Dissecando as teorias de fraude nas eleições brasileiras de 2022

Neste artigo, procuramos analisar, de maneira o mais imparcial possível, as principais denúncias de fraude referentes ao segundo turno das eleições presidenciais de 2022.

Em primeiro lugar, é preciso dizer que, mesmo a fraude sendo tecnicamente possível, ela requer uma tal cooptação de funcionários do TSE que se torna bastante arriscada: em primeiro lugar, seria preciso identificar as pessoas chaves, incluindo as que cobrem todas as etapas da fraude; em seguida, seria preciso comprá-las uma a uma. Qualquer falha pode ser fatal, ou para a pessoa que desnuda o esquema ou para todo o processo de fraude, se for a público. Aliás, este é um ambiente perfeito para chantagens polpudas… E não nos esqueçamos que Brasília deu uma vitória folgada a Bolsonaro. Ou seja, não devem faltar bolsonaristas no TSE dispostos a denunciar um esquema desse tipo, caso existisse.

Além disso, a votação paralela (processo de auditoria que simula uma votação real com urnas sorteadas, no mesmo horário da votação real) confere bem o processo da votação verdadeira, conforme explicamos neste artigo, exceto por uma “pequena” grande falha: não é possível simular a biometria, pois não se consegue voltar dos dados codificados para o dono da digital, ou seja, fica impossível simular um eleitor chegando com as suas digitais para o sistema eleitoral. Portanto, bastaria o processo fraudado se limitar a adulterar urnas em que aparece pelo menos um voto com biometria.

A boa notícia, é que esse ano, pela primeira vez, foi realizado um teste paralelo com biometria, em pequena escala, envolvendo eleitores reais, tornando a fraude bem mais difícil de se implementar, pois envolve complexos algoritmos de inteligência artificial, virtualmente impossíveis de serem feitos ou, no limite, o vazamento da identidade de todos esses eleitores.

A despeito de que a fraude seja difícil de acontecer na prática, parece claro que algum processo de transparência no sistema de urnas eletrônicas seria desejável, para transformar a segurança real, mas invisível, em uma segurança efetiva, com uma camada adicional que proporcione uma sensação de segurança para o cidadão leigo.

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Dentre as teorias disseminadas nos últimos dias, é possível destacar 5 vertentes, sendo as duas primeiras mais prevalentes (e assim, objetos de uma análise mais detalhada). Para tal, baixamos o resultado de todas as 472.027 urnas, incluindo o modelo de cada uma.

1 – Há mais de 100 urnas em que Bolsonaro não tem votos

De fato, houve 143 urnas sem votos para Bolsonaro e 4 urnas sem votos para Lula (duas delas em Caracas!).

Contexto da suposta fraude

A princípio, isto parece altamente intrigante. No entanto, só a princípio. Ao se examinar com mais detalhes, a razão fica cristalinamente clara.

Antes de refutarmos a fraude, vamos procurar nos colocar no lugar do fraudador, que desenha um algoritmo para simular votos em uma urna. O que você faria? Se o interesse é manipular e, ao mesmo tempo, passar despercebido, zerar votos de uma urna é, obviamente, a forma menos esperta de fazer isso. Primeiro, porque uma urna zerada chama a atenção de todos (aliás, não estaríamos escrevendo sobre isso se não houvesse urnas zeradas). E, em segundo lugar, porque uma urna zerada é o ambiente perfeito para uma auditoria informal: basta encontrar alguém com nome e CPF que tivesse votado naquela seção no candidato com zero votos, e que estivesse disposto a denunciar a fraude. Por incrível que pareça, até o momento, nas 143 urnas, que somam 11.858 votos para Lula, não se encontrou nenhuma boa alma que viesse a público para denunciar a fraude.

Convenhamos que este é um risco que um fraudador minimamente esperto não precisaria correr. Seria muito mais inteligente fazer uma redução percentual dos votos de Bolsonaro (na casa de uns 5%) e transferi-los para Lula, poupando as urnas onde Bolsonaro aparece com poucos votos. Isso tornaria o processo de detecção da fraude, apenas olhando para os boletins de urna, uma tarefa praticamente impossível. Só esse processo aumentaria a diferença a favor de Lula em torno de 10 pontos percentuais, o que seria mais do que suficiente para garantir a vitória em uma eleição apertada.

