais o que é.

2) Dois terços dos senadores não enfrentarão eleições neste ano. Portanto, a desculpa de que estão tentando surfar em medidas populistas para ganhar votos não se aplica. A grande maioria votou por convicção mesmo. O que não deixa de ser assustador.

3) A definição de “emergência” passou a ser mais elástica. Em 2020, a pandemia, que paralisou a economia global por vários meses, foi considerada uma emergência. Ok, fazia todo sentido. Em 2021, os efeitos da pandemia ainda se faziam sentir, mas a vacinação avançava e a economia já vinha em franca reabertura. Isso não impediu que a lei orçamentária fosse aprovada prevendo uma claraboia no teto de gastos, para despesas “emergenciais” com a pandemia, o que incluía basicamente qualquer coisa. E agora, a “emergência” é o aumento dos preços dos combustíveis. Três anos seguidos de emergência, o governo já pode pedir música no Fantástico. É o jeitinho institucionalizado.

4) A banalização do conceito de emergência era tudo o que o PT queria. Fica demonstrado que esse teto de gastos é para inglês ver. Gastar acima do teto passou a ser a norma, não a exceção, o que esfrega a desmoralização da âncora fiscal na cara da nação. Não à toa, em seu programa de governo, o PT afirma que o teto de gastos está desmoralizado. E não à toa, votou em peso por mais essa pá de cal no esquema de controle das contas públicas. Somente José Serra (o único senador que votou contra) terá moral para apontar o dedo e acusar um governo do PT de ser fiscalmente irresponsável.

5) Se esse pacote de bondades era realmente imprescindível, não seria difícil encontrar espaço no orçamento para gastos de R$ 41 bilhões. Trata-se de uma situação completamente diferente da de 2020, quando foram gastos R$700 bilhões em uma verdadeira emergência. No entanto, quem disse que tem espaço em um orçamento de R$ 1,6 trilhões para acomodar mais R$ 41 bi de gastos? Cada milímetro do orçamento é defendido com unhas e dentes por interesses dos mais variados. E essa é a lição deixada por mais essa exceção na regra: todo mundo quer patrocinar bondades, desde que não signifique mexer no meu queijo.

6) Tem quem defenda que há espaço para gastar mais porque o governo tem tido sucesso na gestão fiscal, produzindo superávits primários e obtendo receitas extraordinárias, como os dividendos da Petrobras e a venda da Eletrobras. Essa é uma visão míope da realidade. Grande parte do superávit foi obtido através de receitas inflacionárias, que não foram gastas com o funcionalismo, que tem o seu salário congelado há algum tempo. É óbvio – não, é muito óbvio – que esse esquema não se sustenta no tempo. A inflação vai cair em algum momento e, mais cedo ou mais tarde, a inflação passada terá que ser incorporada ao salário dos servidores. Esse superávit primário tem muita semelhança com os programas alardeados pelo PT: conquistas grandiosas que não têm como se sustentar no tempo. Além disso, nós precisamos fazer superávit primário para diminuir a dívida pública. Se, a cada vez que fizermos superávit, inventarmos uma emergência para gastar, a nossa dívida nunca irá diminuir e o nosso gasto com juros só vai aumentar.

7) E por falar em gastos com juros, o mercado vem respondendo com mau humor a essas “flexibilizações” do teto. A taxa de juros tende a ser mais alta, pois a inflação tende a ser mais alta no futuro. Quem acredita que o governo brasileiro vai deixar de gastar como se não houvesse amanhã, permitindo que o BC traga a inflação para a meta de 3% nos próximos 10 anos, o Tesouro Direto tem uma oportunidade imperdível: título prefixado com vencimento em 2033 e pagando 13% ao ano. Ou seja, um título do governo pagando 10% ao ano acima da inflação oficial! Um negócio da China! Alguém pode desconfiar da esmola, e com razão. Afinal, por que um título do governo está pagando uma taxa de juros tão alta? Simples: porque os investidores estão desconfiados de que a inflação pode ser bem mais alta nos próximos anos, dado o comportamento fiscal do governo. Coisas como esse “pacote emergencial” por fora do teto só fazem aumentar essa desconfiança. Resultado: o custo da dívida aumenta. Se nada for feito, chegará uma hora em que nenhuma taxa satisfará os investidores. Aí, só com inflação descontrolada para rolar a dívida.

