De tempos em tempos, observamos um raro alinhamento de planetas capaz de mudar o rumo da história. Mikhail Gorbachev era a última figura histórica ainda viva que fez parte de um desses raros alinhamentos, que reuniu, em um único momento, Ronald Reagan, Margareth Thatcher e o papa João Paulo II, além do ex-líder soviético. O papa, convém lembrar, foi o primeiro papa não italiano em mais de 400 anos, e justamente alguém oriundo da cortina de ferro.
Convém lembrar o mundo em que vivíamos. Os dois choques do petróleo na década de 70 tinham levado a inflação para dois dígitos no mundo desenvolvido. No início dos anos 80, Paul Volcker assumiu o Fed com a missão de acabar com a brincadeira. E ele não brincou em serviço: elevou a taxa de juros nos EUA para 20% ao ano, um nível inimaginável para nós, hoje. Os países dependentes do dólar foram quebrando uns após os outros. O Brasil decretou a moratória da dívida externa em 1987.
A União Soviética vinha de décadas de gastos muito acima de sua capacidade para sustentar duas corridas, a armamentista da guerra fria e pelo domínio do espaço. A détente da década de 70 foi uma tentativa de reduzir esses gastos. Muito pouco, muito tarde. A economia planificada soviética já estava irremediavelmente comprometida, e a recessão global provocada por Volcker foi a pá de cal.
Nesse contexto, Gorbachev assume. A sua escolha é um sinal de que a própria nomenklatura soviética reconhecia a necessidade de reformas no sistema. Ao contrário da gerontocracia que vinha dando as cartas desde Brejnev, Gorbachev era jovem (tinha 53 anos quando assumiu o poder) e ideias para reformar o sistema por dentro, sem mexer na estrutura do partido. Um pouco o que Deng Xiaoping vinha fazendo na China. Só que a coisa saiu do controle.
Ao contrário do seu par chinês, Gorbachev tentou fazer duas aberturas simultâneas: a econômica (perestroika) e a política (glasnost). Além disso, ao contrário da China, a Rússia tinha uma esfera de influência extra território, que abrangia as antigas repúblicas soviéticas e os países da cortina de ferro, chegando até Berlim, no coração da Europa Ocidental. A Glasnost foi equivalente a um terremoto que abalou as estruturas que dominavam esses satélites, levando à dissolução do império soviético. Não por outro motivo, a Rússia de Putin não era nada simpática ao ex-secretário geral.
No campo da economia, a perestroika tinha a tarefa de tornar eficiente um sistema centralizado de decisões econômicas, dando mais espaço para a iniciativa privada. O que conseguiu foi substituir o socialismo por um “crony capitalism”, em que empresários amigos do poder central passaram a dominar grandes fatias da atividade econômica. De qualquer forma, aquilo era mais eficiente para gerar riquezas do que o socialismo real.
É difícil saber quanto Gorbachev é fruto do seu tempo (se não fosse ele, outro semelhante surgiria no seu lugar) ou um artificie da história (sem ele, nada do que aconteceu seria possível). Talvez seja uma mistura de ambos. O fato é que, sem a perestroika, a União Soviética seria hoje uma Venezuela com armas nucleares. Não se trata de uma visão muito agradável.