Refutação da fraude

         Mesmo assim, vamos analisar em maior profundidade essa “denúncia”:

Em primeiro lugar, separamos estas urnas sem votos para Bolsonaro em duas categorias:

  1. Urnas com 100 votos válidos ou mais: 66
  2. Urnas com menos de 100 votos válidos: 77

Fizemos esta divisão porque é menos provável que uma urna com mais votos seja unânime do que uma urna com menos votos. Por isso, o grupo 1, de 66 urnas, foi examinado em grande detalhe, observando e pesquisando os locais de votação: 42 destas urnas estão em locais indígenas, 19 em locais quilombolas e uma em um assentamento do MST, em município com altíssima votação pró-Lula. Das 4 urnas restantes, todas estão em ambiente rural de cidades bem pequenas do sertão nordestino, no Maranhão, Ceará e Piauí, e com mais de 85% de votos para Lula.

Apenas para ilustrar, uma dessas urnas do grupo 1 está em Charrua – RS, onde, em uma seção com 302 votos válidos, Lula obteve a unanimidade. Este caso chama a atenção, porque a votação no município ficou praticamente dividida, com Bolsonaro recebendo 51,5% dos votos e Lula, 48,5%. No entanto, o caso deixa de ser estranho quando se examina de perto o perfil étnico do município. Segundo o site infosanbas (uma das fontes que usamos para esta pesquisa), o município de Charrua está praticamente dividido ao meio em termos de perfil étnico, como podemos ver no gráfico abaixo, retirado do site:

Esta divisão entre “brancos” e “indígenas” provavelmente explica a votação dividida entre Bolsonaro e Lula no município, e é provável que os indígenas tenham votado, todos, no Ginásio Municipal da cidade, onde estão as três seções em que Lula obteve a esmagadora maioria dos votos.

O grupo 2 foi examinado com menos detalhe, procurando deduzir pelo nome do local de votação e mirando municípios com quilombolas oficialmente estabelecidos. Isto resultou em 7 urnas em locais indígenas, 39 em locais quilombolas, 11 em presídios, 18 em ambiente rural e 2 no exterior (Havana, em Cuba e Puerto Iguazú, na Argentina).

Das 18 seções em ambiente rural, 15 estão no Nordeste (com alta votação em Lula), uma está em uma comunidade remota e rural de Teresina e duas estão em comunidades remotas de cidades pequenas: Novo Cruzeiro, MG (77% votaram em Lula em uma seção com 71 votos) e Juruti, PA (59% votaram em Lula, em uma seção com 30 votos).

Com relação à votação em zonas indígenas e quilombolas, a baixa votação em Bolsonaro é compreensível. Bolsonaro referiu-se mais de uma vez de forma depreciativa aos quilombolas e territórios indígenas, referindo-se às demarcações e outras questões. Então é uma seara onde Bolsonaro deve ter tido mesmo muito pouco voto, ainda mais se levando em conta as lideranças fortes neste tipo de comunidade. No entanto, mesmo assim, há várias seções em quilombolas e aldeias indígenas onde Bolsonaro teve votos!

Com relação às zonas rurais, vamos fazer uma análise probabilística. Considere uma seção que tenha recebido 95% dos votos válidos para Lula. Qual a chance de uma urna com 99 votos válidos não ter nenhum voto em Bolsonaro? Cerca de 1 para 160 (0,9599). Fizemos um exercício em que levantamos todos os municípios em zonas rurais em que Lula recebeu mais de 50% dos votos e, nesses municípios, as seções com menos de 100 votos. Encontramos 3.687 seções com essas características. Para cada uma destas seções, usamos a fórmula acima para calcular a probabilidade de que Bolsonaro tenha recebido zero votos em cada uma das seções consideradas. Somando todas essas probabilidades, chegamos a aproximadamente 16 urnas em 3.687 seções. Portanto, o número de 18 urnas em zonas rurais com zero votos em Bolsonaro parece compatível com uma análise básica de probabilidades.