8) Os bolsonaristas que entendem tudo o que vai acima, mas ainda assim apoiam a medida, o fazem porque seria a única forma de enfrentar o PT na eleição, um partido que também não mede meios para atingir seus objetivos. Vale “fazer o diabo”, como bem disse a ex-presidenta. Seria como que uma licença para gastar em anos eleitorais, deixando a austeridade para anos não eleitorais. Pode ser. Viveríamos de criar bondades que valem somente para anos eleitorais, sendo retiradas nos outros anos, dado que não existe espaço no orçamento. Resta saber se o mercado e os eleitores se deixariam enganar por esse tipo de “bondade não permanente”.

A PEC ainda vai ser votada na Câmara, mas deverá passar por ampla maioria. E la nave do populismo va.

Quem precisa do PT?

O governador de São Paulo colocou um ponto final em um longo e exitoso histórico de respeito a contratos pelo estado de São Paulo, ao decidir, unilateralmente, não respeitar os termos dos contratos de concessão de rodovias.

São Paulo caracteriza-se por ter as melhores rodovias do Brasil. Segundo a CNT, as 10 melhores rodovias do Brasil estão em São Paulo, e nada menos do que 48% das estradas paulistas são classificadas como ”ótimas”, contra um distante segundo lugar do DF, com 20% na mesma classificação, e média brasileira de 10%.

O outro lado da moeda, claro, é o preço do pedagio. São Paulo tem os pedágios mais caros do Brasil. Não é para qualquer bolso viajar pelas estradas do estado. Lembro-me que Dilma Rousseff tinha a mesma avaliação. Decidiu, então, criar um programa de concessões de estradas federais que privilegiava a “modicidade tarifária”. De fato, as estradas federais têm pedágios bem mais baixos. No entanto, basta dirigir pela Fernão Dias e pela Bandeirantes para sentir a diferença. “Faz de conta que você paga pedágio, faz de conta que eu faço a manutenção da estrada”, esse era a lógica das concessões do PT.

Além disso, os pedágios em São Paulo são caros porque o estado sempre trabalhou no regime de outorga: o concessionário paga para ter direito a explorar a rodovia. Com esse dinheiro, o governo supostamente faz a manutenção de estradas vicinais, que não têm pedágio por não serem viáveis economicamente. A outorga funciona como um imposto escondido na tarifa do pedágio, encarecendo-o.

São Paulo sempre foi um benchmark na gestão de rodovias para o resto do país. Não mais. Rodrigo Garcia, pela primeira vez desde 1998, quando as primeiras rodovias do estado foram concedidas, não vai permitir o aumento nas tarifas conforme reza o contrato. Estabeleceu uma “comissão” para discutir o ressarcimento às concessionárias. E todos sabemos que, quando não queremos resolver um problema, criamos uma comissão para discuti-lo. Judicialização à vista.

Essa decisão do governador tem efeitos que vão muito além do congelamento do pedágio neste ano. As concessionárias, daqui para frente, vão embutir, nos seus lances para vencer um leilão, o risco de quebra de contrato. O resultado são tarifas ainda mais altas no futuro. Ou estradas piores. Ou uma combinação de ambos. E isso vale não somente para rodovias, mas para qualquer tipo de concessão, dado que o poder concedente é o mesmo. E isso vale não somente para São Paulo, mas para o país inteiro. Afinal, se São Paulo, que era o benchmark no respeito a contratos, quebrou-os sem cerimônia, que dirá o restante do país.

Rodrigo Garcia, em um lance eleitoreiro para ganhar votos daqueles que acham que existe almoço de graça (e são legião), jogou por terra um trabalho de credibilidade de décadas construído por seus antecessores. Enquanto em Brasília se constrói outra claraboia no teto de gastos, aqui em São Paulo se quebra contratos. Quem precisa do PT para instituir o populismo como política de Estado?