No grupo 1, temos 4 urnas em zonas rurais, sendo 3 com até 119 votos, o que diminui a chance para 1 em 448. Apenas uma urna, no sítio Ponta da Serra, que é uma comunidade agrícola, teve mais de 119 votos (159, para ser mais exato). Não se pode descartar, neste caso, compra de votos e/ou uma liderança forte.

2 – Urnas antigas “não-auditadas” foram fraudadas

Contexto da Suposta Fraude

Essa tese, segundo a qual Lula teve desproporcionalmente mais votos em urnas antigas, o que não condiz com uma distribuição aleatória dos votos, começou a ser difundida pelas redes sociais a partir do texto do argentino Fernando Cerimedo, publicado no canal do YouTube via o periódico “La Direcha Diario”. Esta não pode ser considerada uma fonte imparcial, porque o autor é assumidamente bolsonarista, tendo, inclusive, se encontrado com Eduardo Bolsonaro pouco antes do 2º turno.

O TSE desmentiu a tese do argentino, reforçando que os modelos antigos de urnas passaram por rigorosos testes antes de 2020, e em 2020 testou-se apenas o hardware novo, porque os modelos anteriores já haviam sido escrutinados. O modelo novo conta com um processador bem mais rápido, tela colorida, bateria mais possante, melhorias no teclado e na biometria e software embarcado do sistema operacional mais seguro. Reparem que não se trata do software eleitoral, mas do ambiente operacional, sobre o qual o software eleitoral roda. É como o Windows, que serve de base para todos os softwares que rodamos em nossos computadores. Uma versão nova do Windows não faz com que o Excel, por exemplo, seja diferente.

O ponto é que, obviamente, o software eleitoral é rigorosamente igual para todos os tipos de urna. Se o software fosse fraudado, ambas os tipos de urnas seriam alvos de fraude e não apenas as urnas mais antigas. Afinal, a urna, independentemente do modelo, não detectaria se o software foi fraudado ou não.

Cerimedo declarou que diferenças em um determinado log (registro em arquivo de todas as operações feitas em um determinado computador, e os resultados e mensagens exibidos) provaria que o software é diferente entre o modelo novo e os modelos antigos.  Isto não faz o menor sentido, porque estas diferenças podem ser devidas simplesmente à própria diferença entre as urnas (hardwares diferentes causam logs diferentes em sua inicialização), o que não tem nada a ver com o software das urnas em si.

Desenvolver dois softwares diferentes e manter isso incógnito seria uma conspiração rocambolesca e virtualmente impossível, é muito mais fácil fraudar um software único, com uma lógica só.

Refutação da Suposta Fraude

Já publicamos um artigo refutando essa tese do ponto de vista da localização dos municípios que receberam urnas novas e antigas (veja aqui). Em resumo, as urnas não foram distribuídas aleatoriamente, o que é condição inicial para qualquer análise probabilística. Em geral, foram as capitais e alguns municípios limítrofes que receberam urnas novas, enquanto os municípios do interior do país receberam as urnas antigas.

Então, quando se separa os resultados das urnas novas e antigas, na verdade está se separando os resultados das capitais e do interior. No Nordeste, onde Bolsonaro recebeu proporcionalmente mais votos nas capitais do que no interior, fica a impressão de que isso é devido à “idade” da urna, quando, na verdade, a diferença de votos se explica pelo perfil do eleitor. Esse é o efeito de uma distribuição não aleatória das urnas.

Além disso, há alguns outros problemas conceituais com a análise realizada:

  • Considerar apenas o tamanho do município como critério para apontar as ditas diferenças a favor de Lula, nas urnas antigas;
  • O nível socioeconômico do eleitor é muito mais relevante que o tamanho do município onde ele mora;
  • Comparações de municípios de mesmo tamanho entre estados diferentes, geralmente, são completamente espúrias. No mapa abaixo, observa-se que, mesmo dentro do mesmo estado, existem diferenças regionais muito relevantes, ainda que os municípios tenham tamanho similar.

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